Foto: Jeff Busby |
Fiquei muito feliz por poder ver uma produção do Back to Back Theatre em Lisboa. Eles são uma das poucas companhias que conseguiram tornar a deficiência numa questão secundária, não na questão principal, e colocar as suas produções em diferentes palcos em todo o mundo, não como o trabalho menor de actores com deficiência intelectual, mas simplesmente como arte interessante, desafiadora e excitante.
A história de "Ganesh contra o Terceiro Reich" -
uma das histórias - é a do deus indiano com cabeça de elefante Ganesh, que viaja
pela Alemanha nazi para recuperar a suástica, um antigo símbolo hindu. A outra
história é a da própria companhia, uma espécie de autobiografia, um lugar onde
a realidade e a ficção se misturam e onde eles partilham connosco o seu
processo criativo, o resultado tanto de questionamento interno, como de
desafios e crítica externos. Ambas são histórias sobre o poder: o poder
exercido por um regime fascista sobre os seus cidadãos (e especialmente, neste
caso, cidadãos com deficiência) e o poder das pessoas "normais" sobre
pessoas "com deficiência" (neste caso, de um encenador não deficiente
sobre actores com deficiência intelectual).
Lendo o programa antes da peça começar, apercebi-me que a
companhia se questionou muito em relação à apropriação cultural e que, num
primeiro momento, decidiu que não poderia fazer esta peça. Podem actores
australianos, que não são nem hindu nem judeus, criar e interpretar uma
história em torno de um deus hindu e do Holocausto? Será que eles têm esse
direito? Eventualmente, lê-se no programa, o seu modo de pensar mudou e a
tentativa de auto-censura tornou-se no principal argumento para fazer a peça.
As coisas tornaram-se ainda mais claras quando a companhia visitou um edifício
em Linz na Áustria que serviu de hospício para pessoas com deficiência
intelectual - as pessoas que, após a anexação da Áustria, foram exterminadas
pelos nazi. "Se nós não poderíamos fazer esta peça, então quem
poderia?", disse-nos o encenador Bruce Gladwin numa conversa após o
espectáculo.
Foto: Candy Welz |
Ao mesmo tempo, na história paralela das pessoas envolvidas
na construção da peça, muitas outras questões surgem. O que é inteligência?
Quem é considerado deficiente? Será que os actores entendem o que estão a
fazer? Podem distinguir a realidade da ficção? Isto é algo que eles querem fazer?
Estão realmente envolvidos? Isto é ético? Questões integradas no guião, mas que
também fazem parte do questionamento que a companhia promove e das críticas que
recebe. Esse questionamento é ainda mais intensificado pelo personagem do
encenador manipulador, o único interpretado por um actor sem deficiência. O seu
papel, intenções e os seus padrões éticos são abertamente questionados por um
dos membros do elenco. É óbvio que ele pensa que está a lidar com pessoas
menores. A sua atitude abusiva pode ser subtil (por exemplo, quando ele
pergunta suavemente a um dos actores: "Tu tens a mente de um peixe
dourado?") ou aberta e fora de controle (quando ataca o actor que não
entende a lógica por trás do que ele está a pedir para ele fazer ou que simplesmente
não quer fazer o que ele diz). A aparência física do encenador não parece ser
irrelevante ou um mero acaso, neste contexto: com traços arianos, mudando
constantemente de roupa em palco e exibindo o seu corpo bem treinado,
acentuando o contraste com os corpos dos outros actores, desafiando as nossas
percepções de poder, habilidade, beleza. No final, são aqueles actores que se
unem e se tornam mais fortes juntos, tornando-se capazes de controlar e
expulsar o encenador; vemos a beleza na sua solidariedade para com o colega
verbal e fisicamente abusado.
Imagem retirada do website do Back to Back Theatre |
E, finalmente, um desafio directamente dirigido ao público:
porque estamos lá? O que temos vindo a ver? Um freak show? Freak porno? É o encenador que olha para assentos
supostamente vazios e que coloca essas perguntas (e ficámos a pensar: “Devemos
responder?”). Ele acredita que a deficiência vende, que há um mercado que a
procura. Para ele, Mark, o actor com "mente de peixe dourado", é a
pessoa mais valiosa / cara em palco: ele é obviamente deficiente, é a grande atracção
e, ao mesmo tempo, tem o papel mais curto, aquele com o qual pode lidar.
Fiquei a pensar no facto da deficiência intelectual e de
todo este questionamento em relação à ética em torno do trabalho da companhia
terem um lugar de destaque na peça. Não estava à espera, considerando a
reputação dos Back to Back Theatre. Afinal, o propósito não é afastar a mente
das pessoas da questão da deficiência e 'simplesmente' convidá-las a assistir a
uma peça com actores profissionais? Bruce Gladwin explicou, na conversa que
teve lugar após o espectáculo, que esta não é uma questão que vem à tona em
cada produção, mas que é uma questão relevante nesta história específica.
Foto. Candy Welz |
São espectáculos da qualidade de questionamento e produção
de "Ganesh contra o Terceiro Reich" que podem realmente ter um
impacto sobre a nossa mentalidade e pensamento estereotipado a respeito da
deficiência, quer a discutam abertamente no guião quer não. É preciso tempo e
uma série de encontros próximos, como este, antes que todos nós comecemos a
sentir-nos mais confortáveis em lidar com a deficiência e a aceitá-la como um
estado diferente de normalidade. Quando foi pedido aos actores falar-nos do seu
tempo na companhia, eu não conseguia entender o que Mark Deans, um actor com
Síndrome Donw, respondeu. A minha reacção natural teria sido perguntar se os
seus colegas, que passam mais tempo com ele e que o compreendem melhor,
poderiam ajudar-nos também a compreender a sua resposta (é engraçado que isto
acontece também na peça, quando o encenador procura mais que uma vez confirmar
se percebeu bem o que um ou outro actor lhe disse…). Olhei rapidamente à minha
volta e percebi que, se tivesse feito uma coisa dessas, teria sido considerada
ofensiva para com o Mark. Todos ouviram a sua resposta, ninguém percebeu, e
todos ficaram quietos. Talvez da próxima vez...
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