Perdiz no Cabo Sounio, 2014 (Foto: Maria Vlachou)
Há pouco mais de dez anos, lembro-me da
indignação que senti com um artigo de Clara Ferreira Alves no jornal Expresso,
onde criticava os jovens gregos por se casarem quando o país atravessava uma
grave crise económica. Considerava essa atitude irresponsável, reveladora de
uma falta de noção. Fiquei com raiva porque, no meu ver, a esperança e a
celebração são formas de resistir. A determinação de celebrar perante uma
adversidade é um acto de amor, amor pela vida, amor próprio e amor pelos
outros.
Pensei nisso em diversas outras ocasiões e também ontem à noite, quando vi o fogo de artifício da minha janela e em muitos outros lugares do mundo. Nunca gostei muito do fogo de artifício, sempre me pareceu uma extravagância desnecessária e, também, provocadora de um barulho angustiante para várias pessoas e animais. Mais recentemente, descobri os seus efeitos poluentes. Mas este ano, senti que o seu som “explosivo” era também uma expressão da nossa falta de empatia, pois os ucranianos, enquanto celebravam também a chegada do novo ano (um acto de amor, esperança e desafio), foram mais uma vez atacados e tiveram que correr para os abrigos.
Uma das esperanças que a pandemia despertou em
mim foi que desenvolveríamos firmemente a capacidade da empatia, que seria algo
que ficasse connosco. Actos de cuidado e preocupação, especialmente por pessoas
que não conhecíamos, tornaram-se mais comuns. A própria palavra “cuidar” foi (e
é) cada vez mais utilizada, tanto no âmbito pessoal como profissional. Ainda
assim, uma das minhas observações nos últimos meses foi que voltámos a concentrar-nos
totalmente em nós próprios, vemos tudo como uma competição, onde mais direitos
para uma outra pessoa significa menos direitos para nós. Esta falta de empatia
e cuidado, associada a uma tentativa bastante infantil de não assumir a
responsabilidade por coisas que correm mal ou menos bem, é uma atitude que se
manifesta com frequência e que tem marcado as nossas relações, inclusivamente
no âmbito profissional.
Outra constatação que tenho feito é o crescente
autoritarismo no campo cultural, tanto da parte de alguns dos seus
profissionais, como da parte de políticos que têm uma palavra sobre a gestão do
sector. Vejo quem tem “poder” a exigir ser apenas lisonjeado e elogiado, não
deixando espaço para críticas e debates saudáveis e, em algumas ocasiões,
questionando a sua legitimidade e tentando desacreditar aqueles que expressão o
seu espírito crítico. Vejo-os tomar decisões arbitrárias, tratar as pessoas com
arrogância, hostilidade e desrespeito, sentir-se no direito de se recusar a
responder a perguntas ou a justificar as suas escolhas. Por um lado, isso não é
novidade, é tão antigo quanto a política; por outro, é um desenvolvimento
preocupante, considerando o que passámos e aprendemos como colectivo nos
últimos anos. Assim, precisamos de estar mais atentos, não apenas à
generalização dessas práticas, mas também às maneiras através das quais nós próprios
as apoiamos – por exemplo, permanecendo em silêncio ou sentindo-nos com medo e impotentes,
como se tudo isto fosse algo inevitável.
Uma terceira observação, relacionada com as
duas anteriores – e, em alguns casos, fruto delas -, é o estado de saúde mental
dos profissionais da cultura, sobre o qual escrevi pela primeira vez em Outubro passado.
O crescente espírito competitivo, o ritmo louco com que produzimos
(simplesmente produzimos), o autoritarismo e abuso de poder, a falta de empatia
e solidariedade, têm resultado em depressão profunda, baixas médicas, algumas
demissões e um mau-estar generalizado.
No seu livro “Caring Democracy”, Joan Tronto
questiona: “Como é que as pessoas podem afirmar que vivem numa democracia se os
seus medos e inseguranças começam a sobrepor-se à sua capacidade de agir pelo
bem comum?”. Tronto afirma que o actual “déficit de cuidado” e o actual
“déficit democrático” estão relacionados entre si. Escreveu isso em 2013, então,
só podemos confirmar que esses dois déficits se agravaram na última década. Não
lhes demos atenção suficiente e à sua co-relação.
Com o início deste novo ano, e embora as coisas pareçam bastante sombrias, sinto a necessidade de aceitar mais uma vez o desafio de esperar, de sonhar. Este ano deve ser o ano do cuidado radical. “O que nos torna livres, na verdade”, escreveu Tronto, “é a nossa capacidade de cuidar e de assumir compromissos com aquilo com que queremos preocupar-nos”. Preocupo-me com a liberdade, o direito de cada pessoa de ser inteira, de ser o melhor que pode. Preocupo-me com a inteligência, o pensamento crítico e a honestidade intelectual, assim como com a sua expressão pública. Preocupo-me com os meus colegas, com o que pensam, fazem e sentem. Preocupo-me com as pessoas que conheço e com as que não conheço. Preocupo-me e quero preservar a liberdade de o fazer.
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