Elena Kovalskaya. Screenshot do Facebook. |
Há alguns dias, milhares de artistas russos assinaram uma carta aberta denunciando a invasão na Ucrânia. “Em nome da nossa comunidade profissional, é importante dizer que uma maior escalada da guerra resultará em consequências irreversíveis para os trabalhadores da cultura e das artes. O envolvimento com a cultura e as artes será quase impossível nessas condições.”
É impossível, para pessoas de ambos os lados e para muitas outras, para todos nós. É impossível no sentido de que o show can’t simply go on e não pode ser business as usual. Simplesmente não pode.
Algumas pessoas, colegas no sector cultural e outros
cidadãos preocupados, começaram a expressar o seu desacordo no que diz respeito
ao que chamam de “cancelamento de artistas russos” ou “censura” ou… ou…. Pelo
que tenho visto, os únicos dois artistas que podemos dizer que foram,
pessoalmente, “cancelados” são o maestro Valery Gergiev (um grande e
desavergonhado aliado de Putin) e a cantora de ópera Anna Netrebko (que eu considero
uma cidadã bastante inconsciente e para mim, apesar de sua excelência, uma
artista bastante irrelevante). Pelo que sei, não houve uma exigência para que
“todo e qualquer russo repudie Putin antes de poder apresentar-se na América ou
na Europa”, como afirma Alex Ross num muito bom artigo no The New Yorker.
Também não tenho conhecimento de qualquer “conversa sobre a remoção de
compositores russos dos programas”. Talvez ainda não sejam propostas formais,
mas apenas “conversas”, por isso devemos garantir que não se transformem em
propostas ou práticas oficiais. Cancelar um artista russo, vivo ou morto, por
ser russo seria absurdo e inaceitável. Mas será isso que está a acontecer neste
momento?
O Festival de Cinema de Cannes emitiu um comunicado dizendo que “a menos que a guerra de invasão
termine em condições que satisfaçam o povo ucraniano, foi decidido que não
receberemos delegações oficiais russas nem aceitaremos a presença de qualquer
pessoa ligada ao governo russo”. Ao mesmo tempo, saudou “a coragem de todos
aqueles na Rússia que correram riscos para protestar contra o assalto e a
invasão da Ucrânia. Entre eles estão artistas e profissionais do cinema que
nunca deixaram de lutar contra o regime contemporâneo, que não podem ser
associados a essas acções insuportáveis e aqueles que estão a bombardear a
Ucrânia”. E acrescentou: “Fiel à sua história que começou em 1939 com a
resistência à ditadura fascista e nazi, o Festival de Cannes irá sempre servir
artistas e profissionais da indústria que levantam a voz para denunciar a
violência, a repressão e as injustiças, com o objectivo principal de defender a
paz e a liberdade”.
O maestro russo Semyon Bychkov cancelou os seus concertos deste
verão com a Russian Youth Orchestra.
“Quero que o espírito desta decisão seja inequivocamente claro: não é de forma
alguma dirigido à orquestra ou ao seu público. O sofrimento emocional do povo
russo neste momento, o sentimento de vergonha e as perdas económicas que ele sofre
são reais. Assim como a sensação de desamparo perante a repressão infligida
pelo regime. Aqueles indivíduos que se atrevem a opor-se a esta guerra colocam as
suas próprias vidas em perigo. Precisam de nós, que somos livres para nos
posicionarmos e dizermos: ‘As armas devem calar-se, para que possamos celebrar
a vida sobre a morte’”.
Mais casos de apresentações e colaborações canceladas foram
relatados pelo The Guardian e outros meios de comunicação (aqui e aqui).
Pelo que tenho visto, referem-se a um boicote às relações profissionais com organizações culturais financiadas pelo Estado ou obras
financiadas por este. Isso não é novo. Tem acontecido várias vezes no
passado em relação a organizações culturais e obras de arte financiadas pelo
Estado de Israel (mais sobre Cultural BDS).
Aqueles que se opõem ao boicote expressam a sua preocupação
de que “Ao banir essas pessoas de eventos internacionais, a Europa está a
silenciar a voz de protesto russa, isolando as pessoas que querem parar a
guerra no meio daquelas que querem intensificá-la”. Dizem que “entenas e
milhares de trabalhadores culturais russos discordaram abertamente da decisão
do governo de iniciar uma guerra: eles condenam as suas ações, vão a protestos,
apoiam a Ucrânia, e correm o risco de serem condenados por traição. Quase todos
eles não votaram em Putin”.
A minha boa amiga e colega Marta Porto questiona https://exame.com/colunistas/cultura-e-sociedade/cancelar-artistas-e-atletas-russos-nao-leva-a-lugar-nenhum/:
“Se as instituições culturais em momentos de crise não são capazes de proteger
artistas e defender a liberdade de criação, mobilidade e trabalhos artísticos,
qual é a essência do seu trabalho?” Fez até uma pergunta mais difícil ainda no
Facebook: “Afinal, eles [os artistas] devem ser punidos [ou responsabilizados]
pelas decisões extremas de seus governantes?”
É sobre este ponto que acredito que precisamos de pensar um
pouco melhor.
As pessoas (e não apenas os artistas) devem ser punidas
pelas decisões e acções extremas de seus governantes? Não, não devem. As
pessoas (incluindo os artistas) são responsáveis pelas decisões e ações dos
seus governantes? Acho que sim, todos somos responsáveis e a questão aqui é
se e como entendemos essa responsabilidade e o que fazemos a respeito. Nesse
sentido, a cultura, a meu ver, não é excepcional, as pessoas que trabalham
neste sector (artistas e outros) não são excepcionais.
Em todas as actividades económicas que serão atingidas pelo
Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), encontraremos pessoas que se
manifestam contra Putin e condenam as suas acções, vão a protestos, apoiam a
Ucrânia e arriscam a sua liberdade ou até mesmo sua integridade física. Ao
mesmo tempo, na Cultura e em todos os outros campos, encontraremos pessoas que permanecem
caladas, por vários motivos. Não desejo julgar ninguém nem exigir nenhum acto
de heroísmo. É o que é. O que quero sobretudo dizer é que a Cultura não é excepcional.
Em momentos de crise e de dilemas éticos, as pessoas no sector cultural ou que têm
negócios com o sector cultural não são diferentes.
Então, o que devemos fazer?
A cultura não é apolítica. Assim, é natural que em graves momentos
políticos, como o que estamos a viver, a Cultura esteja envolvida. Como já
disse, cancelar artistas por serem russos é absurdo e inaceitável. Boicotar
organizações culturais estatais e obras financiadas pelo Estado, no entanto, é
uma questão totalmente diferente. O movimento BDS mostrou que é uma forma de
pressão e também de quebrar o silêncio e de consciecializar. Não é um movimento
contra artistas individuais e profissionais da cultura (embora isso os afecte),
mas contra o que essas organizações representam, de quem elas recebem dinheiro
e para fazer o quê.
Isso leva-me a um segundo ponto: no primeiro dia da guerra, a directora artística do Meyerhold Theatre and Cultural Centre, Elena Kovalskaya, apresentou a sua demissão em protesto contra a invasão na Ucrânia dizendo que “É impossível trabalhar para um assassino e receber um salário dele”. Mais directores artísticos, artistas e profissionais da cultura russos demitiram-se dos seus cargos ou abandonaram projectos e muitos mais assinaram a carta aberta mencionada no início deste post. Estas são as pessoas do lado russo que deveriam ser de maior preocupação para nós agora. Estas são as pessoas (e não devemos esquecer tambémos jornalistas e muitos outros) que formam, geralmente, a minoria que não tem medo de falar, de correr riscos e que acaba por ser responsável por mudanças tão desejadas. Estas são as pessoas que, como diria Marta Porto, devemos proteger e apoiar. Mas isso não vai acontecer, não deve acontecer, continuando o business as usual com certas organizações culturais. Penso que isto não seria responsável ou respeitoso, simplesmente cancelaria os seus actos de coragem e decência.
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