Sunday, 1 January 2023

O ano do cuidado radical

Perdiz no Cabo Sounio, 2014 (Foto: Maria Vlachou)


Há pouco mais de dez anos, lembro-me da indignação que senti com um artigo de Clara Ferreira Alves no jornal Expresso, onde criticava os jovens gregos por se casarem quando o país atravessava uma grave crise económica. Considerava essa atitude irresponsável, reveladora de uma falta de noção. Fiquei com raiva porque, no meu ver, a esperança e a celebração são formas de resistir. A determinação de celebrar perante uma adversidade é um acto de amor, amor pela vida, amor próprio e amor pelos outros.

Pensei nisso em diversas outras ocasiões e também ontem à noite, quando vi o fogo de artifício da minha janela e em muitos outros lugares do mundo. Nunca gostei muito do fogo de artifício, sempre me pareceu uma extravagância desnecessária e, também, provocadora de um barulho angustiante para várias pessoas e animais. Mais recentemente, descobri os seus efeitos poluentes. Mas este ano, senti que o seu som “explosivo” era também uma expressão da nossa falta de empatia, pois os ucranianos, enquanto celebravam também a chegada do novo ano (um acto de amor, esperança e desafio), foram mais uma vez atacados e tiveram que correr para os abrigos.

Uma das esperanças que a pandemia despertou em mim foi que desenvolveríamos firmemente a capacidade da empatia, que seria algo que ficasse connosco. Actos de cuidado e preocupação, especialmente por pessoas que não conhecíamos, tornaram-se mais comuns. A própria palavra “cuidar” foi (e é) cada vez mais utilizada, tanto no âmbito pessoal como profissional. Ainda assim, uma das minhas observações nos últimos meses foi que voltámos a concentrar-nos totalmente em nós próprios, vemos tudo como uma competição, onde mais direitos para uma outra pessoa significa menos direitos para nós. Esta falta de empatia e cuidado, associada a uma tentativa bastante infantil de não assumir a responsabilidade por coisas que correm mal ou menos bem, é uma atitude que se manifesta com frequência e que tem marcado as nossas relações, inclusivamente no âmbito profissional.

Outra constatação que tenho feito é o crescente autoritarismo no campo cultural, tanto da parte de alguns dos seus profissionais, como da parte de políticos que têm uma palavra sobre a gestão do sector. Vejo quem tem “poder” a exigir ser apenas lisonjeado e elogiado, não deixando espaço para críticas e debates saudáveis e, em algumas ocasiões, questionando a sua legitimidade e tentando desacreditar aqueles que expressão o seu espírito crítico. Vejo-os tomar decisões arbitrárias, tratar as pessoas com arrogância, hostilidade e desrespeito, sentir-se no direito de se recusar a responder a perguntas ou a justificar as suas escolhas. Por um lado, isso não é novidade, é tão antigo quanto a política; por outro, é um desenvolvimento preocupante, considerando o que passámos e aprendemos como colectivo nos últimos anos. Assim, precisamos de estar mais atentos, não apenas à generalização dessas práticas, mas também às maneiras através das quais nós próprios as apoiamos – por exemplo, permanecendo em silêncio ou sentindo-nos com medo e impotentes, como se tudo isto fosse algo inevitável.

Uma terceira observação, relacionada com as duas anteriores – e, em alguns casos, fruto delas -, é o estado de saúde mental dos profissionais da cultura, sobre o qual escrevi pela primeira vez em Outubro passado. O crescente espírito competitivo, o ritmo louco com que produzimos (simplesmente produzimos), o autoritarismo e abuso de poder, a falta de empatia e solidariedade, têm resultado em depressão profunda, baixas médicas, algumas demissões e um mau-estar generalizado.

No seu livro “Caring Democracy”, Joan Tronto questiona: “Como é que as pessoas podem afirmar que vivem numa democracia se os seus medos e inseguranças começam a sobrepor-se à sua capacidade de agir pelo bem comum?”. Tronto afirma que o actual “déficit de cuidado” e o actual “déficit democrático” estão relacionados entre si. Escreveu isso em 2013, então, só podemos confirmar que esses dois déficits se agravaram na última década. Não lhes demos atenção suficiente e à sua co-relação.

Com o início deste novo ano, e embora as coisas pareçam bastante sombrias, sinto a necessidade de aceitar mais uma vez o desafio de esperar, de sonhar. Este ano deve ser o ano do cuidado radical. “O que nos torna livres, na verdade”, escreveu Tronto, “é a nossa capacidade de cuidar e de assumir compromissos com aquilo com que queremos preocupar-nos”. Preocupo-me com a liberdade, o direito de cada pessoa de ser inteira, de ser o melhor que pode. Preocupo-me com a inteligência, o pensamento crítico e a honestidade intelectual, assim como com a sua expressão pública. Preocupo-me com os meus colegas, com o que pensam, fazem e sentem. Preocupo-me com as pessoas que conheço e com as que não conheço. Preocupo-me e quero preservar a liberdade de o fazer.

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