Friday, 4 March 2022

Boicote cultural

 

Elena Kovalskaya. Screenshot do Facebook.

Há alguns dias, milhares de artistas russos assinaram uma carta aberta denunciando a invasão na Ucrânia. “Em nome da nossa comunidade profissional, é importante dizer que uma maior escalada da guerra resultará em consequências irreversíveis para os trabalhadores da cultura e das artes. O envolvimento com a cultura e as artes será quase impossível nessas condições.”

É impossível, para pessoas de ambos os lados e para muitas outras, para todos nós. É impossível no sentido de que o show can’t simply go on e não pode ser business as usual. Simplesmente não pode.

Algumas pessoas, colegas no sector cultural e outros cidadãos preocupados, começaram a expressar o seu desacordo no que diz respeito ao que chamam de “cancelamento de artistas russos” ou “censura” ou… ou…. Pelo que tenho visto, os únicos dois artistas que podemos dizer que foram, pessoalmente, “cancelados” são o maestro Valery Gergiev (um grande e desavergonhado aliado de Putin) e a cantora de ópera Anna Netrebko (que eu considero uma cidadã bastante inconsciente e para mim, apesar de sua excelência, uma artista bastante irrelevante). Pelo que sei, não houve uma exigência para que “todo e qualquer russo repudie Putin antes de poder apresentar-se na América ou na Europa”, como afirma Alex Ross num muito bom artigo no The New Yorker. Também não tenho conhecimento de qualquer “conversa sobre a remoção de compositores russos dos programas”. Talvez ainda não sejam propostas formais, mas apenas “conversas”, por isso devemos garantir que não se transformem em propostas ou práticas oficiais. Cancelar um artista russo, vivo ou morto, por ser russo seria absurdo e inaceitável. Mas será isso que está a acontecer neste momento?

O Festival de Cinema de Cannes emitiu um comunicado dizendo que “a menos que a guerra de invasão termine em condições que satisfaçam o povo ucraniano, foi decidido que não receberemos delegações oficiais russas nem aceitaremos a presença de qualquer pessoa ligada ao governo russo”. Ao mesmo tempo, saudou “a coragem de todos aqueles na Rússia que correram riscos para protestar contra o assalto e a invasão da Ucrânia. Entre eles estão artistas e profissionais do cinema que nunca deixaram de lutar contra o regime contemporâneo, que não podem ser associados a essas acções insuportáveis e aqueles que estão a bombardear a Ucrânia”. E acrescentou: “Fiel à sua história que começou em 1939 com a resistência à ditadura fascista e nazi, o Festival de Cannes irá sempre servir artistas e profissionais da indústria que levantam a voz para denunciar a violência, a repressão e as injustiças, com o objectivo principal de defender a paz e a liberdade”.

O maestro russo Semyon Bychkov cancelou os seus concertos deste verão com a Russian Youth Orchestra. “Quero que o espírito desta decisão seja inequivocamente claro: não é de forma alguma dirigido à orquestra ou ao seu público. O sofrimento emocional do povo russo neste momento, o sentimento de vergonha e as perdas económicas que ele sofre são reais. Assim como a sensação de desamparo perante a repressão infligida pelo regime. Aqueles indivíduos que se atrevem a opor-se a esta guerra colocam as suas próprias vidas em perigo. Precisam de nós, que somos livres para nos posicionarmos e dizermos: ‘As armas devem calar-se, para que possamos celebrar a vida sobre a morte’”.

Mais casos de apresentações e colaborações canceladas foram relatados pelo The Guardian e outros meios de comunicação (aqui e aqui). Pelo que tenho visto, referem-se a um boicote às relações profissionais com organizações culturais financiadas pelo Estado ou obras financiadas por este. Isso não é novo. Tem acontecido várias vezes no passado em relação a organizações culturais e obras de arte financiadas pelo Estado de Israel (mais sobre Cultural BDS).

Aqueles que se opõem ao boicote expressam a sua preocupação de que “Ao banir essas pessoas de eventos internacionais, a Europa está a silenciar a voz de protesto russa, isolando as pessoas que querem parar a guerra no meio daquelas que querem intensificá-la”. Dizem que “entenas e milhares de trabalhadores culturais russos discordaram abertamente da decisão do governo de iniciar uma guerra: eles condenam as suas ações, vão a protestos, apoiam a Ucrânia, e correm o risco de serem condenados por traição. Quase todos eles não votaram em Putin”. A minha boa amiga e colega Marta Porto questiona https://exame.com/colunistas/cultura-e-sociedade/cancelar-artistas-e-atletas-russos-nao-leva-a-lugar-nenhum/: “Se as instituições culturais em momentos de crise não são capazes de proteger artistas e defender a liberdade de criação, mobilidade e trabalhos artísticos, qual é a essência do seu trabalho?” Fez até uma pergunta mais difícil ainda no Facebook: “Afinal, eles [os artistas] devem ser punidos [ou responsabilizados] pelas decisões extremas de seus governantes?”

É sobre este ponto que acredito que precisamos de pensar um pouco melhor.

As pessoas (e não apenas os artistas) devem ser punidas pelas decisões e acções extremas de seus governantes? Não, não devem. As pessoas (incluindo os artistas) são responsáveis ​​pelas decisões e ações dos seus governantes? Acho que sim, todos somos responsáveis ​​e a questão aqui é se e como entendemos essa responsabilidade e o que fazemos a respeito. Nesse sentido, a cultura, a meu ver, não é excepcional, as pessoas que trabalham neste sector (artistas e outros) não são excepcionais.

Em todas as actividades económicas que serão atingidas pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), encontraremos pessoas que se manifestam contra Putin e condenam as suas acções, vão a protestos, apoiam a Ucrânia e arriscam a sua liberdade ou até mesmo sua integridade física. Ao mesmo tempo, na Cultura e em todos os outros campos, encontraremos pessoas que permanecem caladas, por vários motivos. Não desejo julgar ninguém nem exigir nenhum acto de heroísmo. É o que é. O que quero sobretudo dizer é que a Cultura não é excepcional. Em momentos de crise e de dilemas éticos, as pessoas no sector cultural ou que têm negócios com o sector cultural não são diferentes.

Então, o que devemos fazer?

A cultura não é apolítica. Assim, é natural que em graves momentos políticos, como o que estamos a viver, a Cultura esteja envolvida. Como já disse, cancelar artistas por serem russos é absurdo e inaceitável. Boicotar organizações culturais estatais e obras financiadas pelo Estado, no entanto, é uma questão totalmente diferente. O movimento BDS mostrou que é uma forma de pressão e também de quebrar o silêncio e de consciecializar. Não é um movimento contra artistas individuais e profissionais da cultura (embora isso os afecte), mas contra o que essas organizações representam, de quem elas recebem dinheiro e para fazer o quê.

Isso leva-me a um segundo ponto: no primeiro dia da guerra, a directora artística do Meyerhold  Theatre and Cultural Centre, Elena Kovalskaya, apresentou a sua demissão em protesto contra a invasão na Ucrânia dizendo que “É impossível trabalhar para um assassino e receber um salário dele”. Mais directores artísticos, artistas e profissionais da cultura russos demitiram-se dos seus cargos ou abandonaram projectos e muitos mais assinaram a carta aberta mencionada no início deste post. Estas são as pessoas do lado russo que deveriam ser de maior preocupação para nós agora. Estas são as pessoas (e não devemos esquecer tambémos jornalistas e muitos outros) que formam, geralmente, a minoria que não tem medo de falar, de correr riscos e que acaba por ser responsável por mudanças tão desejadas. Estas são as pessoas que, como diria Marta Porto, devemos proteger e apoiar. Mas isso não vai acontecer, não deve acontecer, continuando o business as usual com certas organizações culturais. Penso que isto não seria responsável ou respeitoso, simplesmente cancelaria os seus actos de coragem e decência.

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