Thursday, 18 December 2025

Desejando a paz

Nemo, vencedor do Festival Eurovisão da Canção 2024 (Direito de autor: AP Photo)

Há uns dias, a propósito da reacção abominável de Donald Trump ao assassinato do cineasta Rob Reiner e da sua esposa, a jornalista Patrícia Fonseca comentava que, há poucos (não muitos) anos, uma reacção deste género teria dado início a um processo de impeachment. Desta vez, não foram poucas as pessoas que classificaram a atitude de Trump como indigna para o posto que ocupa. No entanto, a verdade é que foi criada uma espécie de anestesia ao que Trump diz ou faz, como se fosse algo natural ou inevitável, como se não fosse possível exigir decência. O mesmo se verifica com outros políticos e chamados “influencers”, normalizando, assim, discursos de ódio ou não contestando a desinformação. Com todos os estragos que isto traz, acredito que não é por falta de sensibilidade, mas por falta de sentido de agência, que a maioria das pessoas não reage. Não reagimos porque pensamos que não vale a pena, porque nada vai mudar.

É uma questão de escala. A consciência de que, não podendo mudar o mundo, temos ainda o poder - como indivíduos e, sobretudo, como colectivo - de sonhar, de trabalhar para o mundo ao qual desejamos pertencer e de fazer acontecer.

Na conferência anual da Acesso Cultura em Outubro 2025 (cujo tema foi a missão e valores das organizações culturais), foi marcante ouvir a escritora Mariana Jones dizer que nunca antes tinha pensado que, como pessoa e cidadã, poderia esperar algo das organizações culturais em termos de postura, posicionamento, defesa de valores. Tal como os cidadãos não estão habituados a pensar nesta relação desta forma, os próprios profissionais do sector da cultura não nos habituámos a pensar nas nossas estruturas como tendo uma personalidade, moldada por valores e orientada por uma missão. Nós próprios estamos, em grande parte, confortáveis numa relação de oferta-fruição, sem claros propósitos, convencidos da sua importância e valor, mas incapazes de responder à pergunta “Porquê?”. Porque é que faço o que faço?

Recentemente, fiquei a conhecer, como outras pessoas, o grupo Bandidos do Cante, mas não foi graças à sua música. Há dias, 11 concorrentes portugueses ao Festival da Canção anunciaram que, caso vençam em Portugal, irão boicotar o palco da Eurovisão, devido à participação de Israel (um estado acusado de cometer genocídio). Os Bandidos do Cante não estavam entre eles e, assim, ficámos a conhecê-los um pouco melhor. Numa publicação no seu Facebook, na qual os comentários estão condicionados, informam-nos que:

Valorizam a terra, a família, o amor, a amizade e a pertença. Acreditam no poder das canções para aproximar pessoas, criar comunidade e lembrar-nos de quem somos. Desejam um mundo mais humano, mais solidário, com mais música e, acima de tudo, em paz. E nesse seu mundo sonhado - bondoso, humano, criativo –, um mundo que todos desejamos, as Bandidos do Cante defendem “todos os artistas, todas as formas de expressão e todas as escolhas conscientes. Há espaço para todos.”

Que espaço haverá, realmente, para estar ao lado de quem representa um estado genocida, chefiado por um Primeiro-Ministro indiciado por crimes de guerra? Quando se valoriza a terra, a família, o amor, a amizade e a pertença, como aplaudir e celebrar quem representa o assassinato de civis inocentes, a destruição de casas, o bombardeamento de hospitais e de escolas, a fome? Qual a música para celebrar a morte por frio de um bébé por decisão de um governo?

Muito diferente o posicionamento de Nemo, que venceu a Eurovisão no ano passado. Nemo devolveu o troféu afirmando que existe um claro conflito entre os ideais  de unidade, inclusão e dignidade para todas as pessoas, que a Eurovisão diz defender, e a decisão de permitir a participação de Israel. “Sinto que este troféu não pertence à minha prateleira”, disse. Também em Portugal, não só houve o anúncio do boicote pelos concorrentes, como um deles, Dinis Mota, propõe realizar um concerto internacional onde participem músicos de Portugal, Espanha, Países Baixos, Eslovénia, Irlanda,  Islândia e outros na Áustria, na altura da Eurovisão ou próximo, cujos lucros revertam a favor do povo palestiniano.

Escritores Laura Restrepo, Guiseppe Caputo e Mikaelah Drullard

Num outro meio cultural, o da literatura, pelo menos três escritores (todos latino-americanos) desistiram de participar no festival Hay, que se realiza no próximo mês em Cartagena, na Colómbia, em protesto contra o convite feito à líder da oposição venezuelana e Prémio Nobel da Paz, María Corina Machado. Pode parecer estranho aos menos atentos, mas a atribuição do Nobel da Paz à Machado foi criticada desde o momento que foi anunciada, devido às suas relações com líderes da extrema-direita, aos elogios a Donald Trump (a quem dedicou o Nobel e cuja administração tem vindo a atacar barcos venezuelanos em águas internacionais sem mandato), assim como ao facto de apoiar uma intervenção militar dos EUA no seu país. Tanta paz…

A resposta do festival expressa a ingenuidade do costume (se é que podemos falar de ingenuidade com tudo o que sabemos hoje): acredita que o diálogo aberto e diversificado é essencial para defender “a livre troca de ideias e a liberdade de expressão”, esclarecendo, ao mesmo tempo e como é costume, que não alinha nem endossa as opiniões, posições ou declarações daqueles que participam nas suas atividades, nem as suas visões políticas. É assim que deve ser, mas todas as visões políticas são igualmente bem-vindas? Damos-lhes palco ou microfone?

O alcance das nossas acções como indivíduos pode ser residual, mas como colectivo pode ser bastante significativo. Referimos aqui pessoas que não vão mudar o mundo, mas que usam o poder que têm (todos temos algum poder) para realmente defender valores que nos possam levar mais perto do mundo sonhado - bondoso, humano, criativo, solidário -, recusando a barbárie.


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