Ricardo Brodsky, Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos
em Santiago de Chile, abriu a conferência da Museums Association em Liverpool
no passado dia 11 de Novembro. A fotografia que o museu colocou no Facebook
fez-me logo sentir pena de não ter podido assistir ao seu discurso. Mas
contactei o Ricardo e ele teve a amabilidade de me enviar o seu texto e de
autorizar a sua publicação neste blog. Apresentamos aqui uma versão editada,
mais curta, mas existe um link no fim para os interessados em ler o texto na
íntegra. mv
Este é o
nosso 11 de Setembro, o início da história à qual irei referir-me e que
inspirou o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (MMDH) no Chile.
1. Memória
A memória
não é um exercício nostálgico. A memória é a nossa identidade, o que somos.
Poderíamos dizer que a memória habita em nós de tal forma que define as nossas
ideias sobre o presente, os nossos valores e a nossa percepção do futuro.
No seu texto
La Muralla y los Libros, Jorge Luís
Borges fala do Emperador Shih Huang Ti, que construiu a muralha da China e
ordenou, ao mesmo tempo, que todos os livros produzidos antes dele fossem
queimados. Com a muralha pretendia proteger o seu país dos inimigos externos e
queimou os livros porque os seus opositores recorriam a eles quando queriam
louvar os seus antepassados. O mesmo foi testemunhado nos anos de Pinochet,
quando as instituições do país foram destruídas, desapareceram pessoas, foram
queimados livros e as pessoas ligadas à cultura e história popular foram
banidas porque, de alguma forma, representavam todas uma epopeia que tinha que
ser abolida.
Uso a
palavra ‘abolida’ e não a palavra ‘esquecida’ de propósito. O género de memória
de que estamos a falar não equivale à capacidade de armazenamento de um disco
rígido num computador, onde tudo é registado sem hierarquia. O oposto à memória
não é o esquecimento mas a abolição, a eliminação. A memória funciona com
eventos exemplares, com o que nos permite aprender lições, dar sentido à
experiência vivida. A memória é, por isso, um passo mais alto, além do trauma e
dos sentimentos de desespero, solidão e depressão que a memória pode causar. A
memória é o que permite à vida continuar, com a esperança de voltarmos atrás,
de voltarmos a nos apoiar nos nossos próprios pés. Com uma narração sobre o
nosso passado e uma aposta sobre o nosso futuro.
2. Ligações
No MMDH
trabalhamos com material que é extremamente complexo e sensível: verdade,
justiça, vitimização, memória, reconciliação, reparação. Todas estas são ideias
que nos questionam permanentemente e que nos obrigam, repetidamente, a
reflectir sobre os conceitos que são a base do nosso trabalho. É impossível, no
entanto, perceber a nossa instituição se não percebermos o processo do qual
resultou, assim como as necessidades sociais e políticas que é suposto serem
consideradas.
Em 11 de
Setembro de 1973 começou uma das experiências políticas mais traumáticas do
Chile. As forças armadas, lideradas por uma junta militar de
comandantes-em-chefe, levantou as armas contra o Governo de Unidade Popular de
Salvador Allende, instalando uma ditadura cruel que durou 17 anos, suprimindo
os direitos legais e cometendo graves violações contra os direitos humanos, que
resultaram na morte e desaparecimento de mais de três mil pessoas e a prisão
política e tortura de mais quarenta mil, assim como o exílio de quase um milhão
de Chilenos.
Dezassete
anos mais tarde, no seguimento da vitória da oposição num referendo realizado
em 1988, com o objectivo de prolongar o governação de Pinochet, foi iniciada
uma transição complexa e difícil para a democracia, que incluiu enfrentar as
dívidas espinhosas deixadas pela ditadura, não apenas na esfera social e
política, mas especialmente na área da recomposição moral da nossa sociedade, ou
seja, na esfera da verdade, da justiça e dos direitos humanos. As políticas de
direitos humanos do governo democrático têm-se centrado em quatro pilares ou
exigências básicos: verdade, justiça, reparação e memória.
Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: MMDH) |
3. Verdade
Quando a
democracia foi recuperada, o primeiro esforço na área dos direitos humanos no
Chile foi no sentido de procurar estabelecer a verdade sobre as mais sérias
violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura de Pinochet. Foram
estabelecidas duas comissões, envolvendo pessoas com altas credenciais, que
afirmaram que as violações dos direitos humanos cometidas por agentes do estado
eram massivas, sistemáticas e tinham sido aprovadas ao mais alto nível do
governo de então. Esta afirmação, apoiada pela existência de provas e
testemunhos irrefutáveis, permitiu ao país saber a verdade sobre a existência
de mais de 3.000 detidos-desaparecidos e executados e permitiu ainda dar um
segundo passo muito relevante, que foi a abertura da possibilidade de
estabelecer políticas de reparação para as vítimas e as suas famílias. Em 2003, a segunda comissão,
criada para investigar os casos de pessoas que foram presos políticos e que
tinham sido torturadas, reconheceu a existência de 38.254 vítimas de tortura.
4. Justiça
A luta pela justicça
no processo de transição tem sido o aspecto mais difícil e polémico. Desde o
fim do regime militar e até 1998,
a investigação judicial teve, em geral, escassos
progressos e era normal os tribunais aplicarem um decreto de amnistia passado
pela ditadura militar. Em 1998, com a detenção de Pinochet em Londres, ordenada
pelo juiz espanhol Baltazar Garzón, foram criadas novas condições, que
produziram, lentamente mas gradualmente, alguns progressos nas investigações
judiciais, que permitiram identificar aqueles directamente responsáveis por
violações dos direitos humanos. Hoje em dia, existem 1.426 casos abertos, dos
quais 1.402 lidam com desaparecimentos ou assassinatos. No entanto, apenas 66
agentes servem penas de prisão, entre eles algumas figuras-chave da DINA
(Departamento de Inteligência Nacional) e da CNI (Agência de Inteligência
Nacional); 173 agentes foram condenados mas não estão na prisão, por várias
razões, e existem ainda 528 agentes cuja acusação foi concluída, mas que ainda
não tiveram uma sentença definitiva.
5. Construindo memória
Neste
contexto, o governo de Michelle Bachelet criou em 2010 o Museo de la Memoria y
los Derechos Humanos, como um projecto de reparação moral ou simbólica para as
vítimas da ditadura e como um projecto educativo, de forma que as novas
gerações possam entender o valor do respeito pelos direitos humanos.
Museo de la Memoria y los Derechos Humanos
O MMDH, onde
a sociedade chilena cumpre simbolicamente o seu dever de memória, olha
directamente para o seu passado e dá resposta ao direito de memória para as
vítimas da ditadura. As suas origens podem ser encontradas nas recomendações do
relatório de verdade de 1991 e na afirmação em 2004 da UNESCO que os arquivos
de varias organizações de direitos humanos do Chile fazem parte da memória do
mundo. Além disto, existe uma exigência por parte das organizações de
familiares e vítimas de abusos dos direitos humanos. O museu dispõe da maior
colecção de documentos, fotografias, testemunhos e filmes sobre a ditadura no país
e expõe-los ao público, procurando criar empatia pelas vítimas e fazer reviver
os valores e lições das experiências de abusos dos direitos humanos. Os grupos
de vítimas estão activamente envolvidos na vida do museu e sentem-se incluídos.
A missão do
MMDH é “dar a conhecer as violações sistemáticas dos direitos humanos em nome
do estado chileno entre 1973 e 1990, de forma a – reflectindo eticamente sobre
a memória, a solidariedade e a importância dos direitos humanos – a vontade da
nação seja reforçada, para que não se repitam nunca mais repetidas acções que
afectam a dignidade humana”.
Qual o lugar deste museu na sociedade chilena hoje?
Pierre Nora disse
que os Lugares de Memória são construções que procuram “fazer parar o tempo,
bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado das coisas, imortalizar a
morte, materializar o que é imaterial de forma a cativar o maior número de
sentidos no menor número de sinais”. Neste sentido, o MMDH tem como missão
recuperar e preservar os vestígios desse passado traumático, dar testemunhos do
sofrimento, de forma que o conhecimento do público sobre o que se passou possa
quebrar o círculo de silêncio e impunidade e dar ênfase à necessidade de
prevenir que algo assim volte a acontecer. Noutras palavras, o Museo de la
Memoria, como expressão de uma política pública de reparações, é o principal
gesto do Estado de reparação moral para as vítimas da ditadura: é aqui que a
história ou a biografia de cada uma das vitimas é encontrada ou construída e
onde a sua dignidade, que lhes foi arrancada, lhes é devolvida. O MMDH
tornou-se numa referência para o país e a região, estando a ser construídos
projectos similares em países como Peru, Brasil, Argentina e Colômbia.
Dito isto,
devo também dizer que este é um projecto localizado na terra das controvérsias.
Cada museu que lida com histórias traumáticas sabe da tensão entre história e
memória, entre a explicação dos acontecimentos organizados cronologicamente e a
experiência subjectiva das memórias apoiadas por testemunhos. Os museus de
memória enfrentam, precisamente, o desafio de conjugar esta tensão, de forma
que os testemunhos possam ser exemplares e representativos, transcendendo a
mera experiência pessoal ou aquela dos grupos directamente afectados. Apenas
resolvendo esta tensão de uma forma positiva pode a mensagem ser universal e
ligar as exigências para verdade e justiça com um imaginário democrático mais
amplo.
De acordo
com alguns, a museografia do MMDH coincide com o que Pierre Nora chama de
transformação da memória em história, ou seja, “depende completamente do que é
mais preciso nos rastros deixados, do que é mais natural nos destroços, do que
é mais concreto nos registos, o mais visível na imagem”. Certamente, os
visitantes enfrentam os vestígios do passado, as caras dos desaparecidos, o
bombardeamento de La Moneda, os testemunhos dos que foram torturados, a
angústia das famílias. São forçados a viver uma experiência de apreensão, de
compaixão, empatia e emoção. Mas encontram também os documentos, os ficheiros
legais, os decretos que levam a uma experiência de confronto, de análise, de
comparação, de visualização do contexto em que a violência teve lugar. Neste
sentido, o museu propõem uma narrativa capaz de transmitir sentido, começando
por um sentimento de empatia para com as vítimas.
A criação do
MMDH gerou uma grande controvérsia no país desde o primeiro dia. Estes são
precisamente os tópicos desta conferência. Como lidamos com questões sensíveis
e controversas numa instituição que deve apresentar uma história que é ainda
viva na sociedade chilena, uma vez que muitos dos seus actores ocupam ainda
lugares públicos e as famílias chilenas vêem ou sofrem ainda as consequências
desse período?
As atitudes
críticas perante o Museu de la Memoria ou negam a existência de violações dos
direitos humanos ou as justificam, invocando a necessidade de travar uma guerra
contra uma ameaça representada por partidos marxistas. Há uma crítica mais
ligeira da parte de outros grupos, acusando o museu de distorcer a história
mostrando apenas um aspecto do período da ditadura (as violações dos direitos
humanos) e fragmentando o tempo, não permitindo, assim, às pessoas visualizarem
as causas da ditadura militar. Resumindo, os críticos apontam para a
parcialidade do museu quando inclui uma visão desse período, aquela das
vítimas. Isto significaria que a narrativa não é tão objectiva quanto devia e,
sobretudo, que não nos permite saber porque é que teve lugar a crise política
de 1973, culminando no golpe de estado e nas violações dos direitos humanos.
Instalação de Alfredo Jaar no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: Cristóbal Palma para o jornal El País) |
Para nós, a
missão do museu é sensibilizar o público em relação à gravidade das violações
dos direitos humanos no período Pinochet, e esta sensibilização não tem um
propósito político ou eleitoral, mas, sim, um propósito moral, ou seja,
transformar o respeito pelos direitos humanos num imperativo categórico na
nossa coexistência, independentemente do contexto em que tem lugar.
O Museu não pode fingir estabelecer uma leitura inequívoca do passado.
Pelo contrário, a sua perspectiva é abrir múltiplas possibilidades de leitura.
É importante dizer que o MMDH é entendido como um museu vivo, aberto à
reinterpretação da experiência e, por isso, fornece um espaço importante para a
arte contemporânea. Prova disto é a presença de obras de arte na exposição permanente,
tal como o poema de Jorge Tacla escrito por Victor Jara na prisão e o trabalho
de Alfredo Jaar “A geometria da consciência”, que sugere que o diálogo é um
tributo às vítimas.
Leiam o discurso na
íntegra aqui.
Ricardo Brodsky Baudet é Director do
Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Chile desde Maio 2011.
Desenvolveu um projecto no Museo de la Memoria como um espaço de reflexão e de educação
pública, dando mais importância à colecção e à exposição permanente e uma
posição proeminente às artes visuais e vários eventos culturais relacionados
com a memória e os direitos humanos. Foi Secretário-Geral da Federação de
Estudantes no tempo da ditadura. Secretário Executivo da Fundação “Chile 21” em 1992, da Fundação
“Proyectamérica” em 2006 e fundador e director da Fundação para as Artes
Visuais de Santiago; organizador da primeira Trienal do Chile (2009). Foi
consultor para a política cultural do Conselho Nacional para a Cultura e as
Artes, Chile (2004-2007). Ocupou vários lugares no governo entre 1993 e 2010.
Chefe da Divisão de coordenação interdepartamental da Secretaria-Geral do
Ministério da Presidência (2007-2010), Embaixador do Chile na Bélgica e no
Luxemburgo (2000-2004).
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