Uma imagem do projecto Contratempo no programa do Isto é PARTIS. |
O jornal inglês The Guardian deu recentemente a notícia de uma crítica da poetisa Rebecca Watts, intitulada “O culto do nobre amador”, ao trabalho de um grupo de jovens poetisas que Watts considera que constitui "O óbvio denegrir do envolvimento intelectual e a rejeição do ofício”. A crítica gerou uma discussão muito interessante, e bem-vinda, em relação ao valor da poesia erudita e da poesia popular, sendo que a resposta de Don Paterson (poeta escocês, vencedor do prémio TS Elliot e editor de duas das jovens poetisas) foi cativante: "Não precisa de gostar do que as pessoas fazem, mas penso que deve avaliá-lo em função das suas próprias ambições. Caso contrário, é como dizer que TS Elliot foi um terrível artista de hip-hop. É verdade, e então?”.
No dia seguinte, participei num workshop de François
Matarasso (autor do blog A Restless Art),
intitulado “Dilemas éticos e artísticos da arte participativa” (organizado pela
Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do evento Isto é PARTIS).
Espero poder em breve escrever em detalhe sobre este workshop, mas, para já,
queria referir-me a dois pontos que me parecem relevantes para este post: a
definição de Matarasso da “arte partcipativa” (a criação de uma obra de arte
por artistas profissionais e não profissionais) e a definição de “artista” (uma
pessoa torna-se artista no acto da criação de arte – boa ou má). Para
Matarasso, um artista profissional é alguém que cria arte o tempo todo, pelo
que lhe é reconhecido o estatuto de “artista”. No entanto, artista é também
quem cria arte de vez em quando, pontualmente, noutros contextos, no âmbito de
um projecto.
Workshop com François Maratasso na Fundação Calouste Gulbenkian (Foto: Maria Vlachou) |
O debate Arte e Cidade,
organizado pela livraria Tigre de Papel em Lisboa, no dia 26 de Janeiro, teve
como ponto de partida um artigo de opinião de Miguel Lobo Antunes, intitulado
Apoio do Estado às Artes.
Nele, Miguel Lobo Antunes aponta para uma série de defeitos ou imperfeições no
actual regulamento de apoio do Estado às artes, problemas dos quais, nos
últimos dois meses, fomos tomando conhecimento através de quem teve que
preparar uma candidatura, mas que, ao mesmo tempo, são questões já antigas, que
o novo regulamente não conseguiu resolver, e que talvez as tenha tornado ainda
mais complexas.
Os três convidados do debate foram Miguel Lobo Antunes,
João Fiadeiro e eu própria. Conversámos à volta da (in)utilidade da arte e do
que o Estado deve apoiar. Miguel Lobo Antunes afirmou que a arte interessa a
poucas pessoas, que não devemos procurar encontrar nela uma “utilidade” e que
não deve ser apoiada ou avaliada com base em factores que não lhe sejam
intrínsecos (alguns dos objectivos definidos pela lei do financiamento às
artes, referidos no artigo de opinião acima referido: “valorizar a fruição
artística enquanto instrumento de correção de assimetrias territoriais e de
desenvolvimento humano, social, económico e financeiro”, “coesão social e
territorial”, “qualificação dos cidadãos”, “valorização do território”,
“transversalidade setorial”).
Resumidamente, a opinião que partilhei no debate foi que,
mesmo quando não existe a intenção de “salvar o mundo”, a arte tem “efeitos
colaterais” e é interessante conhecê-los. Há muitas pessoas que afirmam não
estar interessadas porque não tiveram a oportunidade de ter acesso, devido a
vários tipos de barreiras físicas, sociais ou intelectuais. Mais do que uma
necessidade de “criar públicos” (expressão que não uso há muito), há uma
necessidade de criar relações; relações essas que podem formar-se fora de
determinado espaço cultural, no espaço habitado por essas pessoas que se
mostram disponíveis para e interessadas em pensar o seu mundo através da arte.
A arte não acontece apenas nos espaços onde nós trabalhamos e só com os
artistas profissionais que nós escolhemos. Outras pessoas são também criadoras ou
co-criadoras de arte.
Um dia depois, fui ouvir o concerto do projecto
Contratempo, novamente no âmbito do evento da Fundação Gulbenkian Isto é
PARTIS. Trata-se de um projecto que junta pessoas com doença mental a elementos
da Tuna de Tecnologia e da Saúde do Porto, que conta ainda com parceiros como a
ESMAE – Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo e a Casa da Música. Ao
concerto seguiu-se um debate, onde tivemos a oportunidade de ouvir as pessoas
que participam no projecto falar sobre o que esta experiência lhes trouxe e onde também
se falou dos apoios – como os da Fundação Gulbenkian ou da Segurança Social.
Debate a seguir ao concerto do Contratempo (Foto: Maria Vlachou) |
Quando Bernardino Aranda, um dos donos da livraria Tigre de
Papel, lançou a primeira pergunta no debate (Porque é que o Estado deve apoiar
a arte?), respondi colocando-me no lugar do espectador. Receio que respondi
usando todos os possíveis clichés:
como cidadã, espero que o Estado apoie as artes pelo conforto e, sobretudo, o
desconforto que elas me trazem; por me trazerem o belo e o feio; por desafiarem
as minhas convicções; por me permitirem sonhar e imaginar o futuro. No entanto,
se fosse a rapariga refugiada do projecto Refugiacto, teria, provavelmente,
respondido que espera que o Estado apoie a artes porque o teatro lhe deu
coragem de falar em português e de falar em público. Se fosse o senhor com
esquizofrenia do projecto Contratempo, teria respondido que espera que o Estado
apoie as artes porque fazer parte do grupo (cantando ou tocando um instrumento)
lhe deu confiança para ir a uma entrevista de emprego e consegui-lo. Se fosse o
participante do festival MEXE, teria respondido que espera que o Estado apoie
as artes porque um festival como o MEXE “é uma outra forma de fazermos cultura
de dizermos que estamos cá, estamos vivos, é uma outra cidade que queremos” (ver o trailer). Se
fosse a senhora que habita no território das freguesias do Freixial e Juncal do
Campo (Castelo Branco), que participou no projecto Há Festa no Campo | Aldeias
Artísticas (ver o trailer),
teria respondido que espera que o Estado apoie as artes porque é preciso
“Arrancar as pessoas de si, levá-las a pensar e fazer qualquer coisa" (outros
testemunhos aqui).
Todos estes projectos têm tido o apoio do programa PARTIS –
Práticas Artísticas pela Inclusão Social da Fundação Calouste Gulbenkian. São
projectos que juntam artistas profissionais e não profissionais. Trata-se, na
definição de Matarasso, de projectos de arte participativa. Trata-se de arte. Parece-me
que, com a excepção da Associação PELE, que organiza o festival MEXE, os
restantes projectos aqui referidos, e outros ainda, não têm tido o apoio da Direcção-Geral
das Artes. Talvez por não serem considerados, à luz da lei do financiamento, projectos
artísticos? Talvez por se considerarem a eles próprios projectos sociais e não
também artísticos? Talvez por se sentirem condicionados pela opinião de outros sobre o que é “arte”? “Não sei quantas pessoas em Portugal consideram as tunas ‘arte’”, disse um dos elementos do projecto Contratempo.
No final de três dias muito intensos, as perguntas que se
me colocam são estas:
- É justo que a lei do financiamento às artes exija a todos
os artistas que as suas criações “valorizem a fruição artística enquanto
instrumento de correção de assimetrias territoriais e de desenvolvimento
humano, social, económico e financeiro”, que promovam a “coesão social e
territorial”, que contribuam para a “qualificação dos cidadãos” e a “valorização
do território” que se desenvolvam num contexto de “transversalidade setorial”?
E mesmo que determinado trabalho tenha algum desses “efeitos colaterais”, cabe
ao artista prová-lo? Não é esse o trabalho de especialistas em avaliação?
- É legítimo que alguns artistas definam como objectivos da
sua arte precisamente os factores acima indicados, que decidam ir ao encontro
dos mesmos através de projectos de arte participativa e que possam esperar ser
apoiados pelo Estado, através da Direcção-Geral das Artes? E as pessoas que
participam, artistas amadores, podem também ter esta expectativa ou exigência
em relação aos apoios do Estado?
- Seria possível deixar de hierarquizar as artes,
reconhecer a sua diversidade em termos de objectivos e meios e tentar reflectir
esta diversidade nos regulamentos de apoio?
- Não será tempo de o Estado ir além da intenção de
“democratizar o acesso à cultura” (várias vezes referido no programa do actual
governo – ler o meu post) e
abraçar os desafios de uma cultura mais democrática? Em vez de continuarmos
concentrados na “criação de públicos” para os nossos espaços e projectos, não
poderíamos também investir no desenvolvimento de projectos e na criação de arte
com pessoas que já existem e que não precisamos de “criar”?
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