Entrada do MoMA (Foto: Maria Vlachou) |
No início deste mês, a caminho do Congresso do ISPA,
tinha algumas expectativas concretas: a oportunidade de uma intensa reflexão
política sobre o sector cultural em todo o mundo; a visita ao novo MoMA e ao seu People's Studio; o festival “Under the Radar” do Public Theatre e assistir a “Not I” de Beckett com Jess
Thom,
bem como a “Feos” de Guillermo Calderon. Tive tudo isso e muito mais (oh ... muito mais ...). E ainda assim, voltei
com um sentimento agridoce em relação ao nosso sector e à imagem que temos de
nós próprios.
O primeiro grande impacto ocorreu logo no primeiro dia do
Congresso. Uma das pessoas convidadas a participar no primeiro painel foi o
artista libanês Hamed Sinno. Houve um momento em que se dirigiu à plateia (disseram-nos
que éramos mais de 600 pessoas de 57 regiões diferentes) e perguntou: “Quantos
de vós aqui sabem sobre a revolução que está a acontecer no Líbano nos
últimos três meses? Por favor, levantem a vossa mão”. Não ousei olhar, mas
Sinno foi rápido a calcular que cerca de 10% dos presentes tinham levantado a
mão. "Tudo bem, não faz mal", disse ele. A sério, não faz mal?
Aqui estávamos nós, mais de 600 pessoas que dizem acreditar
de uma forma apaixonada na cultura e no seu poder de promover mudança (mudança
revolucionária, até), ajudar as pessoas a redescobrir a sua empatia e
humanismo, promover o diálogo e a compreensão. E, no entanto, 90% de nós não
tinham ouvido falar da revolução no Líbano. Alguns culparam os meios de
comunicação... Mas todos os meios internacionais mainstream que eu sigo
(e alguns específicos para a nossa área, como o Hyperallergic e The Art Newspaper) tinham publicado reportagens sobre o Líbano, uma revolução na qual artistas e
organizações artísticas têm estado amplamente envolvidos e tomado posição. Serão
os meios de comunicação ou seremos nós? A nossa falta de curiosidade, o pouco
tempo que investimos na leitura? Qual é o mundo que vamos ajudar a mudar, a melhorar,
se não tivermos conhecimento de tais eventos (sem esquecer outros, menos
conhecidos e falados - como, por exemplo a opressão dos Sámi pelo estado sueco, que muitos ficaram a conhecer pelo painel seguinte, graças à Åsa Simma, Directora do Sámi Teáhter)?
Congresso do ISPA, Dia 1: Segunda da esquerda, o artista libanês Hamed Sinno (Foto Ira Fox) |
O segundo grande momento para mim no Congresso foi um
painel com Madani Younis, cuja demissão do Southbank Center em Outubro passado,
apenas 10 meses depois de ter sido contratado como creative director,
levantou algumas preocupações muito legítimas. Meses antes, tinha lido que Younis tinha pedido "um momento muito mais disruptivo",
criticando esse "novo paternalismo" das instituições culturais mainstream
conservadoras que decidem qual deve ser o ritmo da mudança. "Para mim isto
é perverso", disse Younis. “Como é que as próprias instituições que têm sido tão
estagnadas e tão lentas na sua resposta sentem que a responsabilidade é delas?
Para mim, isso tem de mudar."
Aproximadamente seis meses depois disto, Younis demitiu-se
do Southbank Center. Aparentemente, as coisas não mudariam. A crítica de teatro Lyn Gardner falou alto e claro: " É provável que [a demissão de Younis] venha reforçar certas
preocupações que, apesar de muitas das maiores e melhores instituições
artísticas do Reino Unido estarem ansiosas para falar em voz alta sobre o
aumento da diversidade e a importância de fazerem parte da sua comunidade, permanecem
menos dispostas a fazer realmente a caminhada quando se trata de mudarem elas
próprias. Porque a mudança real não é apenas cosmética, ela vem de dentro.” Quando
questionado sobre a sua demissão no Congresso, Younis também foi claro: “Não
sou a mascote de ninguém", disse ele. “Ninguém decide os meus valores por
mim.” Assim, demitiu-se. E embora a sua co-panelista Alicia Adams (de quem nos lembramos com muito carinho dos nossos tempos no Kennedy Center) tenha
questionado o que aconteceria se as pessoas não ficassem para lutar, ainda
assim, precisamos de demissões como as do Madani Younis e de profissionais como
ele, lúcidos, conscientes, prontos para afirmarem e defenderem os seus valores. Muitas pessoas na área
da cultura permanecem caladas, por medo ou porque assim é mais confortável.
Younis está agora a começar como chief executive producer no The Shed,
em Nova Iorque. Um espaço já bastante controverso, onde a equipa da frente de casa recentemente criou um sindicato,
desejando que o seu duro trabalho seja devidamente reconhecido. Estou curiosa para
ver como é que Younis se vai encaixar aqui.
Congresso do ISPA, Dia 2: Primeiro da direita, Madani Younis (Foto Ira Fox) |
Para além do Congresso, o momento alto da minha viagem foram
as três peças que vi no festival Under the Radar (todas elas com ou sobre
pessoas com deficiência). Para além de “Not I” e “Feos”, mencionados no início,
tive também a oportunidade de ver “The shadow whose prey the hunter becomes”, com
a companhia australiana Back to Back Theatre. Não é
apenas uma questão de ser ou não arte de qualidade. É uma arte diferente e
descobri o quanto preciso dela e o quanto me enche. As palavras de Oskar
Eustis, director do Public Theater, no programa vieram completar o meu
sentimento de felicidade: “São duas semanas abençoadas e utópicas, no auge do
inverno, na nossa própria primavera artística, renovando e rejuvenescendo-nos
tanto a nós mesmos, como a nossa antiga arte amada."
Deixei a minha visita ao MoMA para o fim. Na véspera, a minha
amiga e colega Chiara Organtini (óptima companheira no Congresso e também no
projecto RESHAPE) lembrou-me de um artigo no New York Times em Dezembro passado intitulado “How the superrich took over the museum world”. Este
é um artigo desconfortável, que nos lembra que os boards dos
museus norte-americanos são habitados por pessoas super-ricas "numa era de
crescente raiva devido às desigualdades económicas". O MoMA não é excepção.
A maioria dos membros do seu board, de acordo com o artigo, trabalha nas
finanças, no mundo corporativo, no sector imobiliário ou judicial, ou são
herdeiros ou cônjuges de super-ricos. Ao mesmo tempo, o sindicato dos funcionários
do museu tem protestado publicamente por causa dos baixos salários e do pagamento
de horas extraordinárias, procurando quebrar a "cultura do silêncio e do
medo na indústria”.
O artigo pesava ainda sobre mim quando estava a caminho do
museu, numa manhã fria de Sábado, o meu último dia em Nova Iorque. Encontrei
uma casa cheia, pessoas de todas as idades e de cores diferentes que pareciam
realmente apreciar o espaço, as obras de arte, a companhia uns dos outros. Não
acho que alguém estivesse preocupado naquele momento com os baixos salários da
equipa ou com os super-ricos que dominam o museu.
Um visitante em frente a "Christs's Entry Into Jerusalem" de Kara Walker, 2017 (Foto: Maria Vlachou) |
Mas deveríamos estar preocupados. Não se trata apenas do
MoMA e da sua equipa. E a cultura e as artes definitivamente não são um mundo à
parte, intocável por essas realidades. Estas coisas importam num mundo onde
estamos todos interligados e interdependentes. Estas coisas importam porque as pessoas importam. A
cultura do silêncio e do medo, a cultura da auto-censura, a cultura em que - alegremente ou dolorosamente – deixamos de lado os nossos valores e princípios para termos
dinheiro para mais um projecto, tudo isto não nos é desconhecido, independentemente
do país em que vivemos. Precisamos de criar comunidade, de estar ao lado uns
dos outros, de reencontrar o poder dentro de nós, de sair de nossa bolha e nos
expor a outras realidades e pontos de vista, a fim de ter uma melhor visão de
nós mesmos. Não há como servir verdadeiramente o campo da cultura e das artes
se não olharmos para dentro, se não conseguirmos reencontrar os nossos
valores e princípios, se não estivermos realmente curiosos, se não investirmos
tempo e esforço para conhecer o mundo à nossa volta e além e fazer algo.
Participei do congresso da ISPA pela segunda vez, graças ao
ISPA Global Fellowship. Sinto-me grata pela sua generosidade e hospitalidade.
People's Studio: Collective Imagination, MoMA (Foto: Maria Vlachou) |
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