Humboldt Forum, Berlin (Foto: Maria Vlachou) |
“Quem tem medo da descolonização?” é o título de um curso de formação que será organizado em Setembro pela NEMO – Network of European Museum Organisations, e acolhido pela UK Museums Association, SS Great Britain e Bristol Museums. Para quem não se lembra, Bristol é a cidade onde em Junho de 2020 a estátua do traficante de escravos Edward Colston foi derrubada e depois colocada em exposição (mas deitada) no M Shed Museum, o museu da cidade. Em Janeiro de 2022, um júri considerou quatro das pessoas que ajudaram a derrubar a estátua – os chamados “Colston Four” – inocentes de danos criminais.
O título escolhido para o curso da NEMO soa como uma
pergunta que deveríamos estar a fazer a nós próprios em Portugal, considerando
o quão pouco o debate público evoluiu nos últimos cinco anos (e menos ainda a
prática museal). Um recente “duelo”
publicado no jornal Expresso, entre o investigador e
curador António Pinto Ribeiro e o director do Palácio Nacional da Ajuda, José
Alberto Ribeiro, não trouxe nada de novo. O director do palácio repetiu os
argumentos de outros colegas antes dele (ver, por exemplo, aqui e aqui), alertando-nos
contra decisões precipitadas impulsionadas pelo politicamente correto, pedindo
a revisão dos inventários dos museus, enfatizando a necessidade de territórios
ex-coloniais e hoje países independentes para investirem na investigação e
conservação e formarem os seus profissionais (dizendo, ao mesmo tempo, que
alguns objectos estão “mais bem instaladas” em Portugal…). De referir ainda os
alertas sobre o comércio ilícito e a insistente argumentação que visa comparar
o saque ou a aquisição antiética de artefactos de territórios ex-coloniais à
retirada, por exemplo, dos mármores do Parténon ou o roubo de tesouros
portugueses durante as invasões francesas. Por vezes, a forma como estes
argumentos são expressos revela a persistente arrogância dos curadores
europeus, que dizem basicamente que, se se envolvessem numa discussão sobre a
restituição, seriam eles próprios a estabelecer as regras em relação ao quando,
onde e como, assumindo que sabem melhor e revelando total desrespeito pelo
significado que certos objectos podem ter para outras culturas, aquelas que os
produziram. Mesmo assim, pode-se perguntar: considerando esses argumentos e
advertências - que formam, afinal, uma posição - que passos específicos é que
os seus autores deram na direcção das suas próprias recomendações nos últimos
4-5 anos? Vamos ficar para sempre com esse tipo de “duelos” repetitivos?
O caso do director do Museu Nacional de Etnologia é
bastante particular. Paulo Costa tem argumentado que o museu pelo qual é
responsável é um
caso à parte. O principal argumento é que este foi criado
muito tarde (em 1965 – as guerras coloniais começaram em 1961) e tinha uma
perspectiva científica (não tinham todos?). Numa outra
entrevista, Paulo Costa dizia que “É preciso dizer que a maioria dos
museus não é feita com peças pilhadas, essa é uma ideia errada que algumas
pessoas têm. Há muito ruído sobre este assunto" (a entrevista foi feita em
Janeiro de 2020; o livro de Dan Hicks “The Brutish Museums”, que documenta o
papel instrumental que os museus europeus tiveram no saque de objectos e na
construção de narrativas racistas, ainda não tinha saído). O mais
decepcionante, no entanto, foi que numa conferência organizada em Novembro de
2021 pelo ICOM Portugal, intitulada “Museu com coleções não europeias” (“não
europeias”, realmente…), o director do Museu Nacional de Etnologia afirmou (ver
gravação em vídeo,
5:45:55) que o chamado “relatório Macron” (sobre a restituição do património
cultural africano) foi da iniciativa de dois investigadores, não do Estado
francês, que não o reconheceu. Como sabemos, o relatório foi encomendado
pela Presidência da República Francesa e que foi, precisamente, com base
nesse relatório que o
Museu Quai Branly devolveu os primeiros objetos a Benin, é
profundamente perturbador que essa declaração não tenha sido contestada num encontro
de profissionais dos museus.
Entretanto, em 2020 o livro de Dan Hicks “The Brutish
Museums”, onde se refere que poderão existir objetos saqueados a Benin nas colecções
da Sociedade de Geografia de Lisboa e do Museu Nacional Grão Vasco. Esta
referência não gerou qualquer debate ou questionamento no campo dos museus e do
património em Portugal. No mesmo ano, Kwame Opoku (ex-assessor jurídico do
escritório das Nações Unidas em Viena), escrevendo sobre o caso português num
artigo intitulado Will
Portugal Be The Last Ex Colonialist State To Restitute Looted African
Artefacts?, além de criticar os argumentos de alguns profissionais
portugueses, questiona as origens de objectos apresentados em 1985 numa
exposição no Museu Nacional de Etnologia, intitulada “Escultura Africana em
Portugal”, provenientes de várias colecções públicas e privadas portuguesas.
Mais uma vez, não houve reação alguma ao seu questionamento.
A qualidade do debate público em Portugal tem sido bastante
fraca e revela falta de interesse e coragem em assumir responsabilidades e,
pelo contrário, uma forte intenção de resistir a qualquer reflexão séria sobre
o papel dos museus em relação ao passado colonial e ao presente racista do
país. Ao mesmo tempo, as mentalidades evoluem noutras partes do mundo. Acredito
que o que realmente muda as regras do jogo neste momento é a nova
política de restituição da Smithsonian que “dá aos seus museus a
autoridade para devolverem itens nas suas colecções que foram saqueados ou
adquiridos sob circunstâncias antiéticas. (…) Os museus agora poderão iniciar
devoluções e entrar em acordos de gestão partilhada com base em considerações
éticas, mesmo quando não houver nada que os obrigue legalmente a fazê-lo.” A
descolonização não tem apenas a ver com a restituição, é, antes de tudo, um
estado de espírito, a tomada de consciência das próprias responsabilidades
éticas, que muitas vezes vão além das obrigações legais.
Alguns museus europeus têm liderado este processo. Na
Holanda, o trabalho do Tropenmuseum e do Research Center for Material
Culture têm sido fundamentais, assim como a inovadora exposição
do Rijksmuseum sobre a escravatura e a publicação Traces
of Slavery and Colonial History in the Art Collection da
Agência Holandesa do Património Cultural. No Reino Unido, o Pitt Rivers Museum é o
primeiro que me vem à mente e os seus projectos African Restitution Research,
Labelling Matters, Maasai Living Cultures, etc. Recentemente, fiquei a conhecer
o projecto MuseumsLab, uma
plataforma que reúne diversos museus (incluindo um único museu português, o Museu de Lisboa) para uma aprendizagem conjunta, intercâmbio e
educação continuada sobre o futuro dos museus em África e na Europa. Soube
deste projecto através do Museu de História Natural de Berlim e do seu trabalho
sobre Contextos
Coloniais.
Humboldt Forum, Berlin (Foto: Maria Vlachou) |
O que marcou a minha recente visita a Berlim foi o uso
repetido da palavra “perspectiva” nos museus e o facto de que os próprios
museus colocam questões. Estava ansiosa para ver o trabalho realizado pelo
Humboldt Forum, que teve a coragem de convidar Chimamanda Ngozi
Adichie como palestrante principal na sua abertura. Entrando na
primeira sala da colecção de Etnologia, o museu questiona o visitante: Quando é
que estes objectos foram trazidos para Berlim e onde foram colocados? Quais são
as questões urgentes? Mais à frente, comentando uma ficha de inventário
referente a um objecto da Namíbia, o museu pergunta: Que informação não está
correcta nesta ficha de informação? O que está a faltar nesta ficha de informação?
Ao mesmo tempo, lembra-nos que as perspectivas mudam e que essa parte da
exposição está desenhada para mudar e crescer.
Emil Nolde, "Papuan Youth" (1914), Neue Nationalgalerie, Berlin (Foto: Maria Vlachou) |
Quando o visitante sai do exposição permanente da Neue Nationalgalerie, há um espaço para os visitantes denominado “Perspectivas: área de diálogo e actividades”. Os visitantes são lembrados de que os artistas também dão as suas perspectivas através dos seus trabalhos e são convidados a pensar e encontrar as suas próprias abordagens. O museu também participa na discussão generalizada e mais consciente dos museus alemães sobre o passado colonial do país e pergunta, por exemplo: De que forma os artistas Brücke estão ligados à história colonial da Alemanha? Não são (não eram) mundos separados e nenhum museu é um “caso à parte”, se quiser ser honesto consigo mesmo e com a sociedade em geral.
Ainda neste blog:
And are you going to protect me?
Museums making sense: dealing with the discomfort of a
multicoloured world
The
urgency of difficult conversations
A
minha responsabilidade por este vandalismo
Discutindo
a descolonização dos museus em Portugal
O
museu das minhas descobertas
Sugestões:
Descolonisar os museus: isto na prática…? Gravação do seminário organizado
em 2019 pela Acesso Cultura. As partes I e II (com Wayne Modest) estão em inglês;
a parte III apenas em português.
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