Saturday, 16 May 2015

"Ganesh contra o Terceiro Reich" e a pergunta que ficou para a próxima vez

Foto: Jeff Busby
É rara hoje em dia a peça de teatro que permanece connosco. A peça que ocupa os nossos pensamentos horas e dias depois de deixarmos o teatro. A peça que queremos discutir com outros. A peça que queremos ver novamente, à procura de mais, à procura de tudo o que sabemos que perdemos da primeira vez. "Ganesh contra o Terceiro Reich", pelos australianos Back to Back Theatre (apresentada na Culturgest, a 14 e 15 de Maio) é uma peça que fez isso para mim.


Fiquei muito feliz por poder ver uma produção do Back to Back Theatre em Lisboa. Eles são uma das poucas companhias que conseguiram tornar a deficiência numa questão secundária, não na questão principal, e colocar as suas produções em diferentes palcos em todo o mundo, não como o trabalho menor de actores com deficiência intelectual, mas simplesmente como arte interessante, desafiadora e excitante.

A história de "Ganesh contra o Terceiro Reich" - uma das histórias - é a do deus indiano com cabeça de elefante Ganesh, que viaja pela Alemanha nazi para recuperar a suástica, um antigo símbolo hindu. A outra história é a da própria companhia, uma espécie de autobiografia, um lugar onde a realidade e a ficção se misturam e onde eles partilham connosco o seu processo criativo, o resultado tanto de questionamento interno, como de desafios e crítica externos. Ambas são histórias sobre o poder: o poder exercido por um regime fascista sobre os seus cidadãos (e especialmente, neste caso, cidadãos com deficiência) e o poder das pessoas "normais" sobre pessoas "com deficiência" (neste caso, de um encenador não deficiente sobre actores com deficiência intelectual).


Lendo o programa antes da peça começar, apercebi-me que a companhia se questionou muito em relação à apropriação cultural e que, num primeiro momento, decidiu que não poderia fazer esta peça. Podem actores australianos, que não são nem hindu nem judeus, criar e interpretar uma história em torno de um deus hindu e do Holocausto? Será que eles têm esse direito? Eventualmente, lê-se no programa, o seu modo de pensar mudou e a tentativa de auto-censura tornou-se no principal argumento para fazer a peça. As coisas tornaram-se ainda mais claras quando a companhia visitou um edifício em Linz na Áustria que serviu de hospício para pessoas com deficiência intelectual - as pessoas que, após a anexação da Áustria, foram exterminadas pelos nazi. "Se nós não poderíamos fazer esta peça, então quem poderia?", disse-nos o encenador Bruce Gladwin numa conversa após o espectáculo.


Foto: Candy Welz
Ao mesmo tempo, na história paralela das pessoas envolvidas na construção da peça, muitas outras questões surgem. O que é inteligência? Quem é considerado deficiente? Será que os actores entendem o que estão a fazer? Podem distinguir a realidade da ficção? Isto é algo que eles querem fazer? Estão realmente envolvidos? Isto é ético? Questões integradas no guião, mas que também fazem parte do questionamento que a companhia promove e das críticas que recebe. Esse questionamento é ainda mais intensificado pelo personagem do encenador manipulador, o único interpretado por um actor sem deficiência. O seu papel, intenções e os seus padrões éticos são abertamente questionados por um dos membros do elenco. É óbvio que ele pensa que está a lidar com pessoas menores. A sua atitude abusiva pode ser subtil (por exemplo, quando ele pergunta suavemente a um dos actores: "Tu tens a mente de um peixe dourado?") ou aberta e fora de controle (quando ataca o actor que não entende a lógica por trás do que ele está a pedir para ele fazer ou que simplesmente não quer fazer o que ele diz). A aparência física do encenador não parece ser irrelevante ou um mero acaso, neste contexto: com traços arianos, mudando constantemente de roupa em palco e exibindo o seu corpo bem treinado, acentuando o contraste com os corpos dos outros actores, desafiando as nossas percepções de poder, habilidade, beleza. No final, são aqueles actores que se unem e se tornam mais fortes juntos, tornando-se capazes de controlar e expulsar o encenador; vemos a beleza na sua solidariedade para com o colega verbal e fisicamente abusado.


Imagem retirada do website do Back to Back Theatre
E, finalmente, um desafio directamente dirigido ao público: porque estamos lá? O que temos vindo a ver? Um freak show? Freak porno? É o encenador que olha para assentos supostamente vazios e que coloca essas perguntas (e ficámos a pensar: “Devemos responder?”). Ele acredita que a deficiência vende, que há um mercado que a procura. Para ele, Mark, o actor com "mente de peixe dourado", é a pessoa mais valiosa / cara em palco: ele é obviamente deficiente, é a grande atracção e, ao mesmo tempo, tem o papel mais curto, aquele com o qual pode lidar.

Fiquei a pensar no facto da deficiência intelectual e de todo este questionamento em relação à ética em torno do trabalho da companhia terem um lugar de destaque na peça. Não estava à espera, considerando a reputação dos Back to Back Theatre. Afinal, o propósito não é afastar a mente das pessoas da questão da deficiência e 'simplesmente' convidá-las a assistir a uma peça com actores profissionais? Bruce Gladwin explicou, na conversa que teve lugar após o espectáculo, que esta não é uma questão que vem à tona em cada produção, mas que é uma questão relevante nesta história específica.


Foto. Candy Welz
São espectáculos da qualidade de questionamento e produção de "Ganesh contra o Terceiro Reich" que podem realmente ter um impacto sobre a nossa mentalidade e pensamento estereotipado a respeito da deficiência, quer a discutam abertamente no guião quer não. É preciso tempo e uma série de encontros próximos, como este, antes que todos nós comecemos a sentir-nos mais confortáveis em lidar com a deficiência e a aceitá-la como um estado diferente de normalidade. Quando foi pedido aos actores falar-nos do seu tempo na companhia, eu não conseguia entender o que Mark Deans, um actor com Síndrome Donw, respondeu. A minha reacção natural teria sido perguntar se os seus colegas, que passam mais tempo com ele e que o compreendem melhor, poderiam ajudar-nos também a compreender a sua resposta (é engraçado que isto acontece também na peça, quando o encenador procura mais que uma vez confirmar se percebeu bem o que um ou outro actor lhe disse…). Olhei rapidamente à minha volta e percebi que, se tivesse feito uma coisa dessas, teria sido considerada ofensiva para com o Mark. Todos ouviram a sua resposta, ninguém percebeu, e todos ficaram quietos. Talvez da próxima vez...


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