Último dia do projecto "Esta Máquina Cerca o Ódio e Força-o a Render-se" em Ovar (2022) |
Em 2022, tive a felicidade de participar num projecto muito bonito da ondamarela, chamado ”Esta Máquina Cerca do Ódio e Força-o a Render-se”. Era um projecto que propunha a pessoas de diferentes idades em diferentes localidades do país abordar as questões do ódio, do preconceito, da diferença e da liberdade através de novas criações artísticas, construídas com essas mesmas pessoas. No último dia do projecto, discutíamos o que tinha sido esta experiência para os diferentes participantes. Penso muitas vezes numa adolescente numa dessas rodas de conversa. Quando disse “Os artistas vão-se embora hoje, o projecto acaba. O que acontece amanhã?”, ela murmurou: “Amanhã vai ser um dia triste.”
Lembrei-me novamente dela no mês passado, no encontro Mutante das
Comédias do Minho. Este encontro foi o culminar do Projecto
Mutantes, que procurou envolver jovens dos 12 aos 18 anos que
habitam os 10 municípios do Alto Minho numa reflexão, através das artes, sobre
o ‘eu’, o ‘outro’ e o ‘nós’. Nos três dias em que profissionais da cultura e da
educação estiveram reunidos, quinze jovens que tinham participado nas oficinas
do projecto trabalharam intensamente com a coreógrafa Joana Castro na
construção de uma performance, apresentada no último dia. Vimos e ouvimos
jovens sensíveis, atentos, sinceros, esperançosos, mas também angustiados, e
sentimos que, ao longo desses três dias de trabalho, criou-se uma ligação muito
forte, e muito comovente, entre eles, que antes não se conheciam. Na conversa
que se seguiu, perguntei: “E amanhã, o que acontece?”. Vários responderam:
“Amanhã há escola.”
Último dia do encontro Mutante em Paredes de Coura (2022) |
O fim formal de um projecto parece constituir mesmo um fim
para muitas das pessoas que nele participaram. Não parece haver um
prolongamento nas suas vidas, não parece haver vontade ou capacidade ou,
talvez, imaginação para a sua continuidade na “vida real”. Talvez as pessoas
(não só as mais jovens) não se imaginem capazes de mudar algo que o projecto as
fez reconhecer que precisava de ser mudado. E apesar de muitos dos projectos
terem como objectivo o empoderamento ou a promoção da participação cívica,
existe uma cultura política que convence muitas pessoas que não vale a pena
imaginar, não vale a pena tentar, não vale a pena preocupar-se e agir. Existe
uma cultura de impossibilidade.
As artes e a cultura não têm por si o poder de trazer
mudanças na vida pessoal e colectiva das pessoas. Quem a elas se expõe e com
elas se envolve recebe alimento, mas não se torna automaticamente numa pessoa
mais activa, mais imaginativa ou, sequer, numa pessoa melhor. Dito isto, fico
muitas vezes a pensar no que poderia ser feito para haver uma ligação com “o
amanhã” e para se criar uma cultura onde as pessoas se possam sentir incluídas,
empoderadas, importantes e necessárias, cuidadas, donas da sua cabeça e da sua
vida.
Quando em Outubro passado estive no Tropenmuseum em
Amsterdão, tive a oportunidade de visitar a nova exposição ”Our
Colonial Inheritance” (A nossa
herança colonial). O museu, que nos habituou a uma atitude corajosa e
frontal em relação ao seu próprio passado e o passado e presente do país, também
desta vez não nos decepcionou. Mas o que gostaria de realçar aqui é o que
acontece quando chegamos ao final da exposição. Antes de entrarmos na última
sala, lemos num painel: “Como é que se pode envolver? Escolha a forma que mais
lhe convém”. Somos, então, convidados a conhecer diferentes pessoas que
decidiram agir para a construção de um mundo melhor e mais justo. As formas de
o fazer foram diferentes e isto transmite a ideia que há algo que cada um de
nós pode fazer, à sua maneira; que não somos nem pequenos nem impotentes
perante grandes causas e problemas.
Penso também na minha primeira visita, em Março passado, à Kazerne Dossin, um
museu-memorial ao Holocausto na cidade belga de Mechelen. Houve três coisas que
me fizeram pensar no papel que um museu pode ter no empoderamento das pessoas e
na promoção da cidadania activa:
Na exposição temporária “Homosexuals
and lesbians in Nazi Europe” (Homossexuais e lésbicas na
Europa Nazi), a História ganha uma escala mais humana, mais próxima, menos
abstracta, através das histórias pessoais de diferentes pessoas que sofreram
discriminação e perseguição, que morreram ou que sobreviveram.
Na
exposição permanente, apresentada em três capítulos distribuídos
por três andares (Massas, Medo, Morte), o museu inclui a resistência ao regime
dos ocupantes Nazi, às vezes através de episódios cómicos, mas vindos de
pessoas comuns, funcionários públicos que tinham, provavelmente, tanto medo
como todas as outras pessoas.
No final de cada capítulo, antes de seguirmos para o andar
seguinte, o museu interpela-nos com a actualidade. Isto não são histórias
passadas, estão sempre presentes. “Imigração e refugiados na Europa hoje” ou
“Quando o Estado começa a discriminar” são questões actuais, das pessoas ao
lado ou de nós próprios.
O sentimento de impotência, o sentimento de impossibilidade
de mudança é algo que se cultiva entre os cidadãos, algo que se torna cultura. A
Joana Villaverde registou-o de uma forma que me marcou no seu artigo “As
vidas do interior importam”, escrito em 2020 em Avis, no Alentejo. Acredito
que este sentimento ganha força porque as pessoas se sentem também sozinhas,
quando, na verdade, não o estão. O trabalho da Common Cause Foundation
tem sido fundamental no sentido de mostrar como a maioria das pessoas, a
maioria de nós, abraça valores intrínsecos, altruístas, mas está convencida que
não acontece o mesmo com os outros. O seu estudo de 2016 “Perceptions
Matter”, que focava a população britânica, indicou que, enquanto 74% dos
inquiridos valorizava, por exemplo, a entreajuda, a igualdade, a proteção da
natureza, 77% acreditava que os outros só se interessam por valores egoístas,
como a riqueza, a imagem pública e o sucesso. Será muito diferente por aqui?
Vivemos mais próximo e, ao mesmo tempo, mais afastados. Cuidamos dos nossos e ignoramos os outros. Desconfiamos daqueles que não conhecemos, não amamos quem não conhecemos. Talvez, um possível caminho seja mesmo por aqui: procurarmos formas de tornar mais evidente, numa escala mais pequena, mais próxima, mais humana, que não estamos sozinhos, que partilhamos valores, que nos preocupamos, que nos temos uns aos outros. Que o amor e a esperança não acabam quando o projecto acaba.
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