Saturday, 5 May 2018

"Lindonéia, a Gioconda do subúrbio", da minha primeira visita à Pinacoteca de São Paulo

"Lindonéia, a Gioconda do subúrbio", Rubens Gerchman, Pinacoteca de São Paulo  (Foto: Maria Vlachou)

“Na frente do espelho
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda,feia
Lindonéia desaparecida
Despedaçados, atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor (...)”

Caetano Veloso, “Lindonéia”

Uma coisa da qual me apercebi logo nas primeiras visitas aos museus de São Paulo é que se gosta de longas introduções às exposições. A exposição “Vanguarda Brasileira dos anos 1960 – Coleção Roger Wright”, na Pinacoteca de São Paulo, não foi excepção.
Um texto assinado por José Augusto Ribeiro (Núcleo de Pesquisa e Curadoria) procura proporcionar ao visitante algumas referências para depois poder apreciar as obras expostas. Claramente, no entanto, o visitante em mente foi aquele capaz de dar significado a afirmações como “manifestações de inconformismo, contrárias a autoridades e oficialidades – em resistência à situação repressiva do regime político e na distenção das categorias artísticas, seja no teatro, no cinema, na música, na literatura”; e ainda a termos como “arte concreta e neoconcreta”, expressões antiarte”, “nouveau réalisme francês” (ver aqui alguns textos). Depois da leitura de seis parágrafos, que deixam o “visitante-em-que-o-curador-não-estava-a-pensar-quando- escrevia” com uma vaga ideia sobre o convite que lhe é dirigido, este entra na exposição para ser confrontado com as tabelas que habitualmente encontramos em exposições: as que identificam o nome do autor, o título da obra e os materiais de que foi feita.


A Lindonéia fez-me parar. Ou melhor, a tabela que a acompanhava fez-me parar: “Lindonéia, a Gioconda do subúrbio”. Olhei melhor para a serigrafia na parede. Por cima do retrato está escrito: “Um amor impossível”. Por baixo, “A Bela Lindonéia de 18 anos morreu instantaneamente”. Com os poucos conhecimentos que tenho sobre essa história, e considerando o contexto em que foram criadas as obras expostas, o retrato fez-me pensar em fotografias de pessoas desaparecidas, perseguidas pelas ditaduras dos países latinoamericanos. Não havia algo mais na exposição sobre esta peça. Dirigi-me aos vigilantes, lamentaram a falta de informação, falaram-me de uma pessoa de quem o artista estava apaixonado e disseram-me que o Caetano escreveu uma canção sobre ela. A minha curiosidade estava a aumentar, mas, claramente, a exposição não iria satisfazê-la. Os vigilantes aconselharam-me a consultar um posto digital no canto da sala. Não continha informação sobre as obras, mas, mesmo que a tivesse, no contexto da visita a uma exposição, prefiro poder aprender algo mais sobre a peça que me interessa estando em frente à mesma e não num canto da sala, afastada dela. Os vigilantes tiveram ainda a gentileza de chamar uma pessoa do serviço educativo do museu. Com grande simpatia, a colega desculpou-se pelo facto de não haver ninguém disponível para me acompanhar e mostrou-me a informação que o museu entrega aos professores para poderem preparar as visitas com os seus alunos. Pessoas muito disponíveis, muito empenhadas, mas saí da exposição sem saber nada mais sobre a Lindonéia. Já longe da obra e da Pinacoteca, pude aprender um pouco mais graças aos materiais que os colegas da Pinacoteca me entregaram e pude também ouvir a canção.

Hilma af Klint, Pinacoteca de São Paulo (Foto: Maria Vlachou)

A experiência foi diferente na exposição seguinte, “Hilma af Klint: mundos possíveis”
, a primeira exposição na América Latina da obra desta artista sueca, que desconhecia. O texto de introdução, assinado pelo curador e actual director da Pinacoteca Jochen Volz, despertou a minha curiosidade com referências ao percurso de uma mulher artista nascida em 1862, à sua ligação a movimentos espirituais que influenciaram a sua arte, à criação em segredo de 193 obras que compõem o conjunto “As Pinturas para o Templo”, que nunca foram publicamente expostas; e ainda, ao pedido deixado pela artista para que as suas obras espirituais se mantivessem em segredo por pelo menos 20 anos depois da sua morte. Nesta exposição, encontrei dois tipos de texto, lado a lado: aqueles escritos pelo curador e aqueles escritos pelo serviço educativo. Não percebi sempre as referências contidas nos primeiros e às vezes senti-me desconfortável com o que considerei ser uma forma demasiado didáctica de conduzir o meu olhar nos segundos (ver aqui). No entanto, com o que consegui retirar da combinação dos dois, pude conhecer e apreciar a obra de Hilma af Klint e do misterioso e fascinante “Grupo de Sexta-feira”.


Mas, o melhor vinha a seguir, nas salas de exposição permanente.

"América", Stephen Kessler, Pinacoteca de São Paulo (Foto: Maria Vlachou)

Arte em diálogo: observar imagens e relacionar ideias é uma iniciativa da responsabilidade do serviço educativo da Pinacoteca, que coloca dentro das salas expositivas obras contemporâneas e convida-nos a apreciá-las em associação com obras da colecção permanente do museu. Gostei particularmente da sala “O nacional na arte”, onde se lê: “A necessidade de definição de um caráter nacional para as artes no Brasil foi a principal questão que emergiu no campo cultural a partir da criação da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro. Para ser genuinamente brasileira, a arte deveria orientar-se pela representação de temas próprios à história do país. Ao mesmo tempo, deveria basear-se nos padrões de beleza e parâmetros de excelência estabelecidos como universais pelas academias europeias. A exuberância e a variedade da natureza brasileira surgem como aspectos indispensáveis dessa caracterização, assim como o indígena, transformado em personagem de romance, ópera e assunto de pintura.”

Cláudia Varejão, Pinacoteca de São Paulo (Photo: Maria Vlachou)
Nesta sala, somos convidados a reflectir sobre a obra “América”, de Stephan Kessler e uma fotografia de Cláudia Varejão. Podemos ler no painel: “Como os indígenas são apresentados nas duas obras? Ambas as obras apresentam percepções de artistas estrangeiros sobre o indígena do continente americano, mas de maneira bastante distinta, principalmente ao considerarmos seus contextos e formas de produção” (para começar, Kessler nunca viajou à América; Cláudia Varejão conviveu com povos indígenas brasileiros). Nesta mesma sala, a Pinacoteca convida o visitante a olhar à sua volta, a procurar outros elementos que poderiam ser considerados aspectos da identidade brasileira. E questiona-o: “Você se identifica pessoalmente com alguns desses elementos?”. (ver imagens aqui).

Pinacoteca de São Paulo (Photo: Maria Vlachou)
Pouco antes de entrar nesta sala, a conversa de um monitor do serviço educativo com um grupo de adolescentes fez-me abrandar, quis ficar um pouco a ouvir. Estavam em frente a mais um peça do conjunto Arte em Diálogo, jovens a reflectir juntamente com alguém “como eles”. Penso que o discurso desse rapaz – informado, sensível, apaixonado, actual, fluido –, a expressão na cara e as intervenções de alguns dos adolescentes do grupo foi o que mais me tocou na Pinacoteca. Foi o que me fez pensar “Isto é o que torna os museus tão especiais. Precisamos de mais disto. Porque é que não o temos?”.

Aliás, mesmo além da Pinacoteca, o que muito me marcou nas visitas a vários museus de São Paulo foi a diversidade que encontrei nas equipas: mais especificamente entre monitores, vigilantes, pessoas que trabalhavam nas bilheteiras. As “caras” desses museus reflectiam as caras que vemos na rua. E até aquelas que pretendemos que não vemos. Quantos museus se podem orgulhar disto?

Pinacoteca de São Paulo (Photo: Maria Vlachou)

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