Sunday 2 October 2022

A saúde mental dos profissionais dos museus em Portugal: quem se importa?

 

29 de agosto de 2022; Columbus, OH, EUA; Funcionários e apoiantes do Columbus Museum of Art reúnem-se à frente do museu, antes de entregarem uma carta à administração, solicitando o reconhecimento voluntário do sindicato CMA Workers United. Créditos: Adam Cairns-The Columbus Dispatch

“Nos últimos meses, a equipa de liderança do YBCA [Yerba Buena Center for the Arts] tem lidado com os impactos e a volatilidade sem precedentes causados pela pandemia do COVID-19.

(…) Hoje, devido a estes impactos, é com pesar que anuncio a eliminação de 27 postos de trabalho no YBCA. Isto representa mais de um terço da nossa equipa, principalmente em postos directamente ligados a eventos e actividades ao vivo, que não se realizarão no futuro próximo. Como uma organização que se preocupa profundamente com os seus funcionários, evitámos fazer estas mudanças enquanto as nossas finanças o permitiram. Também considerámos cuidadosamente a equidade em todas as nossas decisões.

Estes valorizados membros da equipa, que deram importantes contributos ao YBCA, receberão indemnização e três meses de assistência médica. Terão, ainda, prioridade como candidatos para futuras vagas no YBCA. Para os restantes, melhor-remunerados, membros da equipa, implementaremos reduções salariais entre 5 e 12%, com as maiores reduções ao nível superior da organização.

Anuncio essas mudanças reconhecendo com grande pena que estamos a perder membros de nossa família YBCA que deram muito de si para criar um legado duradouro no YBCA. Somos eternamente gratos pela visão, criatividade, compromisso e paixão com que contribuíram para fazer do YBCA o que é hoje. Sei que se juntam a mim para expressar gratidão pelos membros de nossa equipa que estão de saída.”

Foi desta forma que, a 21 de Julho de 2020, Deborah Cullinan (na altura, CEO do YBCA) anunciava o despedimento de 27 membros da sua equipa devido aos impactos da pandemia.

Há mais ou menos um ano, estava no Museu do Douro, a participar no IMMER #3 - International Meeting on Museum Education and Research. Na minha sessão, apresentei este excerto do anúncio do YBCA. Estava mais ou menos a meio da leitura, quando uma das pessoas presentes começou a chorar. Percebi e senti um aperto no estômago... Era uma das pessoas que tinha sido “dispensada” do museu onde trabalhava e que se tornou no caso mais mediático, pela forma como tratou os seus trabalhadores naquele primeiro ano da pandemia. Continuei a ler, tendo pousado a minha mão no ombro da pessoa. O resto da sala em silêncio absoluto. Havia mais pessoas entre nós que tinham trabalhado naquele museu. A distância que o separa do YBCA tornou-se ainda mais evidente.

Lembrei-me novamente dessa ocasião e da forma como nos marcou quando, com um intervalo de poucos dias, tomei conhecimento da situação vivida por duas colegas que trabalham em museus e que estão em momentos diferentes das suas carreiras: uma a cerca de 10 anos de se reformar e a outra com cerca de três anos de serviço. O que partilharam comigo, e que afecta as suas vidas profundamente - do ponto de vista profissional, mas, inevitavelmente, pessoal também – tem-me sido relatado por vários outros colegas e muito discutido em formações. Não se trata apenas de um caso mediático; trata-se de práticas instaladas e generalizadas, mais ou menos conhecidas e pouco contestadas. Não se trata de uma ou outra pessoa; trata-se de diversas pessoas que trabalham neste sector, com ou sem vínculo, mais ou menos novas. Continuaremos a fechar os olhos ou a sentir-nos impotentes?

Acredito que nada disto soará pouco familiar: hierarquias rígidas; superiores com pouco conhecimento ou sensibilidade sobre a matéria dos museus; acumulação de poderes e da capacidade de decisão numa pessoa, que não consegue dar conta do recado; pouca ou inexistente delegação de funções; tempo interminável de espera de respostas, qualquer que seja o assunto; falta de recursos humanos e técnicos, mas grande exigência para a organização de inúmeras “actividades” (a única coisa que conta para o relatório do final do ano); lógicas partidárias na gestão dos museus com consequências muito perversas nos territórios; mudanças nas autarquias que colocam tudo em stand by ou que deitam abaixo o que já se fazia para fazer tudo de novo; eternas reorganizações dos serviços…

A tudo isto estão associadas condutas de abuso de poder, assédio moral, falta de respeito pelas pessoas que fazem parte das equipas – pelos seus conhecimentos e capacidades, mas também pelo seu direito a uma vida pessoal. Uma das colegas com quem falei recentemente falou-me concretamente do esforço para deixar de se preocupar, deixar de se importar e tentar resistir à vontade de propor coisas, porque… não vale a pena, só dá chatices.

Alguma destas coisas será uma surpresa? Algo que ouvimos pela primeira vez? Diria que não… Mas, de repente, fiquei muito mais consciente de como estes relatos se estão a multiplicar e parecem definir, nos últimos tempos, o sector dos museus em Portugal. Não é que não se verificam situações destas noutros meios da área da Cultura. Mas, tendo o privilégio de colaborar com diferentes organizações e profissionais nesta área, considero que o sector dos museus se tornou particularmente problemático. O que me leva a questionar o estado da saúde mental dos seus profissionais.

Desânimo, descrença, desmotivação, pessimismo são alguns dos estados de espírito manifestados pelas pessoas. Mas há também a depressão, as consultas com especialistas de saúde mental, a medicação, as baixas médicas. Há casos mais graves de assédio moral que levam a pensar no suicídio, estaremos conscientes disso? Não estou a inventar, tudo o que partilho aqui foi partilhado por colegas. Estamos a falar do meio em que trabalhamos, estamos a falar da pessoa ao nosso lado.

Nada disso é exclusivo do mundo dos museus portugueses. Noutros países, no entanto, e especialmente nos EUA, estas situações começaram a tornar-se mais evidentes, a ser discutidas em público. Contas no Instagram como Change the Museum ou A Better Guggenheim revelam o que se passa no interior de algumas dessas organizações, que se apresentam publicamente como defensoras de valores e princípios éticos. A pandemia levou também muitos trabalhadores de museus a fundar novos sindicatos ou a reactivar os já existentes (ver artigos no final deste texto).

Não vivemos algo parecido em Portugal. Talvez porque primeiro devemos ganhar consciência da severidade da situação, admitir que não estamos a lidar com casos isolados. Às vezes fico a pensar nos resultados de um possível inquérito de satisfação, não aos visitantes, mas aos trabalhadores… Quantas pessoas desmotivadas? Quantas pessoas que se sentem condicionadas e postas de lado, quando podem e desejam contribuir? Quantas pessoas que se sentem abusadas, moralmente assediadas, porque se importam? Quantas pessoas a tomar medicação para poderem enfrentar o local de trabalho? Quantas pessoas em baixa psicológica? E ainda… quantas pessoas que deixaram o “conforto do emprego seguro”, num momento tão inseguro, e apresentaram a sua demissão? Pessoas com muitos ou poucos anos de serviço em determinado museu, que ficaram sem nada… No meu meio mais imediato, três. Pensemos nisso…

Neste momento, estou a ler o livro de Joan Tronto “Caring Democracy”. O pensamento que lhe serve de base é que temos um déficit democrático (democracy deficit) porque temos um déficit no cuidar (care deficit). No final do capítulo que acabei ontem, Tronto afirma: “Ter 'escolha' não é a mesma coisa que liberdade da dependência. (…) mesmo que pudéssemos ser livres de todas as formas de dependência, isso não seria uma vida livre, seria uma vida desprovida de sentido. A dependência marca a condição humana desde o nascimento até a morte. O que nos torna livres, na verdade, é a nossa capacidade de nos importarmos e de assumirmos compromissos com o que importa para nós”. Sorri… Porque pensei que a razão porque deixei o “emprego seguro”, há exactamente 10 anos, é que me recusei a deixar de me importar. Tal como várias outras pessoas que chamo colegas e amigas e que lutam, de diferentes formas, por esta liberdade. Mas a que custo? E, ao final de contas, porquê e para quê?

 

Ler ainda:

Maria Vlachou, O que podemos esperar de quem dirige um museu?

Maria Vlachou, Fitted for freedom

Mais leituras:

Hakim Bishara, MoMA’s cruel offer to unionized workers during the pandemic. In Hyperallergic, 30.09.2022

John Hurdle, Strike at Philadelphia Museum of Art is Window to Broader Unrest. In The New York Times, 29.09.2022

Zachary Small, U.S. Museums See Rise in Unions Even as Labor Movement Slumps. In The New York Times, 21.02.2022

No comments: