Houve dois momentos para uma primeira apreciação do Plano
Nacional das Artes (PNA): a sua apresentação pública, no passado dia 18 de
Junho e a leitura do documento. Começarei por partilhar os meus pensamentos sobre
o primeiro.
Sessão esgotada nos estúdios Victor Córdon para ouvir a apresentação
do PNA. Muitos colegas, jornalistas, pessoas que representavam instituições privadas
que apoiam o sector cultural e as artes. Sentia-se a boa disposição e a
expectativa, misturada com alguma desconfiança (“Será desta?). Penso que aquele
momento de encontro e tudo o que se sentia no ar foi um bom sinal de que “o
sector” é constituído por profissionais que continuam interessados e prontos
para se envolver num esforço comum que possa valorizar, apoiar e fortalecer o seu
trabalho e contributo para a sociedade.
Dito isto, seria impossível não reparar na grande ausência
dos profissionais dos museus. As presenças contavam-se pelos dedos das duas
mãos. Este facto veio intensificar a minha preocupação de que esta parte do
sector vive um momento de grande desalento, desmotivação, falta de visão e,
consequentemente, alguma desorientação em relação ao seu papel na sociedade. A
ausência desses colegas em momentos de reflexão e de acção grandes e pequenos,
formais e não formais, tem sido notória nos últimos tempos. Considero que será
necessário reconhecer com urgência os sinais desta situação e pensar no futuro,
próximo e longínquo (poderia ser uma das tarefas do recém-constituído Grupo
de Projecto para os “Museus no Futuro”).
Uma das primeiras impressões que tive da apresentação
pública do PNA foi o uso indiscriminado das palavras “cultura” e “artes”
(mais tarde, juntou-se também a palavra “património”). Nos últimos meses, em encontros
e conferências a que assisti em Portugal e no estrangeiro, este uso indiscriminado
das palavras tem vindo a ser muito questionado. Pessoalmente, considero-o um
sinal preocupante, porque, se esta confusão persiste entre os membros do sector,
o seu impacto na relação dos profissionais com os cidadãos, o distanciamento de
grande parte da população portuguesa, será intensificado (penso concretamente no
“melhor padeiro de Portalegre” – programa O Último Apaga A
Luz, de 14 de Junho, a partir de 10'37'').
Uma outra questão que se me levantou no dia da apresentação
é o foco na escola. A minha crítica a isso não está dissociada do ponto
anterior. É mais que natural, e desejável, que um plano nacional das artes tenha
como um principal “público-alvo” a comunidade escolar. Um entre outros.
Apesar de não terem faltado referências à inclusão, ao acesso, a comunidades chamadas
“vulneráveis”, não há dúvida que a principal atenção foi dada à escola. E fez-me,
precisamente, pensar na escola, sobretudo a partir do momento que o Ministro da
Educação tomou a palavra. Pensei no percurso escolar do meu filho, hoje com 14
anos, nas experiências culturais e artísticas que as suas escolas (três
diferentes – 1º, 2º e 3º ciclo) lhe têm proporcionado até agora, assim como nas
oportunidades que ele tem tido para desenvolver o seu pensamento crítico. Considero
que nada disto aconteceu na escola. Por um lado, porque muitos professores não
estão preparados ou interessados em assumir esta responsabilidade como sendo
também sua. Por outro, porque os que estão preparados e interessados (e eles
existem e deveriam ter todo o nosso apoio) têm vindo a ver as suas condições de
trabalho a deteriorar-se significativamente. Pergunto-me se terá havido um
diagnóstico da parte do Ministério da Educação antes de se trabalhar no plano.
Até porque o discurso do Ministro me pareceu inexplicavelmente triunfante em
relação ao que se faz actualmente, quando eu penso frequentemente naquelas crianças
e jovens cujas famílias não lhes proporcionam, por diversas razões, uma série
de oportunidades. Hoje, não podemos fingir ignorar o impacto que certas
oportunidades dadas a pessoas jovens (ou a falta delas) podem ter na construção
da sociedade do futuro. E da sua cultura.
Passando para o segundo momento, hoje tive a oportunidade
de ler o PNA. É o resultado de uma boa reflexão, por pessoas que conhecem bem
estas matérias – colegas cuja experiência reconhecemos e respeitamos. Assim, conseguiram
reunir no PNA aqueles princípios que nos movem no nosso dia-a-dia e construir
uma visão partilhada por muitos entre nós. As premissas e valores (pág. 15-17) e
os princípios estratégicos anunciados (pág. 19) mostram que existe um rumo
claro, que poderá resultar numa acção sólida. As reacções vindas de vários
colegas, à medida que iam lendo o documento, demonstravam grande entusiasmo e
motivação para fazer parte e poder contribuir. Um começo promissor, um conjunto
de ideias que podem não ser propriamente novas, mas que criam alguma esperança
quando aparecem bem-construídas num plano de acção a médio e longo prazo.
A leitura do PNA veio confirmar algumas das preocupações
sentidas no dia da apresentação e outras ainda. Porque o sector (e o país) precisa
urgentemente de ver as boas teorias postas em prática, gostaria de as partilhar
aqui.
O uso indiscriminado das palavras “cultura”, “artes” e “património”, já referido em relação à apresentação público do PNA, verifica-se também no documento. Penso que neste momento inicial será útil voltar a pensar nelas e esclarecer o que cada uma significa no âmbito do PNA, porque isto irá afectar a acção no terreno, os objectivos traçados, a forma de avaliar os resultados obtidos. A confusão em relação a estas palavras contribui, no meu ver, de forma decisiva para uma certa arrogância projectada por vários membros do nosso sector e pela falta de relação com os cidadãos. Uma arrogância que, em muitos casos, vem contrariar a ideia de “para todos e com cada um”.
Apesar de não ter havido uma referência clara à construção
de uma democracia cultural no dia da apresentação, esta vem claramente
referida no documento (pág. 16), de mãos dadas com a “democratização”. O país (muitos
países) necessitam hoje que trabalhemos de forma consciente e honesta na construção
da democracia cultural. A democratização (muitas vezes associada – também no
programa deste governo – às entradas gratuitas e aos conteúdos digitais) perpetua
práticas que garantem o acesso a uma cultura definida por alguns peritos como sendo
“de mérito”, que reforçam a distinção entre “alta” e “baixa” cultura, que demonstram
um entendimento da cultura como produção de alguns para usufruto de outros.
Mais uma vez, contraria-se o princípio “para todos e com cada um” e este
documento dá também sinais de ter ideias mais concretas sobre a democratização
da cultura (pág. 16 e ainda em compromissos e acções propostas nas pág. 25 e
26) e mais vagas sobre a construção de uma cultura democrática. Penso que esta parte
pode e deve ser melhor desenvolvida no âmbito do PNA.
O foco na escola confirma-se também no documento.
Apesar de haver referências aos seniores ou a comunidades “vulneráveis” (coloco
a palavra entre aspas, porque questiono o seu uso neste contexto) ou excluídas,
a escola continua a ocupar um lugar preponderante, ao ponto de nos questionarmos
se a referência a outros grupos não será, em termos práticos, algo residual. Este
sentimento ficou reforçado pela forma como os objectivos relacionados com a
escola não se “arrumam” na página 19 num bloco, assumindo tratar-se de um
público-alvo concreto, mas misturam-se constantemente com outros, apresentando
uma versão confusa dos objectivos do PNA (com a escola a influenciar o seu
subconsciente e a limitar a sua acção?).
Apesar do PNA mostrar-se consciente da obrigação e necessidade
de trabalhar para os “vulneráveis” e excluídos, espero que na prática possa
mostrar-se também consciente que a cultura tem, ela própria, como sector,
problemas de relacionamento e de representatividade com muitos outros grupos; e
que os “vulneráveis” e excluídos até podem ter uma cultura forte, mas
marginalizada e invisibilizada pelo próprio sistema.
Por último, o orçamento. Pareceu-me ouvir na
apresentação uma referência a €500.000. Será isso? Não será muito pouco, considerada
a ambição – legítima e muito esperada? E porque quanto mais pequeno o
orçamento, melhor se deve aproveitar os recursos existentes, no momento em que
se anuncia, por exemplo, mais um portal, devemos perguntar: o que terá acontecido
ao Portal das Experiências Culturais, apresentado
em Junho de 2015 como parte da Estratégia Nacional para a Educação e Cultura e que dantes podíamos
encontrar em www.educacaocultura.gov.pt?
Saí da apresentação do PNA (e acabei a leitura do documento)
com a necessidade de entender melhor: O que é que os Ministérios da Cultura e
da Educação entendem por “inclusão”, “acesso”? O que é que se verifica na sociedade
portuguesa e quais os assuntos que estes dois ministérios consideram que devem
ser abordados e trabalhados e porquê? O PNA é uma resposta a quê? Acredito que
as acções concretas que virão a ser desenvolvidas irão dar resposta a algumas
destas dúvidas iniciais.
“Uma relação permanente com as artes e o património de
diferentes culturas ensina, também, a respeitar a experiência do outro, a ser
mais receptivo à sua cultura, à sua interpretação do mundo, promovendo a partilha,
a argumentação, o conhecimento de critérios de juizo de gosto e da sua evolução
histórica”, lê-se na página 16. Sorri, porque lembrei-me da discussão pública à
volta do Museu das Descobertas ou do racismo em Portugal; das opiniões
partilhadas por muitas figuras influentes (algumas pertencentes à área do património
e da cultura) e da forma como receberam e reagiram às opiniões do “outro” - que
há muito que não é “outro”, mas que continua a ser tratado como tal. A que Educação
do passado (?) devemos esta Cultura do presente? E como lidar com ela?
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