Chéri Samba, "Reorganisation". AfricaMuseum, Tervuren (Foto: Maria Vlachou) |
Acompanhar o trabalho de museus que se questionam e que nos questionam é particularmente entusiasmante, motivador e inspirador. Num meio bastante conservador e pesado, estes museus são poucos, muito poucos ainda, e é refrescante poder identificar aquela liderança que mexe com o que for necessário e que ajuda a trazer mudanças necessárias, contaminado aos poucos todo o sector. É neste tipo de museus que eu vejo um esforço verdadeiro e honesto para serem úteis à sociedade, para fazerem parte dela, para serem relevantes.
Tive a oportunidade de visitar alguns desses museus. Começo
pelo Tropenmuseum em Amsterdão. Aquando da
minha primeira visita, em 2017, a frontalidade com a qual abordava o passado
colonial do país, a criação da sua própria colecção, assim como o racismo na
sociedade contemporânea abalou-me. Nunca antes tinha visitado um museu
etnológico com este tipo de discurso. Tanto na sua exposição permanente, como
nas exposições temporárias (“Colonialism in Indonesia”, “The Future of the
History of Slavery” e “Afterlives of Slavery”) o museu questionava-se e
questionava-nos:
- Como é que o museu adquiriu a sua colecção?
- Qual é a nossa história partilhada da escravatura?
- Como lidamos com ela hoje?
- Como podemos moldar o nosso futuro comum?
- É possível digerir a história da escravatura e todas as suas consequências e seguir em frente?
Na minha mais recente visita, em 2022, o museu já tinha
inaugurado a sua exposição “Our colonial inheritance”. Com a frontalidade à qual
nos habituou – e de notar especialmente o determinante possessivo “nossa” (our)
no título da exposição - partilha uma extensa e profunda pesquisa em relação ao
passado colonial da Holanda. E tem uma pergunta ainda para os visitantes no
final:
- Como é que te podes envolver?
Este é um tipo de questionamento que tenho encontrado noutros museus também. O recém- inaugurado Humboldt Forum em Berlim questiona a proveniência da sua colecção e ainda o trabalho de inventário e a interpretação dos objectos. Convidou ainda a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie para fazer o discurso de abertura em Setembro de 2021.
O AfricaMuseum em Tervuren, próximo de
Bruxelas, que reabriu ao público em 2018, afirma que as suas colecções são
propriedade legal do Estado Federal da Bélgica, mas propriedade moral dos
países de origem, e partilha com os visitantes a “regra de seis” que aplica
aquando da aquisição de objectos:
- O objecto é importante para a investigação científica?
- Completa uma colecção ou uma exposição?
- É de valor excepcional?
- Está bem documentado?
- Em que circunstâncias foi obtido?
- Acrescenta algo ao nosso conhecimento sobre África contemporânea?
Questões desta natureza são também colocadas e partilhadas com o público pelos Royal Museums of Fine Arts of Belgium, em Bruxelas, através da campanha “Our collection in question”. Outros museus ainda interpretam as suas colecções com um novo olhar, tendo adquirido uma outra consciência, mesmo quando, aparentemente, a sua colecção não se relaciona com a história do colonialismo ou com o racismo. Penso concretamente na referência que encontrei no MoMu (Museu da Moda) na Antuérpia sobre a capa preta com capucho: usada pelos monges na época medieval, e pelas mulheres no século 18, protegendo a pessoa dos olhares indiscretos; nos anos 1970, é transformada no “hoodie” pela cultura hip-hop, protegendo das câmeras de vigilância nas cidades, ganhando também significado político depois do assassinato em 2012 do adolescente negro Trayvor Martin (o seu assassino considerou-o suspeito porque vestia um hoodie preto, o que mostra que poder vestir um hoodie sem preocupações faz parte do privilégio branco).
MoMu, Antwerp (Foto: Maria Vlachou) |
Neste contexto, devemos ainda lembrar-nos, a título de
exemplo, de exposições como “Le
modèle noir de Géricault à Matisse” no Musée d´Orsay em Paris
(2019) sobre questões estéticas, políticas, sociais e raciais, bem como sobre
imaginário revelado pela representação de figuras negras nas artes plásticas; “Slavery:
ten true stories” no Rijksmuseum em Amsterdão (2021), onde
também o director do museu, Taco Dibbits, se assume como beneficiário da
escravatura; ou “Juan
de Pareja: Afro-Hispanic painter” no Metropolitan Museum en
Nova Iorque (2023), sobre o pintor que durante duas décadas foi escravizado por
Velázquez e também seu modelo.
A inevitável pergunta é: e em Portugal?
O mais recente episódio é a censura
praticada pela administração do Centro
Hospitalar do Conde de Ferreira à obra “Adoçar a Alma para o Inferno III”,
dos artistas Dori Negro e e Paulo Pinto, que denuncia o esclavagismo do Conde de
Ferreira. A obra é apresentada no âmbito da Bienal’23 Fotografia do Porto e a
administração do hospital, para além de considerar as referências “ofensivas à
memória” do seu patrono, considera que “não existem condições
psicológicas que permitam a exibição da peça em causa, já que, os ‘doentes,
trabalhadores e suas famílias se sentem afectados’ pela pergunta ‘quantas
pessoas escravizadas valem um hospital psiquiátrico?’".
Não se trata de um museu, mas parece que nem nos museus
existem ainda “condições psicológicas” para certas reflexões e práticas. Ou não
existe vontade, sentido de responsabilidade, consciência da urgência. Ocorre-me
que, quando em Janeiro esteve na Culturgest, em Lisboa, Lonnie Bunch (primeiro
secretário negro da Smithsonian Institution e primeiro director do National
Museum of African American History and Culture), para falar sobre “Racismo na praça
pública” (informações e vídeo), não
esteve na plateia nenhum director de um museu nacional ou representante do
Ministério da Cultura; no simpósio que se seguiu no Museu Nacional de História
Natural e da Ciência (MUHNAC), “Acertando contas com o racismo: a memória
social do comércio de escravos” (informações e vídeo)
esteve apenas o Director do Museu Nacional de Arqueologia. As ausências dos
directores dos nossos museus e monumentos nacionais têm sido uma constante em
vários fóruns.
Cynthia Schimming, "No title - My philosophy, your interpretation". Humboldt Forum (Foto: Maria Vlachou) |
Pensando em alguns em que estive presente ou envolvida na
organização, lembro-me de registar essa total ausência:
- na palestra de Nicholas Mirzoeff "Decolonizing the Museum: Lessons from New York" em 2018 na RE.AL;
- na palestra de Felwine Sarr (co-autor do chamado “relatório Macron” sobre a restituição de objectos) na Culturgest em 2020;
- no encontro Descentrar o império, reparar o futuro”, realizado em Novembro 2022 na Culturgest;
- no seminário da Acesso Cultura
“Descolonizar os museus: isto na prática…?” em 2019 (informações
e gravações), que teve Wayne Modest do Tropenmuseum como
orador principal e onde o Director do Museu Nacional de Etnologia participou
como panelista;
- na conferência anual da Acesso Cultura em 2016, cujo tema
foi “O quê? E então? Relevância dos conteúdos e linguagem simples” e com
oradora principal a Martine Gosselink do Rijksmuseum, responsável pelo projecto
de reescrita das tabelas no seu museu (informações e gravações).
São apenas alguns exemplos. Houve mais. Como explicar estas
ausências? E como podemos esperar ver mudanças, mudanças necessárias e
urgentes, se as pessoas responsáveis não se mostram disponíveis para ouvir e
participar no diálogo?
Não devemos avançar sem mencionar o trabalho feito por
alguns, poucos, museus portugueses. Apesar da apatia e inércia generalizada, algo
está a mexer. Vale a pena referir aqui a exposição “Lisboa
Plural” no Museu de Lisboa (2019) ou “O
impulso fotográfico: (des)arrumar o arquivo colonial”,
actualmente no MUHNAC. Ambos estes museus, assim como a Acesso Cultura e outras
entidades, foram responsáveis pela vinda de Lonnie Bunch a Portugal.
O que há numa tabela?
Esta reflexão foi provocada por uma tabela. Uma tabela que
acompanha uma escultura de Soares dos Reis exposta no MNAC. Lê-se: “Cabeça de
preto / Head of black”. Já por várias vias me tinham chegado comentários sobre
ela, mas na semana passada o post de uma colega no Facebook provocou uma conversa
intensa. Ainda bem. Deveria também ser levada para outros contextos.
O que me deixa mais perplexa no caso desta tabela é que o
museu entende que a mesma é problemática. Mas não age. Não com a urgência que,
pelo menos alguns de nós, desejaríamos. Sim, são questões complexas; sim, há
tanto por fazer. Mas há opções também, há prioridades e, acima de tudo, há a
obrigação de cuidarmos do nosso público, incluindo dos visitantes negros.
Houve nesta troca de opiniões mais recente os argumentos do
costume: “não vamos apagar a história”, “as pessoas entendem o contexto em que
a obra foi criada”, “censura”… E outro ainda: “Se mudássemos esta tabela
teríamos de as mudar todas” ou “Vamos mudar quando tivermos a oportunidade de
as rever todas”. Arrisco-me a dizer que quem usou estes argumentos não tem
acompanhado minimamente os desenvolvimentos e a reflexão dos últimos oito anos,
pelo menos, desde que em 2015 o Rijksmuseum foi o primeiro a tomar a iniciativa
de rever títulos e interpretações. Não o fez apagando a história; e eu soube
graças ao seu trabalho que a maioria dos títulos das obras não é atribuída
pelos próprios artistas. Não podemos continuar a argumentar sem procurarmos
consultar a informação e a ampla bibliografia que já existe. Não podemos
continuar a argumentar fechados numa bolha, sem conhecimento.
Não sei quanto custará exactamente produzir uma tabela
nova, mas acho que se deve mudar com urgência e, se for necessário, apenas esta,
sim! No mínimo, para acrescentar – tal como fez num caso a Ferens Gallery em
Hall – “Título atribuído pelo artista”. Seria o mínimo e seria um sinal da
parte do museu para os seus visitantes. Seria melhor ainda um parágrafo de
contextualização, escrito pelo museu. Gostei muito do texto no painel
introdutório da exposição temporária “Photographs: an early album of the world”,
no museu Quai Branly e a forma como lida com a terminologia. Mas, sobretudo, o
facto de comunicar as suas opções ao visitante e de se mostrar consciente das
suas responsabilidades.
Uma tabela nova para a obra de Soares dos Reis permitiria também
rever a tradução do título. Porque, como apontaram duas colegas, a tradução está
errada. Em inglês seria “Head of a negro”, o que permitiria, talvez, entender a
gravidade no uso da palavra “preto” em português sem qualquer comentário da
parte do museu. A tradução (concretamente, a revisão por especialistas, porque
os tradutores não o são necessariamente) é de enorme importância. Lembro-me do
choque que senti quando reparei pela primeira vez que a tradução de “Coleira de
escravo” na exposição do Museu Nacional de Arqueologia “Um museu, tantas colecções!”
(2017) era “necklace”. Temos a obrigação de cuidar, dos objectos e das pessoas.
No ano passado, numa visita à Casa-Museu Marta Ortigão
Sampaio, no Porto, vi os “vestígios” de um projecto educativo realizado com uma
escola. Por baixo da pintura de Aurélia de Souza intitulada “Cabeça de homem preto”,
estava registado o desconforto de um/a aluno/a:
“O meu desconforto foi por ele ser o único a ser descrito
pela cor da sua pele.”
Ao lado da obra, a tabela do museu, onde a palavra “preto/negro”
tinha sido apagada com corrector. Arrepiei-me com este gesto. Achei bem que a
tabela tivesse ficado assim na parede, com as marcas da intervenção do século
21. No
website do museu, o título é “Cabeça de homem” (suponho que não tenha sido
a própria Aurélia a atribuir o título anterior).
Sente-se uma inércia no mundo dos museus portugueses, é
como se a maioria de nós estivesse a esconder a cabeça na areia. Conhecendo as
dificuldades, as complexidades, a falta de meios, sabemos também que todos os
dias são definidas prioridades, tomadas decisões, feitos investimentos. Cuidar
das pessoas, tão bem como cuidamos dos objectos, é uma prioridade, uma
urgência. Sermos relevantes é, no mínimo, uma questão de sobrevivência.
Ainda neste blog
Quem
tem medo da descolonização?
Discutindo
a descolonização dos museus portugueses
Outras leituras
Não queremos um museu só para brancos
O
que podemos esperar de quem dirige um museu?
Offensive
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