"La Japonaise" de Claude Monet, Museum of Fine Arts Boston. (Imagem retirada de http://japaneseamericaninboston.blogspot.com) |
Para a Nandia
O meu primeiro contacto com o conceito de apropriação cultural aconteceu em Julho de 2015 devido às “Kimono Wednesdays” no Museum of Fine Arts Boston (MFA). Por ocasião da exibição de “La Japonaise” de Claude Monet (uma pintura da esposa do artista, rodeada de leques, usando uma peruca loira e um quimono vermelho), os visitantes eram convidados a vestir um quimono semelhante ao mostrado no quadro e a partilhar as suas fotos nas redes sociais. Segundo o museu, essa era uma maneira para os visitantes se envolverem com a pintura. Para algumas pessoas, no entanto, a actividade carecia de qualquer contexto em relação ao quimono, tornando-se apenas “divertida”; outros criticaram a iniciativa por estar a reforçar estereótipos e exotizar os asiáticos-americanos; para outros, era racismo flagrante (leiam o artigo de Seph Rodney).
Mesmo assim, nem todos os asiáticos-americanos, e especialmente os
japoneses-americanos (assim como muitos japoneses) foram da opinião que o
evento era “culturalmente insensível”, muito menos “racista” (leiam o artigo de Brian Boucher).
Manifestantes de ambos os lados deram a conhecer as suas opiniões à frente do
quadro. O museu cancelou o evento e emitiu um pedido de desculpas. Seis meses depois, organizou um debate para
se discutir “orientalismo, iconografia racializada, racismo institucional,
representação de grupos minoritários e apropriação cultural” e questionou:
“Como é que instituições como o MFA podem ser mais responsáveis perante seus
públicos? Quem fala por quem?” Em frente a 200 pessoas, o director do museu,
Matthew Teitelbaum, disse: “Quero começar com uma afirmação de reconhecimento e
um pedido de desculpas. Intitulámos o programa ‘Flirting With the Exotic’. Isso
foi mal pensado e peço desculpa por termos tratado de uma questão importante de
forma sensacionalista.” (mais sobre essa conversa).
"Open Casket" de Dana Schutz, Whitney Biennal (Foto: @hei_scott no Twitter) |
Tudo isso fez-me pensar e segui com grande interesse a
controvérsia que surgiu em 2017 em relação à exibição de “Open Casket” de Dana
Schutz na Whitney Biennal. A artista é branca e o quadro retrata o corpo de Emmett
Till, o menino negro de 14 anos cujo linchamento em 1955 ajudou a impulsionar o
Movimento dos Direitos Civis nos EUA. Foi Mamie Till, a mãe de Emmett, que
pediu que o caixão permanecesse aberto durante o seu funeral para "deixar
as pessoas ver". Dana Schultz sentiu-se tocada pelo drama da outra mãe. Disse: Na sua
tristeza e raiva, ela quis que a morte do seu filho não fosse apenas a sua dor,
mas a dor de toda a América." (ler mais) Os opositores disseram que, sendo Schutz branca,
esta não era a sua história para contar. Alguns ficaram à frente da pintura
para impedir que os visitantes a vissem. Outros pediram que a pintura fosse
removida e até mesmo destruída.
Isso incomodou-me. Todos têm o direito de protestar, de
partilhar opiniões diferentes sobre um tópico ou uma acção específica. Como
pessoas de origens e com experiências de vida diferentes, também temos
diferentes pontos de vista e diferentes sensibilidades. Ouvir os outros ajuda-nos
a ver o mundo através dos olhos de outra pessoa, algo que se tornou uma
necessidade absoluta no actual contexto político. Mas impedir que outros vejam
uma obra de arte (ou até pedir a sua destruição) significa praticar censura; alguns
assumem o direito de definir o que pode ser discutido e em que termos e,
consequentemente, o direito de proibir. Vamos assumir que apenas pessoas directamente
relacionadas com determinada história podem falar sobre ela? E todas as pessoas
relacionadas com determinada história pensam da mesma maneira sobre ela? (assim
como aconteceu com as “Kimono Wednesdays”, no caso do “Open Casket”, muitos
afro-americanos e negros em geral não tinham nada contra a pintura de Schutz).
Será que Dana Schutz e qualquer outro pai não é suposto (ou não lhe é
permitido) sentir-se tocado pela dor de uma outra mãe, falar sobre isso? Não é
esse o tipo de empatia que procuramos reestabelecer na nossa sociedade?
National Museum of African American History and Culture (Foto: Justin T. Gellerson/NYT) |
As minhas principais preocupações foram abordadas pela
artista e curadora cubano-americana Coco Fusco num artigo intitulado “Censorhsip, not the painting must go”.
Escreveu: “Presumir que os apelos pela censura e destruição constituem uma
resposta legítima ao que é considerado por alguns uma injustiça leva-nos por um
caminho muito sombrio. Eu nunca ficaria no caminho do protesto, particularmente
de um protesto informado, que visa sensibilizar em relação às políticas de
representação racial, um assunto com o qual tenho estado a lidar, em várias
qualidades, durante mais de 30 anos. (...) Uma conversa fundamentada sobre como
artistas e curadores de todas as origens representam traumas colectivos e a injustiça
racial seria, num mundo ideal, algo regular em museus de arte e escolas. (…)
Black e os seus defensores argumentam que a pintura é uma prova da insensibilidade branca; que uma ‘a pintura de um
menino negro morto por um artista branco’ não pode representar ‘corretamente’ a
vergonha branca; que este é um exemplo de uma prática inaceitável de artistas
brancos a transformar o sofrimento negro em lucro; que os artistas brancos que
querem ser bons não devem tratar a dor negra como material porque esta não é uma
‘matéria’ sua. (…) A autoridade para falar por ou sobre a cultura negra não é
garantida pela cor da pele ou linhagem, e pode ser prejudicada por inverdades. Os
meus 25 anos a ensinar arte mostraram-me que uma combinação de ignorância sobre
a história e supremacia do formalismo na arte-educação - mais do que o racismo
- está por trás do fracasso da maioria dos artistas de qualquer origem em lidar
efectivamente com questões raciais”.
Esta noção foi também explorada num artigo muito
informativo do escritor Kenan Malik sobre apropriação cultural: “Um
dos principais argumentos de muitos desses críticos é que se uma pessoa fala
através da sua identidade; que uma pessoa fala, como disse a escritora Nesrine
Malik, ‘como’: ‘como mulher’, ‘como muçulmana’, ‘como imigrante’. E os que não
são ‘como’ devem seguir as deixas daqueles que o são, especialmente se tiverem
privilégios por serem brancos, homens ou heterossexuais. ‘A experiência vivida’,
como disse Malik, ‘está a tornar-se na forma superior e mais veraz da verdade.’
E como observou a romancista Kamila Shamsie, "O que começou como uma
crítica pós-colonial pensada de certos tipos de textos imperiais tornou-se de
alguma forma numa ortodoxia peculiar que, essencialmente, nega a possibilidade
de envolvimento imaginativo com qualquer pessoa fora do seu pequeno círculo'”.
Mais que uma vez, senti-me irritada “como mulher europeia
branca privilegiada” com as tentativas de imposição de certas definições de
racismo e censura em workshops
profissionais. A primeira vez foi num workshop em Viena sobre “Racism and
Cultural Awareness”, financiado pela União Europeia (escrevi sobre isso neste blog). A
segunda vez foi recentemente no Porto, num workshop sobre “Decolonising Imagination” programado pelo IETM,
no qual quis participar com um interesse genuíno em ver os meus pontos de vista
desafiados e em explorar com outros colegas, de diferentes origens, o conceito
de apropriação cultural.
"Exhibit B" de Brett Bailey (Foto: Franck Pennant / AFP) |
A moderadora, Françoise Vergès, é uma historiadora e escritora política ligada ao movimento Décoloniser les Arts. Começou comentando o caso do “Exhibit B”, uma performance sobre “zoos humanos” criada pelo artista (branco) sul-africano Brett Bailey e que mostrava negros em jaulas. Décoloniser les Arts tentou cancelar a performance. Sem questionar o direito de uma pessoa de se sentir ofendida e de protestar, questionei a moderadora se o exercício de pressão para cancelar uma performance ou impedir que as pessoas a vejam não é contra-producente, quando desejamos envolver-nos num diálogo; e se não é censura. Vergès respondeu que é uma questão de poder (que ela concebe, presumo, apenas como poder branco sobre pessoas previamente colonizadas). Portanto, não, não considerou a sua acção censura. Outra participante disse-me que seguiu o conselho de um/a amigo/a negro/a, em cuja opinião confia, e que não foi ver a performance, por respeito e essa pessoa. Perguntei se ela seguiu o conselho dessa pessoa principalmente porque confiava na sua opinião ou porque ela era negra (duas qualidades muito distintas para este debate). Não foi mencionado na sessão, mas não é muito relevante para esta discussão, que, mais uma vez, os artistas negros da “Exhibit B” declararam que estavam “orgulhosos de serem artistas negros nesta peça” e que, longe de ser racista, “Exhibit B” era “uma ferramenta poderosa na luta contra o racismo” (leiam a declaração).
Mais opiniões foram partilhadas sobre esses casos e sobre o
conceito de apropriação cultural em geral, que podem ser encontradas no final
deste texto. Naturalmente, cada caso é um caso e não existe uma regra única
para tudo. A minha conclusão até agora é que há uma necessidade de
sensibilidade e de uma mente aberta a fim de discutir opiniões informadas e as
sensibilidades dos outros. O facto de algumas pessoas se assumirem como os únicos
representantes de certas comunidades, de se auto-nomearem guardiões dos
conceitos de racismo ou apropriação cultural, é profundamente problemático para
mim e não contribui para uma maior empatia entre pessoas de diferentes origens.
Colocarmo-nos no lugar da outra pessoa é uma maneira de ir além de nossa visão estreita
do mundo, de nos aproximarmos de outras pessoas e das suas experiências.
Cultura
é interacção, cultura é dar e receber. Citando Seph Rodney mais uma vez: “Beneficiaríamos
mais de pensadores críticos do que de guardiões. Somos meramente oportunistas e
míopes quando pomos um fim em conversas com base em pensamentos desleixados,
alimentados pela indignação”.
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