Saturday 22 June 2019

Primeiros pensamentos sobre o Plano Nacional das Artes



Houve dois momentos para uma primeira apreciação do Plano Nacional das Artes (PNA): a sua apresentação pública, no passado dia 18 de Junho e a leitura do documento. Começarei por partilhar os meus pensamentos sobre o primeiro.

Sessão esgotada nos estúdios Victor Córdon para ouvir a apresentação do PNA. Muitos colegas, jornalistas, pessoas que representavam instituições privadas que apoiam o sector cultural e as artes. Sentia-se a boa disposição e a expectativa, misturada com alguma desconfiança (“Será desta?). Penso que aquele momento de encontro e tudo o que se sentia no ar foi um bom sinal de que “o sector” é constituído por profissionais que continuam interessados e prontos para se envolver num esforço comum que possa valorizar, apoiar e fortalecer o seu trabalho e contributo para a sociedade.

Dito isto, seria impossível não reparar na grande ausência dos profissionais dos museus. As presenças contavam-se pelos dedos das duas mãos. Este facto veio intensificar a minha preocupação de que esta parte do sector vive um momento de grande desalento, desmotivação, falta de visão e, consequentemente, alguma desorientação em relação ao seu papel na sociedade. A ausência desses colegas em momentos de reflexão e de acção grandes e pequenos, formais e não formais, tem sido notória nos últimos tempos. Considero que será necessário reconhecer com urgência os sinais desta situação e pensar no futuro, próximo e longínquo (poderia ser uma das tarefas do recém-constituído Grupo de Projecto para os “Museus no Futuro”).

Uma das primeiras impressões que tive da apresentação pública do PNA foi o uso indiscriminado das palavras “cultura” e “artes” (mais tarde, juntou-se também a palavra “património”). Nos últimos meses, em encontros e conferências a que assisti em Portugal e no estrangeiro, este uso indiscriminado das palavras tem vindo a ser muito questionado. Pessoalmente, considero-o um sinal preocupante, porque, se esta confusão persiste entre os membros do sector, o seu impacto na relação dos profissionais com os cidadãos, o distanciamento de grande parte da população portuguesa, será intensificado (penso concretamente no “melhor padeiro de Portalegre” – programa O Último Apaga A Luz, de 14 de Junho, a partir de 10'37'').

Uma outra questão que se me levantou no dia da apresentação é o foco na escola. A minha crítica a isso não está dissociada do ponto anterior. É mais que natural, e desejável, que um plano nacional das artes tenha como um principal “público-alvo” a comunidade escolar. Um entre outros. Apesar de não terem faltado referências à inclusão, ao acesso, a comunidades chamadas “vulneráveis”, não há dúvida que a principal atenção foi dada à escola. E fez-me, precisamente, pensar na escola, sobretudo a partir do momento que o Ministro da Educação tomou a palavra. Pensei no percurso escolar do meu filho, hoje com 14 anos, nas experiências culturais e artísticas que as suas escolas (três diferentes – 1º, 2º e 3º ciclo) lhe têm proporcionado até agora, assim como nas oportunidades que ele tem tido para desenvolver o seu pensamento crítico. Considero que nada disto aconteceu na escola. Por um lado, porque muitos professores não estão preparados ou interessados em assumir esta responsabilidade como sendo também sua. Por outro, porque os que estão preparados e interessados (e eles existem e deveriam ter todo o nosso apoio) têm vindo a ver as suas condições de trabalho a deteriorar-se significativamente. Pergunto-me se terá havido um diagnóstico da parte do Ministério da Educação antes de se trabalhar no plano. Até porque o discurso do Ministro me pareceu inexplicavelmente triunfante em relação ao que se faz actualmente, quando eu penso frequentemente naquelas crianças e jovens cujas famílias não lhes proporcionam, por diversas razões, uma série de oportunidades. Hoje, não podemos fingir ignorar o impacto que certas oportunidades dadas a pessoas jovens (ou a falta delas) podem ter na construção da sociedade do futuro. E da sua cultura.

Passando para o segundo momento, hoje tive a oportunidade de ler o PNA. É o resultado de uma boa reflexão, por pessoas que conhecem bem estas matérias – colegas cuja experiência reconhecemos e respeitamos. Assim, conseguiram reunir no PNA aqueles princípios que nos movem no nosso dia-a-dia e construir uma visão partilhada por muitos entre nós. As premissas e valores (pág. 15-17) e os princípios estratégicos anunciados (pág. 19) mostram que existe um rumo claro, que poderá resultar numa acção sólida. As reacções vindas de vários colegas, à medida que iam lendo o documento, demonstravam grande entusiasmo e motivação para fazer parte e poder contribuir. Um começo promissor, um conjunto de ideias que podem não ser propriamente novas, mas que criam alguma esperança quando aparecem bem-construídas num plano de acção a médio e longo prazo.



A leitura do PNA veio confirmar algumas das preocupações sentidas no dia da apresentação e outras ainda. Porque o sector (e o país) precisa urgentemente de ver as boas teorias postas em prática, gostaria de as partilhar aqui.

O uso indiscriminado das palavras “cultura”, “artes” e “património”, já referido em relação à apresentação público do PNA, verifica-se também no documento. Penso que neste momento inicial será útil voltar a pensar nelas e esclarecer o que cada uma significa no âmbito do PNA, porque isto irá afectar a acção no terreno, os objectivos traçados, a forma de avaliar os resultados obtidos. A confusão em relação a estas palavras contribui, no meu ver, de forma decisiva para uma certa arrogância projectada por vários membros do nosso sector e pela falta de relação com os cidadãos. Uma arrogância que, em muitos casos, vem contrariar a ideia de “para todos e com cada um”.

Apesar de não ter havido uma referência clara à construção de uma democracia cultural no dia da apresentação, esta vem claramente referida no documento (pág. 16), de mãos dadas com a “democratização”. O país (muitos países) necessitam hoje que trabalhemos de forma consciente e honesta na construção da democracia cultural. A democratização (muitas vezes associada – também no programa deste governo – às entradas gratuitas e aos conteúdos digitais) perpetua práticas que garantem o acesso a uma cultura definida por alguns peritos como sendo “de mérito”, que reforçam a distinção entre “alta” e “baixa” cultura, que demonstram um entendimento da cultura como produção de alguns para usufruto de outros. Mais uma vez, contraria-se o princípio “para todos e com cada um” e este documento dá também sinais de ter ideias mais concretas sobre a democratização da cultura (pág. 16 e ainda em compromissos e acções propostas nas pág. 25 e 26) e mais vagas sobre a construção de uma cultura democrática. Penso que esta parte pode e deve ser melhor desenvolvida no âmbito do PNA.

O foco na escola confirma-se também no documento. Apesar de haver referências aos seniores ou a comunidades “vulneráveis” (coloco a palavra entre aspas, porque questiono o seu uso neste contexto) ou excluídas, a escola continua a ocupar um lugar preponderante, ao ponto de nos questionarmos se a referência a outros grupos não será, em termos práticos, algo residual. Este sentimento ficou reforçado pela forma como os objectivos relacionados com a escola não se “arrumam” na página 19 num bloco, assumindo tratar-se de um público-alvo concreto, mas misturam-se constantemente com outros, apresentando uma versão confusa dos objectivos do PNA (com a escola a influenciar o seu subconsciente e a limitar a sua acção?).

Apesar do PNA mostrar-se consciente da obrigação e necessidade de trabalhar para os “vulneráveis” e excluídos, espero que na prática possa mostrar-se também consciente que a cultura tem, ela própria, como sector, problemas de relacionamento e de representatividade com muitos outros grupos; e que os “vulneráveis” e excluídos até podem ter uma cultura forte, mas marginalizada e invisibilizada pelo próprio sistema.

Por último, o orçamento. Pareceu-me ouvir na apresentação uma referência a €500.000. Será isso? Não será muito pouco, considerada a ambição – legítima e muito esperada? E porque quanto mais pequeno o orçamento, melhor se deve aproveitar os recursos existentes, no momento em que se anuncia, por exemplo, mais um portal, devemos perguntar: o que terá acontecido ao Portal das Experiências Culturais, apresentado em Junho de 2015 como parte da Estratégia Nacional para a Educação e Cultura e que dantes podíamos encontrar em www.educacaocultura.gov.pt?

Saí da apresentação do PNA (e acabei a leitura do documento) com a necessidade de entender melhor: O que é que os Ministérios da Cultura e da Educação entendem por “inclusão”, “acesso”? O que é que se verifica na sociedade portuguesa e quais os assuntos que estes dois ministérios consideram que devem ser abordados e trabalhados e porquê? O PNA é uma resposta a quê? Acredito que as acções concretas que virão a ser desenvolvidas irão dar resposta a algumas destas dúvidas iniciais.

“Uma relação permanente com as artes e o património de diferentes culturas ensina, também, a respeitar a experiência do outro, a ser mais receptivo à sua cultura, à sua interpretação do mundo, promovendo a partilha, a argumentação, o conhecimento de critérios de juizo de gosto e da sua evolução histórica”, lê-se na página 16. Sorri, porque lembrei-me da discussão pública à volta do Museu das Descobertas ou do racismo em Portugal; das opiniões partilhadas por muitas figuras influentes (algumas pertencentes à área do património e da cultura) e da forma como receberam e reagiram às opiniões do “outro” - que há muito que não é “outro”, mas que continua a ser tratado como tal. A que Educação do passado (?) devemos esta Cultura do presente? E como lidar com ela?


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