Saturday, 3 July 2021

Amor

 

Foto: Paulo Pimenta

O último capítulo do novo livro de Mike Murawski, Museums as agents of change (Museus como agentes de mudança), é intitulado “Propelled by love” (Impulsionados pelo amor). Embora o cuidar, a humanidade, a comunidade sejam referências muito presentes em todo o livro, nesse último capítulo Mike questiona sem rodeios: “E se o amor, acima de tudo, fosse o valor central a orientar a mudança radical, necessária nos museus hoje?".

Não se trata apenas dos museus ou do sector cultural, é claro. A pandemia tornou isso muito evidente. Também não é nada de novo. Estamos todos conscientes (ou fomos vítimas) do assédio moral (bullying) praticado por responsáveis ​​de grandes e pequenas organizações culturais; por pessoas que parecem ter o poder. Podemos ver quantas pessoas estão presas nos seus empregos, condicionadas, muitas vezes humilhadas e psicologicamente brutalizadas, incapazes de encontrar alegria e felicidade no que fazem e na maneira como o fazem. Uma pessoa desejar ser o melhor que pode não parece ser uma aspiração legítima. Ser menos, mostrar menos, é o que se espera.

No final de Maio, a Acesso Cultura promoveu um seminário sobre valores com o The Happy Museum e a Common Cause Foundation. De uma longa lista de valores, foi-nos pedido escolhermos os três mais importantes para nós. A seguir, perguntaram-nos se no nosso contexto de trabalho esses valores eram reconhecidos, se éramos livres para viver e trabalhar de acordo com eles. Apenas uma pessoa respondeu que “sim”. Pareceu estranho, desconfortável, triste. Como podemos dar tanto de nós mesmos contra, ou apesar de, os nossos valores? E porque é que o fazemos?

Voltando ao livro de Murawski, ele refere-se ao artigo “Art Practice, Learning and Love: Collaboration in Challenging Times”, escrito em 2014 por Emily Pringle, Chefe de Investigação da Tate Modern. Pringle identifica o amor como um valor central e “o valor fundamental que sustenta o que fazemos”. Ela cita o educador e filósofo brasileiro Paulo Freire: “É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de anticientífico.”

Mais que uma vez, senti que as minhas leituras são felizes sequências do acaso. Depois de, há cerca de dois anos, ter lido Be More Pirate, de Sam Conniff Allende, estou agora imersa no How To Be More Pirate. Inspirados na Idade de Ouro dos piratas, ambos os livros tiram lições do facto de os piratas terem identificado um sistema disfuncional e terem criado as suas próprias regras, o seu código pirata, para trazer mudanças. Ao contrário do que se possa pensar, a igualdade e o cuidar eram regras fundamentais para os piratas. “(…) As críticas ao sistema vêm, em última análise, de um lugar de amor. São o resultado de uma profunda frustração causada por saber o que realmente importa.”

O que me leva àquilo sobre o qual quero realmente falar hoje. O lugar de amor que é nestes dias o palco principal do Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa.

Na semana passada, não estive na estreia de Calígula morreu. Eu não, encenado por Marco Paiva. Tive, no entanto, o privilégio de assistir ao ensaio geral. Em palco, oito pessoas, oito atores. Um deles, foi ao teatro pela primeira vez há uns anos, quando o Teatro Nacional passou a ter espectáculos interpretados em Língua Gestual Portuguesa. Pensou que também gostaria de ser actor. No ano passado, foi à audição para esta peça, uma vez que estava explicitamente aberta a pessoas com deficiência e Surdas. Outro dos actores faz teatro há 20 anos. Esteve novamente no palco principal do Teatro Nacional há cinco, por ocasião dos 30 anos da CRINABEL Teatro, com a peça Uma menina perdida no seu século à procura do pai (um projecto lindamente captado no documentário intitulado, justamente, Ensaio de Amor). Recentemente, num seminário, esse actor disse-nos que tem orgulho em ganhar um salário com o seu trabalho. Outro ainda recebeu o prémio Goya Actor Revelação em 2019. Num dos discursos de agradecimento mais poderosos que já ouvi, ele disse aos membros do júri que não sabiam o que tinham feito ao atribuir o prémio a um actor com deficiência. Há, ainda, um outro actor, que recentemente nos disse num debate que, quando começou a participar em séries na televisão, não se filmavam planos abertos, para o público não ver que ele não tem membros.

Não sou crítico de teatro, não sei quais os aspectos deste trabalho que seriam apreciados por um profissional da área. Sei, no entanto, que estes e outros actores estão em cena no Teatro Nacional D. Maria II para serem vistos na íntegra, na totalidade do quem são e do que têm para partilhar connosco. O seu desempenho cativa e preenche-nos. Eles têm a oportunidade de ser o melhor que podem e retribuem generosamente.

Como normalmente acontece, há várias pessoas que não vemos envolvidas neste espectáculo. Dramaturgos, figurinistas, cenógrafos, desenhadores de luz, directores de palco, maquinistas. Existem também outras pessoas a quem não damos o devido reconhecimento, como equipas de frente de casa, produtores, pessoas que trabalham na comunicação, coordenadores de acessibilidade. Há também, neste caso, dois directores artísticos, Tiago Rodrigues (Teatro Nacional D. Maria II) e Alfredo Sanzol (Centro Dramático Nacional), que têm uma visão que empurra os limites e leva as coisas cada vez mais longe (incluindo a sua própria prática - vejam o debate). E, depois, há o Marco Paiva.

Tolentino de Mendonça, escreve no seu livro Uma Beleza que Nos Pertence que “Dizemos ‘amo’ sem que isso traga um estremecimento qualquer ou corresponda a um compromisso efectivo”. Marco tem um compromisso com o amor; e nós sentimos o estremecimento causado por esse compromisso.


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