Sunday 19 June 2022

Quem tem medo da descolonização?

Humboldt Forum, Berlin (Foto: Maria Vlachou)

“Quem tem medo da descolonização?” é o título de um curso de formação que será organizado em Setembro pela NEMO – Network of European Museum Organisations, e acolhido pela UK Museums Association, SS Great Britain e Bristol Museums. Para quem não se lembra, Bristol é a cidade onde em Junho de 2020 a estátua do traficante de escravos Edward Colston foi derrubada e depois colocada em exposição (mas deitada) no M Shed Museum, o museu da cidade. Em Janeiro de 2022, um júri considerou quatro das pessoas que ajudaram a derrubar a estátua – os chamados “Colston Four” – inocentes de danos criminais.

O título escolhido para o curso da NEMO soa como uma pergunta que deveríamos estar a fazer a nós próprios em Portugal, considerando o quão pouco o debate público evoluiu nos últimos cinco anos (e menos ainda a prática museal). Um recente “duelo” publicado no jornal Expresso, entre o investigador e curador António Pinto Ribeiro e o director do Palácio Nacional da Ajuda, José Alberto Ribeiro, não trouxe nada de novo. O director do palácio repetiu os argumentos de outros colegas antes dele (ver, por exemplo, aqui e aqui), alertando-nos contra decisões precipitadas impulsionadas pelo politicamente correto, pedindo a revisão dos inventários dos museus, enfatizando a necessidade de territórios ex-coloniais e hoje países independentes para investirem na investigação e conservação e formarem os seus profissionais (dizendo, ao mesmo tempo, que alguns objectos estão “mais bem instaladas” em Portugal…). De referir ainda os alertas sobre o comércio ilícito e a insistente argumentação que visa comparar o saque ou a aquisição antiética de artefactos de territórios ex-coloniais à retirada, por exemplo, dos mármores do Parténon ou o roubo de tesouros portugueses durante as invasões francesas. Por vezes, a forma como estes argumentos são expressos revela a persistente arrogância dos curadores europeus, que dizem basicamente que, se se envolvessem numa discussão sobre a restituição, seriam eles próprios a estabelecer as regras em relação ao quando, onde e como, assumindo que sabem melhor e revelando total desrespeito pelo significado que certos objectos podem ter para outras culturas, aquelas que os produziram. Mesmo assim, pode-se perguntar: considerando esses argumentos e advertências - que formam, afinal, uma posição - que passos específicos é que os seus autores deram na direcção das suas próprias recomendações nos últimos 4-5 anos? Vamos ficar para sempre com esse tipo de “duelos” repetitivos?

O caso do director do Museu Nacional de Etnologia é bastante particular. Paulo Costa tem argumentado que o museu pelo qual é responsável é um caso à parte. O principal argumento é que este foi criado muito tarde (em 1965 – as guerras coloniais começaram em 1961) e tinha uma perspectiva científica (não tinham todos?). Numa outra entrevista, Paulo Costa dizia que “É preciso dizer que a maioria dos museus não é feita com peças pilhadas, essa é uma ideia errada que algumas pessoas têm. Há muito ruído sobre este assunto" (a entrevista foi feita em Janeiro de 2020; o livro de Dan Hicks “The Brutish Museums”, que documenta o papel instrumental que os museus europeus tiveram no saque de objectos e na construção de narrativas racistas, ainda não tinha saído). O mais decepcionante, no entanto, foi que numa conferência organizada em Novembro de 2021 pelo ICOM Portugal, intitulada “Museu com coleções não europeias” (“não europeias”, realmente…), o director do Museu Nacional de Etnologia afirmou (ver gravação em vídeo, 5:45:55) que o chamado “relatório Macron” (sobre a restituição do património cultural africano) foi da iniciativa de dois investigadores, não do Estado francês, que não o reconheceu. Como sabemos, o relatório foi encomendado pela Presidência da República Francesa e que foi, precisamente, com base nesse relatório que o Museu Quai Branly devolveu os primeiros objetos a Benin, é profundamente perturbador que essa declaração não tenha sido contestada num encontro de profissionais dos museus.

Entretanto, em 2020 o livro de Dan Hicks “The Brutish Museums”, onde se refere que poderão existir objetos saqueados a Benin nas colecções da Sociedade de Geografia de Lisboa e do Museu Nacional Grão Vasco. Esta referência não gerou qualquer debate ou questionamento no campo dos museus e do património em Portugal. No mesmo ano, Kwame Opoku (ex-assessor jurídico do escritório das Nações Unidas em Viena), escrevendo sobre o caso português num artigo intitulado Will Portugal Be The Last Ex Colonialist State To Restitute Looted African Artefacts?, além de criticar os argumentos de alguns profissionais portugueses, questiona as origens de objectos apresentados em 1985 numa exposição no Museu Nacional de Etnologia, intitulada “Escultura Africana em Portugal”, provenientes de várias colecções públicas e privadas portuguesas. Mais uma vez, não houve reação alguma ao seu questionamento.

A qualidade do debate público em Portugal tem sido bastante fraca e revela falta de interesse e coragem em assumir responsabilidades e, pelo contrário, uma forte intenção de resistir a qualquer reflexão séria sobre o papel dos museus em relação ao passado colonial e ao presente racista do país. Ao mesmo tempo, as mentalidades evoluem noutras partes do mundo. Acredito que o que realmente muda as regras do jogo neste momento é a nova política de restituição da Smithsonian que “dá aos seus museus a autoridade para devolverem itens nas suas colecções que foram saqueados ou adquiridos sob circunstâncias antiéticas. (…) Os museus agora poderão iniciar devoluções e entrar em acordos de gestão partilhada com base em considerações éticas, mesmo quando não houver nada que os obrigue legalmente a fazê-lo.” A descolonização não tem apenas a ver com a restituição, é, antes de tudo, um estado de espírito, a tomada de consciência das próprias responsabilidades éticas, que muitas vezes vão além das obrigações legais.

Alguns museus europeus têm liderado este processo. Na Holanda, o trabalho do Tropenmuseum e do Research Center for Material Culture têm sido fundamentais, assim como a inovadora exposição do Rijksmuseum sobre a escravatura e a publicação Traces of Slavery and Colonial History in the Art Collection da Agência Holandesa do Património Cultural. No Reino Unido, o Pitt Rivers Museum é o primeiro que me vem à mente e os seus projectos African Restitution Research, Labelling Matters, Maasai Living Cultures, etc. Recentemente, fiquei a conhecer o projecto MuseumsLab, uma plataforma que reúne diversos museus (incluindo um único museu português, o Museu de Lisboa) para uma aprendizagem conjunta, intercâmbio e educação continuada sobre o futuro dos museus em África e na Europa. Soube deste projecto através do Museu de História Natural de Berlim e do seu trabalho sobre Contextos Coloniais.

Humboldt Forum, Berlin (Foto: Maria Vlachou)

O que marcou a minha recente visita a Berlim foi o uso repetido da palavra “perspectiva” nos museus e o facto de que os próprios museus colocam questões. Estava ansiosa para ver o trabalho realizado pelo Humboldt Forum, que teve a coragem de convidar Chimamanda Ngozi Adichie como palestrante principal na sua abertura. Entrando na primeira sala da colecção de Etnologia, o museu questiona o visitante: Quando é que estes objectos foram trazidos para Berlim e onde foram colocados? Quais são as questões urgentes? Mais à frente, comentando uma ficha de inventário referente a um objecto da Namíbia, o museu pergunta: Que informação não está correcta nesta ficha de informação? O que está a faltar nesta ficha de informação? Ao mesmo tempo, lembra-nos que as perspectivas mudam e que essa parte da exposição está desenhada para mudar e crescer.

Emil Nolde, "Papuan Youth" (1914), Neue Nationalgalerie, Berlin (Foto: Maria Vlachou)

Quando o visitante sai do exposição permanente da Neue Nationalgalerie, há um espaço para os visitantes denominado “Perspectivas: área de diálogo e actividades”. Os visitantes são lembrados de que os artistas também dão as suas perspectivas através dos seus trabalhos e são convidados a pensar e encontrar as suas próprias abordagens. O museu também participa na discussão generalizada e mais consciente dos museus alemães sobre o passado colonial do país e pergunta, por exemplo: De que forma os artistas Brücke estão ligados à história colonial da Alemanha? Não são (não eram) mundos separados e nenhum museu é um “caso à parte”, se quiser ser honesto consigo mesmo e com a sociedade em geral.


Textos do Humboldt Forum e Neue Nationalgalerie.

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