Uma cena do documentário O Silêncio dos Outros |
Há algumas semanas, li num artigo que o impasse nas negociações do Brexit
é considerado humilhante para a Grã-Bretanha, tanto por quem votou a favor como
por quem votou contra. De acordo com uma pesquisa, 90% dos entrevistados
concordaram que a forma como o Reino Unido está a lidar com o Brexit é uma
humilhação nacional. O autor do artigo, o Professor de Psicologia Política
Barry Richards, referiu-se a uma investigação cada vez mais influente na teoria
da psicologia que enfatiza que “a necessidade de dignidade é básica para a nossa
constituição psicológica. Sentir que nos foi retirada é muito ameaçador e
desestabilizador”. Richards faz a distinção entre o sentimento de humilhação e o
sentimento de traição e o seu conselho é evitar endossar e ampliar o sentimento
de humilhação. Sugere também que a palavra "humilhação" e outras
(como "traidor" ou "traição") não sejam usadas no debate.
Concordo que a necessidade de dignidade não deve ser
negligenciada (tal como o tem sido em muitos países, em diferentes situações).
Também é relevante lembrar que “as mentes daqueles que não se sentem seguros ou
dignos no mundo contemporâneo” podem virar-se para um líder “homem forte” que
promete reconquistar o orgulho perdido. Mas podemos lidar com a perda de
dignidade não dizendo a palavra? Isso fará com que o sentimento desapareça? A
palavra “irá atrapalhar qualquer processo posterior de reconciliação”, como
sugerido por Richards?
Acredito que dizer a palavra (dizer e não "usar")
é um passo importante no processo. É o reconhecimento de um sentimento ou de situação
legítimos. É preciso fazer algo, no entanto, começando por ... falar sobre
isso. Alguma vez a verdadeira reconciliação foi resultado do silenciamento? O
perdão foi resultado do esquecimento?
O documentário O Silêncio dos Outros trouxe-me essas mesmas questões. Não tinha
cohecimento do Pacto de Esquecimento espanhol, do "pacto de silêncio" em nome da reconciliação e em nome do futuro
da Espanha. Acreditaram, realmente, que as pessoas permaneceriam em silêncio
para sempre? Como podem ter pensado que a Espanha seria forte e o seu futuro
brilhante por não lidar com o passado, tentando impor um silêncio sobre ele,
chamando a busca de justiça das vítimas do franquismo de “vingança”, mantendo
os jovens ignorantes (uma das cenas mais chocantes no documentário, juntamente
com a votação na Assembleia Municipal de Madrid para a renomeação de ruas que tinham
os nomes de conhecidos torturadores)? Nerea, personagem do livro Patria
de Fernando Aramburu (sobre o grupo terrorista basco ETA e as suas vítimas),
também diz: “A nossa memória não se extingue com canhões de água. E vais ver
que eles vão atirar nas caras das vítimas que nos recusamos a olhar para o futuro.
Eles dirão que estamos à procura de vingança." O perdão, porém - e paz e a reconciliação
- não são o resultado do silêncio no livro de Aramburu.
O 30º aniversário do massacre de Tiananmen em 4 de Junho
levantou, igualmente, a questão do esquecimento forçado. As jornalistas Luisa
Lim e Ilaria Maria Sala escreveram sobre a forma como testemunharam o Grande Esquecimento de
Pequim, em outras palavras, como o Estado “apagou sistematicamente as
evidências e a memória dessa repressão violenta usando o seu aparato altamente
tecnológico de censura e controlo”. Uma das pessoas entrevistadas por Luisa Lim
para o seu livro The People's Republic of Amnesia; Tiananmen Revisited, a
co-fundadora das Mães de Tiananmen Zhang Xianling, disse-lhe que uma vez
conseguiu realizar um pequeno acto de recordação no local onde o seu filho de
19 anos foi morto com uma bala na cabeça. “No ano seguinte, uma câmera de
circuito fechado foi colocada naquele local para impedir qualquer acto público
de memória.” A abertura em Abril de um museu em Hong Kong para a comemoração do massacre foi recebida com alguns vandalismos e com protestos moderados. Um
participante disse que os moradores locais estavam preocupados que o museu iria
perturbar a comunidade. “Este edifício tornará as nossas vidas muito
desconfortáveis. Nós somos apenas pessoas normais que querem viver uma vida
pacífica.” A paz vem com o silêncio e o esquecimento? Lee Cheuk-yan, secretário
da Aliança de Hong Kong para o Apoio aos Movimentos Patrióticos Democráticos da
China (que criou o museu graças a donativos públicos), disse que o museu serve um
interesse público. “A luta de 4 de Junho é a lembrança contra o esquecimento.
Acreditamos que quanto mais as pessoas tentam suprimir o museu, mais isso
mostra como é importante para Hong Kong e para o mundo.” Os protestos em curso e as enormes marchas pela democracia em Hong Kong mostram que as pessoas estão
determinadas a não esquecer.
Estamos todos muito familiarizados com declarações como
“nunca mais” ou “nunca esquecer” ou “aqueles que não conhecem a história estão
condenados a repeti-la”. Museus, monumentos, arquivos dizem estar ao serviço da
memória. E, no entanto, essas afirmações são diariamente postas à prova nos
dias de hoje, e frequentemente nos confrontamos com tentativas oficiais de impor
um silêncio, de apagar certas memórias, em nome da paz e da reconciliação.
Reconciliação baseada na amnésia, paz baseada no silêncio estão condenadas a
ser de curta duração. A coesão de uma comunidade deve ser o resultado do
conhecimento; o seu orgulho não pode basear-se, como frequentemente acontece,
na arrogância mal-informada. Não desejemos a leveza da ignorância... Alguma vez houve
um futuro melhor nisso? Alguma vez haverá?
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