No dia 17 de Dezembro de 2017, o jornal Público
publicava uma entrevista da Vereadora da Cultura de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, onde se anunciava que “o [Teatro] Maria Matos (MM) terá um
modelo de programação bastante diferente, com carreiras mais longas e uma maior
preocupação de captação de público, para ser rentável”. A notícia foi, no mínimo,
surpreendente para mim. Diria mais, lembro-me que, ao ler, senti uma espécie de
dor física.
Desde essa data, houve duas reuniões de
cidadãos interessados no futuro deste teatro, que discordam da decisão
anunciada pela vereadora. Houve ainda um abaixo assinado,
que assinei prontamente e que será entregue à Assembleia Municipal na semana
que vem.
Li com muito interesse as opiniões de colegas e amigos que
muito prezo, que não se opõem ao anúncio feito pela Câmara e que criticam quem
reagiu negativamente e quem assinou a petição: Jorge Silva Melo (JSM no
Facebook – imagem em baixo), Miguel Abreu (MA no Facebook, aqui e aqui)
e ainda Miguel Lobo Antunes (MLA no Público).
Aprendi com todos eles: primeiro, sobre a história do Maria Matos, que
desconhecia; depois, sobre as suas prepocupações em relação à programação oferecida
ao público lisboeta (melhor, aos diferentes públicos lisboetas) e às condições
pouco adequadas desse teatro para a apresentação da programação que teve até
agora. Apreciei ainda os esclarecimentos de MA em relação ao público-privado-arrendar-privatizar.
São necessários nesta discussão.
Ao mesmo tempo, há coisas que me deixaram
surpreendida nas argumentações apresentadas. Por exemplo:
- A necessidade demonstrada pelos três
colegas em recorrer à história do MM e em lembrar a sua “vocação inicial”, à
qual, aparentemente, deveremos manter-nos fieis, voltando atrás;
- A crítica de JSM que os
"intelectuais" (são?) [pretendem] tomar conta de edificios destinados
claramente a outros fins”, sendo que “o óbvio destino [do MM] é o
entretenimento de uma classe média pouco qualificada mas que, lá por isso,
também merece o seu teatro”;
- A crítica de MA que as discussões dos
que se opõem à decisão da Câmara e o abaixo assinado são demagógicos, sendo que
atribui este facto à “Incompetência ou inépcia de uns? Ignorância de outros? Oportunismo
de alguns? Provavelmente há isso tudo a gerar ruído e confusão.”
- A crítica de MA que o MM
“serviu durante os últimos oito anos um conjunto de artistas alinhados por uma
identidade estética e cumplicidades artísticas e socioculturais que, e segundo
as palavras de várias personalidades, têm espaço, atualmente, no São Luiz, na
Culturgest, no D. Maria II, no CCB...” ;
- No seguimento deste ponto, a opinião de MLA que “o número de sítios onde esse tipo de programação [do MM] se faz aumentou” e que “abundam em Lisboa os espaços dedicados à criação ‘contemporânea’”;
- A afirmação de MLA que “Este
é um tipo de decisão que não carece de discussão pública. Quem foi eleito para
dirigir a política cultural da câmara deve definir o destino dos seus
equipamentos, ouvindo quem quiser, se quiser, e assumindo as suas
responsabilidades.”
Em relação a tudo isto, gostaria de dizer o seguinte:
Os últimos oito anos fazem também parte da história do MM. Alguns podem considerá-los um “desvio”, eu vejo esta história mais recente como igualmente legítima, como um desenvolvimento mais que natural em espaços que continuam vivos.
Nestes oito anos, o MM não serviu apenas “um conjunto de artistas alinhados por uma identidade estética e cumplicidades artísticas e socioculturais” - como é natural, considerando a existência de uma direcção artística. Serviu também um conjunto de cidadãos (não artistas), alinhados por uma identidade estética e cumplicidades socio-culturais, que alí encontraram um espaço que abordou as suas inquietações e trouxe-lhes ainda outras, que não tinham pedido necessariamente ou que nem imaginavam. Um desses cidadãos sou também eu e não, não encontro este tipo de programação no São Luiz, no D. Maria II, no Teatro do Bairro ou no CCB. Encontrei algumas vezes na Culturgest (que vai agora mudar de direcção); e encontrei no espaço do Próximo Futuro, na Fundação Gulbenkian (que já não existe). Mesmo que continuássemos com os três, eu dificilmente falaria em “abundância”. Não se trata apenas de ser “contemporâneo”.
Nestes oito anos, graças ao trabalho de uma equipa inteira, o MM ganhou uma identidade específica, uma identidade que não se prende a uma direcção artística, mas que está associada ao espaço, ao que este representa na vida de muitos cidadãos: tornou-se num teatro da cidade que assume um posicionamento político (não partidário), que acredita que não vivemos no mellor dos mundos, mas que não considera uma utopia convidar as pessoas para reflectirem sobre este mundo, sobre a nossa vida em comum na cidade e sobre o que cada um de nós pode (ou seja, tem o poder) de fazer. Há o público que "vai atrás" de um director artístico, porque, independentemente do sítio onde ele esteja, ele mantém o seu posicionamento/questionamento. Mas há também o público que cria uma relação com um espaço e que cria expectativas em relação a ele, àquilo que o espaço representa, o que pode ser abordado de formas diferentes por diferentes direcções artísticas. Esperava que a identidade específica do MM se mantivesse com a direcção artística que viesse a seguir, por decisão (e com a garantia) da Câmara Municipal de Lisboa. Esperava por novas cumplicidades e talvez também novas estéticas. Esperava, muito concretamente (uma esperança que se criou durante a Capital Ibero-Americana da Cultura e, em especial, com a vinda de Grada Kilomba a Lisboa) que o MM passasse a ser um teatro municipal com direcção artística negra. Mas poderia ser outra coisa, desde que se enquadrasse na identidade do espaço, na “promessa” que uma marca (uma marca muitíssimo bem trabalhada pelo MM) traz.
Este é, no meu ver, o elemento que falta na apreciação e nas críticas feitas pelos colegas que aqui referi: a relação que um conjunto de cidadãos criou com o espaço MM. Mesmo que a sala não seja adequada; mesmo que tenhamos ficado menos confortáveis na bancada. Porque gostamos, e precisamos, do “desconforto” que este espaço nos trouxe. E também das surpresas, das maravilhas, da beleza.
Sou uma das signatárias do abaixo assinado. Não o fiz por pretender, “como intelectual (sou?)”, tomar conta de um lugar que parece pertencer legitimamente e para sempre “a uma classe média pouco qualificada”, privando-a do seu entretenimento. E também não o fiz com intenções demagógicas. Considero ainda que não fui conduzida por incompetência, ignorância ou oportunismo.
Sou uma das signatárias do abaixo assinado porque o espaço MM trouxe-me muito e significa muito para mim. E porque, em democracia, não espero que os nossos governantes nos oiçam “se quiserem”, por muito que estejam prontos para assumir as suas responsabilidades. Espero que nos oiçam sempre que um conjunto de nós lhes indique que temos algo a dizer sobre um assunto que nos diz respeito. Espero que assumam as suas responsabilidades depois disso.
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