Monday, 29 December 2025

Uma cultura de revolução e alguns valores "à moda antiga"


O olhar triste, auto-consciente e penetrante de Kristin Cabot numa fotografia no New York Times fez-me lembrar de duas coisas: o quão perturbada me senti no verão passado com a forma como "o mundo" (foi, efectivamente, o mundo inteiro) reagiu e a tratou quando, num concerto dos Coldplay, foi apanhada no ecrã gigante nos braços do seu chefe; e como nunca mais pensei neles (e nela) depois daqueles primeiros dias explosivos.

A sua entrevista para o New York Times revela "banalidades" diárias, conhecidas das relações humanas: pessoas em processo de separação dos seus pares, que conhecem outras pessoas, às vezes no seu local de trabalho, que se sentem bem na companhia uma das outras, que se aproximam, etc. etc. Ouvindo-a contar a história intensificou a angústia que me lembro de ter sentido na altura. Havia pormenores que não conhecia, claro, como o facto de ambos se estarem a separar ou de nem sequer se terem beijado antes do dia em que todos os conhecemos, ou de, após a investigação interna na sua empresa, ela ter sido convidada a continuar a trabalhar lá. Também não sabia, mas podia imaginar, a forma como ela foi tratada por diversas pessoas "justas" – vizinhos, conhecidos, pessoas que simplesmente a reconheciam, paparazzi acampados em frente à sua casa, pessoas que lhe telefonavam (500 a 600 chamadas por dia), pessoas que lhe enviavam ameaças de morte. Foi chamada de "vadia, destruidora de lares, interesseira, amante". Sem falar da humilhação sofrida por pessoas famosas – Whoopi Goldberg, Gwyneth Paltrow – e também por uma mascote desportiva.

Através da entrevista, descobri uma pessoa extraordinária – da mesma forma que tantas pessoas são extraordinárias nas suas vidas mundanas e quotidianas. Pensei na altura e estou a pensar agora: Porquê todo este furor e crueldade, a nível internacional, por duas pessoas que não conhecíamos? Porque é que tantos estavam tão zangados com eles? Porquê as ameaças de morte? Em que é que nos transformámos?

Monica Lewinsky (Foto: Greg Gorman)

Por mera coincidência, como por vezes acontece, uma pessoa muito mais conhecida surgiu nas minhas leituras depois de ter lido a entrevista de Cabot. Auto-intitula-se a “paciente zero do cyberbullying” e o seu nome é Monica Lewinsky. Eis alguém em quem não pensava há muito tempo. Descobri que em 2006 obteve um mestrado em psicologia pela London School of Economics e que, desde 2014, é activista contra o cyberbullying. Pesquisei um pouco mais, uma vez que já há tanto tempo que não ouvia falar dela. Encontrei a foto de uma mulher sorridente, calma e autoconfiante. Encontrei também uma TED Talk de 2015, intitulada “The price of shame” (O preço da vergonha). Ouvindo-a recontar a história que tão bem conhecemos, e embora a pessoa por quem se apaixonou não fosse tão anónima para nós como o antigo chefe de Kristin Cabot, encontramos muitas semelhanças: a fúria e a raiva do mundo, a humilhação constante, a angústia e a miséria sentida (que afectam também os seus entes queridos – os pais de Lewinsky, os filhos adolescentes e a mãe de Cabot), os pensamentos suicidas… Aquilo em que nos tornámos já estava a ser construído há muito tempo. O conteúdo é o mesmo, o impacto é muito mais forte, devido aos meios ao nosso dispor. O que nos impulsiona são os mesmos instintos mesquinhos que sempre fizeram as pessoas atirar pedras.

Na sua palestra TED, Lewinsky diz que “No que diz respeito à cultura da humilhação, o que precisamos é de uma cultura de revolução. (...) Precisamos de regressar a um valor antigo: a compaixão, a compaixão e a empatia.” (“O preço da vergonha” é o título da palestra. Vergonha de quem, pergunto eu…).

Esta referência a valores antigos fez-me lembrar de um discurso recente de alguém que admiro profundamente, Elaine Heumann Gurian. Elaine foi convidada a falar no MuseumNext Focus sobre alguns caminhos para a resistência dos museus na era Trump. A sua palestra intitula-se “Enfrentar os nossos medos enquanto acolhemos o futuro como um passado à moda antiga” e termina assim:

“Estamos em todo o lado e dizemos ‘não’.

Fazemos tudo.

Fazemos tudo juntos.

Fazemos tudo juntos, apoiando-nos uns aos outros.

Fazemos tudo juntos, apoiando-nos uns aos outros, o tempo todo.”


Sorrio a pensar numa revolução cultural baseada em valores “à moda antiga” como a empatia, a compaixão, a solidariedade e o cuidar. Penso em todas as pessoas extraordinariamente comuns que conheço e naquelas sobre as quais leio, e sabem que mais? Encontro esperança.

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