State Hermitage Museum. |
Tenho estado a acompanhar intensamente as notícias sobre a invasão da Ucrânia, a pensar nas formas como poderemos contribuir e ser úteis, tanto como indivíduos, como como profissionais do sector cultural. O meu ponto de partida é que a Cultura é tudo menos apolítica e, neste contexto, um dos temas mais controversos é o do boicote cultural.
As coisas estão se movendo rapidamente. Há apenas três dias, escrevi que não tinha conhecimento de nenhuma acção formal no sentido de cancelar artistas russos apenas porque são russos ou de remover compositores russos dos programas de concertos. No entanto, no Sábado passado, li o artigo de Javier C. Hernández no The New York Times sobre a expectativa expressa por várias entidades culturais para que artistas russos “esclareçam a sua posição”; sobre o cancelamento do concerto do jovem pianista Alexander Malofeev em Vancouver “pela sua própria segurança”; ou sobre a Ópera Nacional da Polónia ter desistido de uma produção de “Boris Godunov” de Mussorgsky… Definitivamente, as coisas estão a ficar descontroladas. O próprio Malofeev escreveu no Facebook que “A verdade é que todos os russos se sentirão culpados durante décadas pela terrível e sangrenta decisão que nenhum de nós poderia influenciar e prever”. Pergunto-me se terá sido “satisfatório” o suficiente…
Ao mesmo tempo, uma colega chamou a minha atenção para o apelo da Ukrainian Cultural Foundation,
que nos pede, entre outras coisas, para “Cancelar qualquer cooperação com
artistas russos, não importa quão grandes ou famosos, desde que apoiem
abertamente o regime de Putin, silenciem os seus crimes ou não se oponham
pública e directamente a ele”. Não vou ser insensível ao sofrimento e à raiva
de todos os ucranianos, e especialmente de nossos colegas no campo da cultura.
Mas precisamos procurar formas de pressionar que não atinjam
indiscriminadamente “qualquer coisa russa”. Isto não seria justo, respeitoso ou
eficaz. Também não devemos exigir de outras pessoas, profissionais da cultura e
todas os outros, que façam coisas que nós próprios não fazemos, ou seja, denunciarmos
políticos maus, corruptos ou inúteis - todos nós os temos e, se o fizéssemos,
não enfrentaríamos o tipo de repressão que os russos enfrentam.
Outro ponto levantado pela minha colega é que, na altura da
guerra na Jugoslávia, nada terá reforçado mais Milosevic e o seu louco frenesim
de guerra quanto o boicote cultural e o isolamento total da Sérvia. "Isso
alimentou e encorajou o nacionalismo e fez com que pessoas normais simplesmente
odiassem, tivessem medo e desconfiassem de qualquer coisa que viesse do
Ocidente, até hoje." Essa é uma possibilidade real, é claro, especialmente
se considerarmos que o regime de Putin exerce um controlo absoluto sobre os
meios de comunicação. Muitos, mesmo muitos russos não têm ideia do que está a acontecer,
porque “não o disseram na TV” e eu li mais que uma reportagem sobre pessoas
mais velhas chateadas com os seus filhos que lhes contam uma história
diferente. Ao mesmo tempo, mesmo neste momento, antes que as consequências do
BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) sejam realmente sentidas pelos russos
comuns e antes que os corpos de soldados russos comecem a ser entregues às suas
famílias para serem enterrados, alimentando a raiva contra os ucranianos,
muitos, mesmo muitos russos saem em defesa das decisões de seu presidente e afirmam
confiar na sua opinião. Fiquei indignada ao ler que o ginasta russo Ivan Kuliak colocou
a letra “ Z” na frente da sua roupa (símbolo de apoio à invasão da Rússia) estando
no pódio, ao lado do ucraniano Illia Kovtun, que ganhou a medalha de ouro.
Assim, precisamos de pensar cuidadosamente sobre formas de
não ostracizar indiscriminadamente artistas russos e outros profissionais da
cultura só porque são russos, de manter abertos os canais de colaboração e
apoio, de ajudar a divulgar as notícias e também de pressionar o regime de todas
as maneiras que estiverem ao nosso alcance. E uma opção é o BDS (Boicote,
Desinvestimento, Sanções), actualmente usado contra Israel e antes disso na
África do Sul. Os objectivos do BDS devem ser explicados publicamente e
amplamente, da maneira mais clara possível. No ano passado, o jornalista Chris
McGreal, que trabalhou tanto na África do Sul como em Israel, escreveu no The Guardian sobre o como o BDS ajudou a aumentar a consciencialização em todo o mundo e a
pressionar o regime de Apartheid, até que os sul-africanos conseguiram se
livrar dele.
Alguns colegas acreditam que, perante um movimento BDS
forte e generalizado contra o regime de Putin, a cultura, e especialmente as
artes, são uma excepcão. Dizem que cultura é colaboração, respeito, valores e
compreensão entre as pessoas. Jacques Marquis, da Cliburn Foundation, foi citado no artigo do New York Times,
dizendo que a sua organização achava que era importante manifestar-se ao ver
artistas russos sob escrutínio. “Podemos ajudar o mundo mantendo a nossa
posição e concentrando na música e nos artistas”, disse ele. Pergunto-me, não é
isso que temos feito o tempo todo? Jacques Marquis está a sugerir que devemos continuar
como se nada tivesse acontecido? Está disposto a colaborar com uma organização
financiada pelo regime de Putin como se tudo isso fosse muito civilizado, em
prol da arte e dos artistas? E que tipo de arte seria essa, quando os artistas
e todos os outros russos não têm permissão para falar a favor da paz ou
mencionar a palavra “guerra”?
Houve mais um ponto no artigo de Hernández no New York
Times que me lembrou do quão pouco preparados estamos para reconhecer que a
cultura e as artes têm um papel e um discurso políticos, mesmo quando
reivindicam neutralidade. Lê-se que “As tensões colocam um dilema para as
instituições culturais e para aqueles que as apoiam. Muitos têm tentado posicionar-se
acima dos acontecimentos da actualidade e acreditam profundamente no papel que
as artes podem desempenhar na superação das divisões. Neste momento, os gestores
culturais, que têm pouca experiência geopolítica, encontram-se no meio de uma
das questões mais politicamente carregadas das últimas décadas, com pouca
experiência prévia na qual se pudessem apoiar.” Então, os gestores culturais
não são também cidadãos? Vivem numa ilha remota, isolados do mundo? Para que
servem, então, as suas organizações?
Outro ponto que não devemos esquecer é que a Cultura sempre
foi importante para ditadores e autocratas. Eles usam-na na sua propaganda de
normalidade e civilidade. No seu artigo How the Hermitage Museum Artwashes Russian Aggression,
Rachel Spence lembra-nos que “muito antes da invasão na Ucrânia, havia razões
para questionar parcerias de entidades estrangeiras, a maioria das quais totalmente
acrítica, com instituições estatais russas”. Refere-se especificamente à colecção
Morozov, actualmente em exposição na Fundação Louis Vuitton, apresentando obras
emprestadas do State Hermitage Museum, e também do State Tretyakov Museum e do Pushkin
State Museum of Fine Arts. Embora esta seja uma fundação privada, Macron
e Putin contribuem com textos para o catálogo e Putin escreve eloquentemente
sobre o poder da diplomacia cultural. O director do Hermitage, Mikhail
Piotrovski, orgulha-se de ser o homem de Putin nesta “ofensiva cultural”
(palavras de Putin) e vice-versa.
Onde me posiciono e o que sugiro neste momento?
- Acredito que todos nós temos de ser muito cuidadosos e
vigilantes e não permitir nenhum acto de discriminação contra profissionais da
cultura ou artistas russos (vivos ou mortos) com base na sua nacionalidade.
- Os profissionais da cultura russos não devem ser forçados a
expressar as suas opiniões políticas ou a clarificar a sua posição para
participar em projectos internacionais.
- Neste momento, não devemos colaborar com organizações culturais estatais russas ou apresentar obras que tenham recebido financiamento estatal. Não se trata de penalizar indivíduos, embora eles venham a ser afectados (como muitas outras pessoas boas noutras áreas profissionais). Trata-se de ter consciência sobre quem essas organizações representam, de quem recebem financiamento; trata-se de ter consciência da maneira como usam a cultura para minimizar ou até mesmo encobrir os seus actos de brutalidade, tanto na Rússia como na Ucrânia.
Isto não pode ser irrelevante para nós, senão, de que
cultura estamos a falar? E de que valores? Onde é que traçamos a linha vermelha?
E o que devemos dizer aos artistas e profissionais da cultura ucranianos que tão
cedo não participarão em nenhuma conferência ou residência artística porque
estão a defender o seu país, seja porque foram recrutados ou porque se
voluntariaram?
O BDS pode ajudar a consciencializar todo o mundo e os russos.
Pode enviar uma mensagem de apoio e solidariedade aos russos que encontram
coragem para enfrentar um regime que pune a dissidência. Pode enviar uma
mensagem de apoio e solidariedade ao povo ucraniano, que trava uma guerra
brutal defendendo o seu país. E, finalmente, pode enviar uma mensagem e talvez
pressionar a maioria silenciosa, que muitas vezes se sente impotente e compreensivelmente
assustada ao lidar com um regime autoritário. Ninguém está numa posição de
pedir ou esperar actos heróicos, não seria decente. Mas todos nós precisamos de
entender que, embora não sejamos culpados pelos actos brutais ou imorais dos
nossos governantes, temos uma responsabilidade para com o nosso país, os nossos
co-cidadãos e para com o mundo.
Ler também
Pjotr Sauer and Andrew Roth, Empty galleries and fleeing artists: Russia’s cultural uncoupling from the west. In The Guardian, 17.4.2022
Mais neste blog sobre o papel político das organizações
culturais:
Os nossos valores “chá e simpatia”
“Apenas” um museu, “apenas” uma artista?
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