Wednesday, 25 April 2018

O Museu das (minhas) Descobertas

Exposição "Retornar - Traços de Memória", Padrão dos Descobrimentos, 2015 (Foto: Maria Vlahou)

Sou portuguesa por adopção. Quando cheguei a Portugal, em 1995, a única coisa que sabia sobre a história do país tinha a ver com os Descobrimentos (dos caminhos marítimos e das especiarias, ensinada no meu país no 7º ou 8º ano). O resto fui/vou “descobrindo” ao longo dos anos (mesmo no que diz respeito aos Descobrimentos e para além dos caminhos marítimos e das especiarias). A história que me ensinaram na escola era, como é habitual, apenas uma parte.

“Negar a Descoberta ou o Descobrimento não é o mesmo que afirmar que o átomo nunca foi descoberto por Alguém, devido à errada ideia de ter sempre existido?”, questionava o nosso colega Pedro Manuel-Cardoso num texto partilhado na lista Museum. “A existência de uma Coisa não lhe confere a propriedade de Descoberta/Descobrimento. A Descoberta e o Descobrimento exigem à Coisa muito mais do que apenas Ser. Essa não é a diferença entre a matéria inerte e a matéria viva?”.

Durante algum tempo, as críticas relacionadas com o uso da palavra “Descobrimentos”, como referência à expansão portuguesa, deixavam-me perplexa. Se encontro algo que antes não conhecia, não posso dizer “descobri”? Sem arrogância, sem triunfalismos, com a simples intenção de transmitir que já não ignorava determinada existência? Ao longo dos anos, atenta a mais vozes, “descobri” que a diferença está mesmo ali: na arrogância e no discurso triunfal de uma Europa que se considera o centro do mundo, que afirma tê-lo descoberto e que tem a tendência de excluir da narrativa algumas das consequências vividas nos séculos que se seguiram à descoberta e até aos nossos dias. Este questionamento voltou agora, com o debate que se tem produzido em relação ao “Museu das Descobertas”, proposto pela Câmara Municipal de Lisboa.

Dois pontos prévios

Em relação a esta proposta, gostaria de dizer duas coisas:

Primeiro, a ideia de haver mais uma museu sem condições para desempenhar as suas funções aflige-me. Quando digo “sem condições para desempenhar as suas funções” refiro-me sobretudo a um museu incapaz de se tornar relevante para as comunidades em que se insere e para os seus visitantes; incapaz de apresentar um pensamento político e de assumir o seu papel social; um museu que se limita a descrever os objectos expostos e a colocar ensaios académicos nas paredes - sendo na teoria um lugar “para todos”, mas, na prática, mantendo-se como um espaço exclusivo, para alguns. Gostei da forma como o nosso colega Pedro Pereira Leite colocou esta questão ontem, numa nota na lista Museum: “A força da narrativa dum museus não está na abordagem do passado. Está em ele ser capaz de falar sobre o presente. Se assim não for, com mais ou menos tecnologia, com mais ou menos virtuosidade da sua museália, com mais ou menos milhões, é um museu moribundo. E como sabemos, um museu que não serve para a vida não serve para nada.” O país, e o mundo, não precisam de mais museus moribundos, muito menos se a intenção é abordar uma história tão sensível, tão multifacetada como esta; como todas as histórias, aliás. Investigadores especializados na história do império português e cientistas sociais, que assinam uma carta aberta contra o uso do nome “Museu das Descobertas” para um museu dedicado à expansão portuguesa, dão como exemplo o Museu Afro-Brasil. No meu ver, é, precisamente, este o género de museu em que não se deve investir mais: um livro na parede, uma museografia confusa, imensos objectos bonitos e curiosos sobre os quais não se diz nada e uma história tão importante para aquele país e para o mundo que fica por contar (algumas imagens da minha visita). Em Portugal também não faltam museus deste género.

Segundo, quando digo “sem condições para desempenhar as suas funções” refiro-me igualmente, e inevitavelmente, às condições financeiras e humanas da grande maioria dos museus portugueses. No contexto em que vivemos e em que trabalhamos, surpreende a contínua vontade de criar mais museus, quando há tanto para fazer com os que se tem e quando não faltam os exemplos dos que ficaram sem sustento depois de se cortar a fita na inauguração. Penso que este poderá ser um ponto sobre o qual haverá consenso entre os profissionais dos museus: dignificar e reforçar o que já temos, construir uma política realista e duradoura para os museus, com respeito pelos acervos que preservam e pelos profissionais que neles trabalham, seria uma melhor opção no nosso contexto político-social-financeiro do que pensar em novos equipamentos. Por exemplo, lembro-me que quando cheguei a Portugal fiquei a pensar porque é que a história dos Descobrimentos não era uma história contada – bem contada, com as condições necessárias - pelo Museu de Marinha. Aliás, vi, precisamente, uma das melhores apresentações desta história num museu catalão, o Museu Marítimo de Barcelona, em 2001, antes da sua remodelação. Era uma parte pequena da exposição daquele museu, mas bem-feita.

"Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas", Joana Craveiro / Teatro do Vestido (Foto: João Tuna, retirada do BUALA)

Feitos estes dois pontos prévios, vamos supor que vivemos num outro mundo e que o novo museu tenha condições para desempenhar todas as suas funções. Seria necessário debatermos, de qualquer forma, a sua pertinência, o seu nome, o acervo e a narrativa.

1. Pertinência
A vontade da Câmara Municipal de Lisboa de criar o Museu das Descobertas, pode estar relacionada apenas com o boom turístico, uma forma de contribuir de forma rentável para a oferta turística da cidade. Se assim for, é uma opção pouco prudente e pouco interessante. Se assim for, desconfio que se vai optar pela narrativa glorificante, pela celebração do encontro das culturas e que não se vai tocar em assuntos sensíveis, dolorosos, complexos, actuais, para não estragar as férias a ninguém.

Se houver, no entanto, uma verdadeira consciência de que esta sociedade exige, em parte, e precisa, no geral, de olhar para si própria no século XXI, de lidar com as coisas (boas e más) do seu passado, de entender a forma como essas se reflectem e afectam o seu presente e de imaginar o seu futuro, este poderia ser um museu necessário. Considerando o lugar que a história dos Descobrimentos (da expansão portuguesa) tem para este país, para os seus cidadãos, para a construção da sua identidade; e considerando ainda , tratar-se de uma história hoje considerada controversa e multifacetada, que diz respeito não apenas aos Portugueses mas ao nosso mundo globalizado, este museu faria sentido.

2. O nome (associado também a conteúdos)
Vamos continuar, supondo que o propósito desse novo museu será o segundo, que é o que faria sentido hoje. Qual o nome que deverá ter? O que chamar a um museu que assumirá a responsabilidade de falar da expansão e das descobertas, do encontro e do confronto de culturas, do colonialismo, da escravatura, do pós-colonaliasmo, da nossa sociedade híbrida, do racismo? Partilho de todas as preocupações expressas na carta aberta anteriormente referida assinada pelos académicos. É também devido a essas preocupações que considero que nomes que soam a eufemismos, poéticos, metafóricos, românticos, pouco precisos, não seriam adequados, não dariam resposta ao que se pretende; isto é, se a intenção for de uma abordagem museológica no século XXI, que irá integrar as diversas vozes que pretendem ser ouvidas nesta matéria e promover o pensamento crítico sobre esta longa e complexa história. Assim, as propostas dos nossos colegas Matilde de Sousa Franco (de um “Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa”) e Luís Raposo (de um “Museu da Viagem”) encontram-me em desacordo.

Pedro Pereira Leite, numa outra nota que partilhou recentemente na lista Museum, dizia: “Tenho ideia que Matilde de Sousa Franco, tem desde sempre vindo a defender a ideia do tal museu da interculturalidade ou da celebração do ‘encontro de culturas’ tal como a elite intelectual portuguesa gosta de se referir à tragédia colonial e pós-colonial portuguesa.” E é mesmo esta a sensação que o artigo publicado no Observador transmite. Conhecemos o percurso da nossa colega e não há dúvida que é uma pessoa com conhecimentos e experiência nestas matérias, que as suas opiniões estão muito bem fundamentadas. No entanto, não deixa de transmitir alguma falta de empatia perante as outras versões desta história. Mesmo quando partilha do questionamento relativo ao uso da palavra “descobrimentos/descobertas” e reconhece que “há pessoas que não gostam”, este é um pequeno apontamento, que serve apenas para dedicar mais espaço ainda à defesa da alternativa da “interculturalidade”. E esta interculturalidade concretiza-se em exemplos como a linguística, a música, a botânica ou a culinária. Diz-se ainda que o que se pretende é criar um bem fundamentado Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa “de forma prática, aliciantemente pedagógica, e divertida (...)”. Fala-se deste museu como “solução para sarar as referidas feridas reabertas, as quais correm o risco de causar temíveis gangrenas se não as tratarmos de imediato, com sabedoria e diplomacia.” Não se concretiza, no entanto, a forma como se vai abordar neste museu os aspectos da história que muitos vêem como uma tragédia, cujas consequências ainda hoje muitos sentem na pele, as tais feridas. Considero que não é esta a abordagem adequada para o que se sente como o apelo de parte da sociedade lisboeta e portuguesa hoje em dia, em especial daquela que tem sido silenciada, porque não ouvida. Esta não é uma história apenas divertida. É também controversa, dolorosa e muito actual. A paz nunca virá com uma imposição de felicidade e consenso, apenas com a celebração do que nos une. No seu posicionamento inicial, na apresentação da sua visão global, Matilde de Sousa Franco aponta para uma abordagem museológica contemporânea. No entanto, não é isto que emerge quando procura concretizar as suas ideias.

"Libertação", André Amálio / Hotel Europa (Foto: Bruno Simão, retirada do jornal Público)

Luís Raposo reflecte num artigo no Público sobre as várias propostas avançadas em relação ao nome a dar a este museu e relembra-nos aquela que é a sua: Museu da Viagem. Considerando, lembro, que o que está em causa é a criação de um museu que conte a história da expansão portuguesa e do que ela traz, de bom e de mau, aos nossos dias, concordo com a sua análise em relação ao termo “descobrimentos”, e ainda com o que diz sobre os propostos museus “da interculturalidade”, “da emigração” e “da língua”. Considero, no entanto, que a sua proposta, “da viagem”, poderá ser alvo precisamente do mesmo tipo de crítica. Trata-se de nomes metafóricos e eufemísticos, e os seus conteúdos também o serão. Estarão a contornar a questão principal, sem abordar o seu cerne. Penso que não darão resposta ao já referido apelo que se sente na sociedade.

Considerando que esta história também não é apenas a do colonialismo e da escravatura, e que “expansão” não será um termo claro para muitos, ou mesmo aceite, a minha sugestão seria assumir o termo “Descobertas”. Com todas as conotações que teve no passado e que tem hoje em dia, com todas as reacções e críticas que provoca. É um termo claro para portugueses e estrangeiros, é assim que ainda se ensina nas escolas de vários países, permite entender de forma imediata qual o “objecto” do museu, e, muito sinceramente, não consigo pensar num lugar melhor do que o “Museu das Descobertas” para se questionar o próprio termo e poder acompanhar a evolução do nosso pensamento em torno de todas as questões que este engloba. Daqui a 15-20 anos, se o museu e todo o sistema à sua volta forem eficazes, poderá pensar-se num rebranding.


3. Conteúdos e narrativas
Passando para a parte dos conteúdos e das narrativas, Matilde de Sousa Franco e Luís Raposo deram-nos nos seus artigos ampla matéria para pensar. Fizeram propostas pertinentes e relevantes, mas, conforme já referi, parciais, considerando o propósito enunciado para este museu. António Filipe Pimentel, director do Museu de Arte Antiga, partilhou também a sua opinião num post no Facebook. Levantou questões concretas em relação ao acervo do futuro museu, aproveitando também para se referir ao contexto político e financeiro em que os museus em Portugal operam. No entanto, após estes pontos introdutórios, parece ter apenas um objectivo: aproveitar este momento como mais uma oportunidade para apresentar a narrativa do “primeiro museu”, da marca MNAA e do seu contributo para a marca Portugal, afirmando que o País é colocado, por via do MNAA, no mundo. Esta é uma estratégia, do meu ponto de vista, duvidosa e que leva neste momento a afirmações excessivas.

Mais concretamente, o que mais importa questionar no contexto da proposta para o novo museu é a afirmação que “é o acervo do Museu Nacional de Arte Antiga que integra, por natureza, material de sobra - para não dizer indispensável - para museografar, com dignidade e pertinência, os Descobrimentos/Viagem/Interculturalidade.” Não há dúvida que o MNAA tem material que pode contribuir para contar a história que o novo museu parece ter intenção de contar. Mas seria só uma pequena parte e contada através de objectos de arte. No entanto, esta história é muito mais do que arte antiga, pelo que a intenção do director do MNAA de a consignar ao domínio de conhecimento e à missão do seu museu parece estranha e exagerada. Ainda mais, quando o MNAA, e museus como o MNAA, não têm demonstrado interesse ou capacidade para interpretar as suas colecções sob um ponto de vista socio-político, além do âmbito da história de arte, tornando-os interessantes e relevantes também para quem não visita museus apenas para apreciar a arte.


Como imagino o Museu das Descobertas?

"Moçambique", mala voadora (Foto: Leonardo Lima Festival de Curitiba)
Para o Museu das Descobertas ser um museu relevante no século XXI deve ser sobretudo, no meu entender, um museu de história social, que receberá contributos de várias outras áreas (história da expansão, história marítima, história militar, com objectos relacionados com estas áreas e ainda de criação contemporânea) e que terá que se preocupar também com o “contemporary collecting” (as minhas desculpas pelo uso do termo inglês). Que tipo de objectos serão estes, de onde virão, não sei dizer, haverá pessoas muito mais habilitadas do que eu para responder a isto. Sei que esta é uma história que se inicia no século XV, cujas consequências, boas e más, chegam aos nossos dias. É o presente e o futuro que se deve debater, olhando para o que foi o passado. É o presente e o futuro que se deve discutir com todos os que se sentem tocados pela história e pela actualidade.

Isto deve reflectir-se também nas experiências, memórias, conhecimentos, origens, género e cor de pele dos membros da equipa que se vai constituir. E quem vai dirigir este “coro” deve ser alguém com capacidade de sentir empatia e de se preocupar com as necessidades de pessoas diversas (equipa e visitantes); alguém com conhecimentos técnicos/científicos sólidos, mas também curioso, disposto a aprender, humilde, sem medo do contraditório e do diálogo e ainda capaz de entender que isto é sobretudo uma história humana (não o são todas?); alguém cuja vontade de comunicar, partilhar, contribuir para a promoção do conhecimento e do debate dentro da sociedade – e, por essa via, para a promoção da justiça social - seja sincera, consciente. Parece uma super-pessoa? Podemos olhar para o trabalho de David Fleming nos National Museums Liverpool (que incluem o premiado International Slavery Museum), de Anne Pasternak no Brooklyn Museum ou de Maria Balshaw, primeiro na Whitworth Art Gallery (Manchester) e agora na TATE. São bons exemplos, reais.



Nota - Depois da publicação deste post, foi ainda publicado:



Bairro Padre Cruz, Lisboa (Foto: Maria Vlachou)

No comments: