Monday 18 July 2022

Solidariedade em acção


Nos últimos 18 meses, tenho tido o privilégio de fazer parte de uma rede internacional de profissionais de museus chamada “Solidarity in Action”. Há um ano, sou também membro do seu conselho consultivo. Juntamente com as lições ensinadas pela pandemia, esse incrível grupo de pessoas (liderado pela incansável e motivadora Bernadette Lynch) deu-me a oportunidade de aprofundar o meu pensamento e prática de solidariedade. Permitiu-me também compreender melhor a palavra na minha língua materna, a língua que mais “se sente”.

Em grego, a palavra para solidariedade é “αλληλεγγύη”, que eu no passado sempre entendi como “estar perto do outro”. Indo mais a fundo, depois de um dos primeiros fóruns da rede, olhei pela primeira vez para a etimologia: o penhor, a segurança que se dá a outra pessoa; ser a garantia de outra pessoa. Este novo entendimento da palavra afastou-me das noções de filantropia, caridade, paternalismo. As ricas discussões no grupo ajudaram-me a compreendê-la como um contrato para apoiarmos e cuidarmos uns dos outros. E esse contrato, da forma como o entendo, espera que sejamos capazes de realizar actos tão radicais como ouvir e empatizar.

No mês passado, comemorámos os primeiros 18 meses da rede com uma conferência online. Divididos em quatro grupos, discutimos os seguintes assuntos:

Grupo 1 - Descolonização e solidariedade

Grupo 2 - Organização da comunidade local e auto-ajuda fora do museu

Grupo 3 - Trabalhadores do museu desaprendendo para se tornarem solidários

Grupo 4 - Pedagogia da solidariedade

Fiz parte do grupo 3, Trabalhadores do museu desaprendendo para se tornarem solidários. A nossa tarefa era apresentar um desafio principal e uma acção-chave principal.

Na discussão que se seguiu, as participantes partilharam preocupações diversas, como o sentimento de impotência, a falta de equipas diversas, os museus como espaços inseguros para desafiar o status quo, o racismo estrutural e a distribuição desigual de poder, ser a “voz impopular”. Conversámos sobre possíveis maneiras de realizar a mudança que desejamos: reconhecer o poder que cada um tem, ouvir, criar espaço para diversas vozes, envolver toda a gente, desenvolver a capacidade de empatia. Às vezes, são as organizações pequenas e mais flexíveis que mostram o caminho. E aí alguém disse: “Aprender a ser vulnerável, a ficar exposto”.

Isso fez-me pensar no quão pouco preparados ou dispostos estamos a aceitar o sentimento de vulnerabilidade. Uma vulnerabilidade que surge quando temos de lidar com coisas que não conhecemos, que são novas para nós, que contradizem o que pensávamos saber sobre o mundo à nossa volta.

Assim, o grupo conseguiu definir o seu desafio principal: desaprender o conforto do conhecimento, abrir mão do excesso de confiança que o nosso conhecimento nos dá, tornarmo-nos mais humildes e entendermos que o conhecimento não é uma base de competição. “Partilharmos a nossa vulnerabilidade permite-nos construir mais empatia”, disse uma participante. Assim, o grupo também conseguiu definir uma principal acção-chave: aprender a ser vulnerável como colectivo, sermos capazes de admitir que não sabemos tudo, tornarmos-nos em pessoas mais humanas, solidárias, empáticas.

Pensei na nossa discussão de grupo e no que poderia significar na prática quando li o artigo de José Pacheco Pereira no jornal Público. Desejando dar a sua opinião sobre a linguagem inclusiva, definindo a discussão pública em torno deste tema como uma “polémica”, intitulou o seu artigo “Porque é que ‘todes’ não é todos, nem todas?”. É uma pergunta, mas, na verdade, não o é, pois ele já tem todas as respostas. Escreve sobre um “surto de identidades”, identidades que “supostamente existem” e cuja aceitação é “acrítica”, uma “doença obsessiva da identidade”, está a ser irónico e sarcástico. Mas, acima de tudo, torna óbvia a sua ignorância em relação a estes assuntos; e, juntamente com a sua ignorância, o seu grande desconforto em ter de lidar com ela. Não faz mal ser ignorante; somos todos, sobre tantas matérias. Mas se ele ouvisse, se admitisse que não sabe, se tentasse descobrir o que não sabe, antes de partilhar a sua opinião num grande jornal? “Opressão é não respeitar a individualidade de uma pessoa”, disse Pauli Murray.



Luísa Semedo, outra colunista do mesmo jornal, respondeu
(“A chave do armário e o orgulho da invisibilidade”). Citou Ludwig Wittgenstein que em 1921, no seu Tractatus Logico-Philosophicus, escreveu que “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”. Semedo questiona: “Ora, se não há palavra para descrever quem sou, quem sou eu? Será que existo? Que existência me é permitida para mim própria, na sociedade, na democracia?”

Pacheco Pereira, como tantas outras pessoas que se sentem ameaçadas pela diversidade do mundo, prefere acreditar que esta é apenas uma questão de moda. É porque ignora a história. Estes assuntos não surgiram quando nós ouvimos falar deles pela primeira vez. No seu artigo, Luísa Semedo fala-nos de Pauli Murray (americana, 1910-1985: activista dos direitos civis, defensora da igualdade de género, advogada, escritora). Será que Pacheco Pereira ouviu falar? Ou, ainda, de Virgínia Quaresma (portuguesa, 1882 – 1973: primeira repórter portuguesa, feminista, lésbica), entre tantas outras pessoas? A verdade é que não ficamos mais pobres, como diz Pacheco Pereira, quando deixamos de usar termos ofensivos para nos referirmos aos outros; ficamos mais pobres quando não questionamos o que sabemos, quando procuramos desesperadamente o conforto do nosso conhecimento e preferimos ignorar que o mundo está cheio de outras histórias e de nuances.

Voltando à nossa discussão sobre “Solidarity in Action”, porque é que os profissionais de museus sentem que os museus são um espaço inseguro para desafiar o status quo? Porque a maioria está tão cheia de respostas, tão à vontade com a superioridade trazida pelo seu conhecimento, que se esquece de fazer perguntas, não consegue ou não quer ouvir, silencia as vozes que trazem nuances à discussão. Muitos museus contribuem para uma versão mais pobre de nós mesmos e isso é um facto que deve provocar muito mais desconforto do que a linguagem inclusiva ou a diversidade do mundo.

Fotografia tirada na exposição "Para uma história do movimento negro em Portugal", Biblioteca Palácio Galveias, Lisboa.


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