Imagem retirada do website do Arts Council England. |
Há uns dias, li no Guardian um artigo sobre
o jovem violoncelista Sheku Kanneh-Mason. Kanneh-Mason tem 20 anos, ficou
conhecido quando tocou no casamento de Harry e Meghan e, há alguns dias, tornou-se
no primeiro violoncelista a chegar ao top 10 de música no Reino Unido. Ele sem
dúvida (e felizmente) teve as oportunidades certas, assim como cada jovem deveria
ter. Aproveitou-as e fez maravilhas com elas.
Kanneh-Mason está consciente da importância de ter a
oportunidade, de ter acesso. "Eu beneficiei de muita educação musical. Pensar
que muitas pessoas não terão nem a mais pequena hipótese de algo com o mesmo
nível é uma vergonha. A diversidade tem de começar muito antes das pessoas irem
às audições. Se a educação não tiver investimento e não for apoiada, nada
mudará.”
Lembrei-me das suas palavras quando li a nova estratégia para
os dez próximos anos do Arts Council England (ACE), Let's Create, que
diz que “Os grandes artistas, intérpretes, escritores e curadores de 2040 e
2050 precisam de ser nutridos agora.” Como
é bom ver uma organização de financiamento estatal reconhecer isso mesmo.
Para preparar este novo documento, o ACE conversou com mais
de 5.000 pessoas, não apenas com o “sector”, mas também com membros do público,
incluindo crianças e jovens. Conseguiram identificar algumas
"questões" que, ouso dizer, soariam familiares para profissionais e
pessoas em todos os países. Então, imaginem…
“[Na Inglaterra] Muitas pessoas se sentem desconfortáveis
com o rótulo 'as artes' e associam-no apenas às artes visuais ou à 'alta cultura',
como o bailado ou a ópera. Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas neste país tem
vidas culturais activas e valoriza oportunidades para ser criativa.
Existem grandes variações socio-económicas e geográficas
nos níveis de envolvimento com a cultura com financiamento público.
As oportunidades para crianças e jovens experimentarem a
criatividade e a cultura dentro e fora da escola não são iguais em todo o país.
Ainda existe uma falta persistente e generalizada de
diversidade nas indústrias criativas e nas organizações culturais com
financiamento público, embora a consciencialização sobre o assunto seja maior
do que costumava ser.
Os modelos de negócios das organizações culturais que
recebem financiamento público são muitas vezes frágeis (…)
Muitos profissionais criativos e líderes de organizações
culturais falam de um recuo em termos de inovação, da tomada de riscos e do
desenvolvimento sustentado dos talentos.” (p.9)
Considerando que estas são “as questões”, o ACE faz a
seguinte declaração em termos da sua estratégia:
“Valorizará o potencial criativo de cada um de nós,
proporcionará às comunidades de todos os cantos do país mais oportunidades para
apreciar a cultura e celebrar a grandeza de qualquer tipo. Marca uma mudança
significativa, mas evolutiva: honrar e aproveitar os sucessos da última década,
enquanto enfrenta os desafios e abraça as emocionantes possibilidades da
próxima. Esses desafios - desigualdade de riqueza e de oportunidades,
isolamento social e problemas de saúde mental e, acima de tudo, a emergência climática
acelerada - são muitos.”
Parece uma tentativa de colocar todas as palavras certas num
parágrafo e a tentação de dizer "como é que isto se traduz na
prática?" é quase irresistível. Ao mesmo tempo, esses são problemas reais,
conhecidos, que têm tido um enorme impacto em diferentes sociedades (e em
resultados eleitorais). Nos nossos países, não estamos nem perto de reconhecer
formalmente esse impacto e de ter uma discussão tão ampla; muito menos permitir
que esta molde uma política cultural pública. Mas... isto é Cultura.
O ACE identifica a seguir três (algo vagos) resultados
desejados (pp. 33-41): pessoas criativas, comunidades culturais, país criativo
e cultural. De seguida, associa-os a quatro princípios de investimento (pp.
45-53): ambição e qualidade; dinamismo; responsabilidade ambiental; inclusão e
relevância. “Acreditamos que as organizações comprometidas em aplicá-los
estarão mais aptas a apresentar os resultados desejados e a proporcionar
maiores benefícios para o público”, afirma o ACE (p.45).
De que é que eu gosto nesta estratégia?
Antes de tudo, do facto de servir para actualizar a
anterior (Great Art and Culture for Everyone),
mostrando um sector que se move metodicamente, aproveitando experiências e
conhecimentos anteriores, avaliando e definindo as etapas que levarão a
política para a frente. Além de, aparentemente, estar em contacto com a
sociedade à sua volta e elaborar políticas por causa dela e não apesar dela.
Também acho muito positivo que a estratégia reconheça que a
cultura e as artes sejam muito mais do que o consumo do trabalho dos artistas e
que seja necessário dissolver “barreiras entre artistas e o público com o qual
eles interagem” (p. 2), bem como criar as condições para que “os sectores
profissional e voluntário possam trabalhar em conjunto para ajudar a moldar uma
oferta cultural mais forte nas aldeias, vilas e cidades” (p.26). É sobre isso
que o relatório do King's College Towards Cultural Democracy alertava em 2017.
O documento está também bem estruturado, começando pela
identificação dos problemas que precisam de ser abordados, avançando para a definição
dos resultados desejados, mas também os filtros que o ACE usará para avaliar as
propostas, os chamados princípios de investimento. Parecem-me muito adequados,
considerando os problemas que a Inglaterra precisa de abordar e a mentalidade
necessária para os resolver com eficiência.
Finalmente, a parte da accountability é algo sempre
apreciado por aqueles entre nós que trabalham em contextos onde a tradição manda
congratularmo-nos porque fizemos algo, sem pensar no como o fizemos e se os
objectivos foram alcançados ou não. “Para cumprir esta estratégia, o Arts
Council England precisa de mudar”, lê-se na página 56, o início do capítulo
intitulado “O nosso papel e compromisso”.
Procurando as reacções do sector cultural inglês, encontrei
o documento ACE in a hole? An alternative cultural strategy for England,
escrito no mês passado por John Holden, John Kieffer, John Newbigin e Shelagh
Wright (com quem tenho o privilégio de trabalhar no projecto RESHAPE).
Baseia-se no documento de consulta do ACE Shaping the Next Ten Years, que
estabelece um primeiro rascunho de prioridades para o documento de estratégia.
Como foi escrito antes da publicação do documento final da estratégia, não sei
se foi levado em consideração pelo ACE. Neste momento, os dois documentos
parecem estar bastante próximos no que estão a advogar, especialmente no que
diz respeito a alguns dos problemas que precisam de ser abordados, com os
quatro autores a considerá-los no contexto de quatro princípios muito
relevantes: Justiça, Confiança, Accountability e Risco.
Telmo Martins (Foto: Maria Vlachou) |
Comecei este texto citando um jovem violoncelista
britânico. Termino citando um jovem contrabaixista português. Em 2016,
entrevistei para este blog Telmo Martins, um jovem membro da Orquestra
Geração. Nessa altura, tinha acabado de entrar na Escola Superior de Música.
Hoje, toca regularmente com a BBC National Orchestra of Wales.
"A
Orquestra Geração deu-me a música, mas também amigos em todo o mundo,
oportunidades para aprender mais e ajudar os outros. Em geral, tornei-me numa
pessoa melhor, aprendi a ouvir e a falar, a respeitar e a ser
disciplinado. (…) Os alunos do Conservatório não estão muito contentes com
os apoios que a Orquestra Geração está a receber e com todas as oportunidades
dadas aos seus membros. Falei com eles, entendo-os. Eles seguiram o caminho
normal e estão a pagar pelas suas aulas. Mas o que lhes digo é que, se não
fosse dessa maneira, eu não teria tido acesso doutra forma a esta
oportunidade."
Os jovens continuam a lembrar que há necessidade de haver
oportunidades. Estaremos a ouvir?
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