Monday, 2 July 2012

Blogger convidado: "Imaginário, um espaço para pensar a democracia", por Marta Porto (Brasil)

O meu primeiro ‘encontro’ com Marta Porto foi a nota que colocou no Facebook a propósito da sua demissão de Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura do Brasil. Foi claro para mim naquela nota que o Ministério tinha acabado de perder uma excelente profissional, uma pessoa com sentido de missão e de responsabilidade, uma pessoa com ideias claras sobre o lugar da cultura na sociedade. A partir daí comecei a ‘seguí-la’ e tenho lido vários dos seus artigos e entrevistas. É um grande prazer poder publicar aqui um ensaio que vai integrar o novo livro desta “activista cultural”, sobre política cultural. mv

Foto: Bebeto Alves

A democracia é um valor? Essa talvez seja a pergunta mais importante para começar a falar de cultura e democracia. Há na sociedade, a percepção de que igualdade, liberdade e participação no poder são valores válidos? Que definem direitos que devem ser batalhados? O que se entende por igualdade, liberdade e participação no poder em uma sociedade desigual e hierarquizada? Se partirmos do princípio que para sustentar a democracia, não só como regime de governo, mas como regime político reconhecido e legitimado por seus cidadãos, é necessário que ela se construa como valor, como cultura capaz de reconhecer e fazer cumprir os direitos de cidadania, podemos sugerir que a cultura, ou melhor, as políticas que lhe dão corpo, devem priorizar a construção de um imaginário social de entendimento, crítica e luta por fazer valer os ideias democráticos. Estimular mentalidades sensíveis e capazes de estruturar sociedades onde o cumprimento de direitos não é ato de misericórdia, mas ato consciente que responde a um imperativo democrático.

Entrar na rotina dos cidadãos que criam formas de se relacionar nas cidades a partir dos valores e crenças que legitimam. O que um comportamento violento no transito, nas ruas, entre homens, mulheres e crianças nos diz? Ou a falta de controle social que institui uma cidade que é mais a soma de individualidades, com toda a arrogância de impor desejos e necessidades imediatos - como o parar em fila dupla, passar o sinal vermelho porque “afinal eu estou com pressa”, tocar música no último volume ou falar no celular em altos brados quando se está em lugares fechados e cheio de estranhos, ou no sentido mais grave matar porque fomos abandonados por quem um dia nos amou, ou torturar por puro esporte, psicopatia ou desejo de humilhar- formas e jeitos de promover ou não a dita alteridade, essa qualidade necessária para se estabelecer o direito como pilar de uma sociedade. Quando os exemplos são exceções podemos falar de falta ou necessidade de educação, quando são maioria, de cultura social, de um imaginário de como nos manifestamos, percebemos e agimos como corpo social.

Aí entra um dos principais eixos do trabalho da cultura, e sublinho, não das artes em si, mas da política cultural pensada como eixo da democracia, da formação cidadã, da colaboração para fundar um imaginário social que legitime os pilares democráticos, pois sem eles há progresso econômico, melhorias urbanas, consumo maior, mas as cidades, espaço de encontros e convivência, permanece como território de disputas e de quem leva a melhor, a famosa lógica dos vencedores que ainda e infelizmente vigora há muito nesse país. É o campo dos valores de cidadania, onde se aposta que há crenças comuns - respeito a dignidade humana, a solidariedade, resistência pacífica, a não- discriminação - que valem a pena lutar, pois é onde a sociedade pode projetar o seu futuro ao mesmo tempo que ela constrói e tensiona o presente. Esses valores partem da ideia de senso comum, de ethos, algo que todos compartilham se reconhecemos o valor da democracia. Pois, não há democracia sem valores.

Nesse sentido, a cultura nos obriga a sair da lógica pura da vulnerabilidade, implicando o cidadão comum nos problemas do país e do planeta e ajudando a forjar uma mudança para a sociedade como um todo. E é justamente nesse ponto estratégico que está a especificidade do campo cultural: a política de cultura pode contribuir para o impulso a uma agenda de cidadania contemporânea que incorpore as mudanças em curso na sociedade e as exigências das novas gerações de brasileiros.

(escrito em português do Brasil)

Marta Porto é jornalista, especialista em políticas de comunicação, arte e cultura, curadora de espaços, exposições e projetos artísticos, conferencista e ensaísta da cultura com atuação internacional. Lidera, assessora e apoia políticas e programas de organizações internacionais, governos, empresas e instituições como escolas e espaços culturais para atender objetivos que vão da melhoria de processos de gestão, governança, aprendizado e apropriação de conhecimento até a disseminação de valores éticos e humanísticos. Em 2004, foi co-fundadora da primeira empresa brasileira especializada em “comunicação por causas”, a Xbrasil, onde a atualmente lidera o Núcleo de Estratégia. Esteve a frente de instituições e órgãos de governo,  onde se destacam a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (2011), a Coordenação Regional da UNESCO no Rio de Janeiro (1999-2003), a Diretoria de Planejamento e Coordenação da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte (1994-1996). 

2 comments:

Nuno Beja said...

Olá boa tarde
Afirmo e continuarei a afirmar que é do Brasil que nos chegam as ideias mais "frescas" e reflexões sobre cultura. É a minha luta e o meu lema de vida, encarar a cultura como fundamental, melhor, vital para sermos, todos, melhores a cada dia que passa. Infelizmente, na maior parte dos países europeus (lembro-me, por exemplo, da Hungria e do "grito" dos seus cidadãos empenhados numa cultura livre, contra um poder que deseja destruir o pensamento - sim o pensamento como argamassa de tudo o resto - livre , independente e empenhado) começam a parecer - utilizando um conceito de Peter Brook - um "Teatro do Aborrecimento Mortal", com tudo o que isso implica até ao nível do pensamento e criação contemporâneos.
Mais uma vez muito obrigado por partilhar este ar fresco que nos refresca e insufla de energia.
Nuno Beja

Maria Vlachou said...

Também gosto muito da forma como a Marta Porto pensa a cultura. O sector no Brasil tem muita sorte em ter uma pessoa como ela. Um artigo do qual gostei particularmente intitula-se "Recuperar a dimensão política da cultura: nosso principal desafio". Se colocar o link aqui, acho que não funciona, mas pode fazer uma pesquisa no Google. Convidava-o também, Nuno, a colocar o seu comentário no meu post no Facebook, onde penso que será visto por mais pessoas e poderá contribuir para alimentar o debate (sobre este post e outros que se seguirão). Penso que pode fazê-lo sem sermos "amigos", porque é um post público, mas enviarei um pedido de amizade, caso não funcionar e quiser partilhar a sua opinião naquele forum. Um abraço