O Museu Ivan Honchar em Kiev, onde trabalha o meu amigo e colega Ihor Poshyvailo, publicou um post no Facebook no passado dia 20 de
Novembro que dizia: “O Museu Ivan Honchar apoia os protestos nacionais contra a
política do governo e contra os crimes da polícia para com os estudantes em
protesto, e encoraja as pessoas a juntarem-se ao actual movimento popular para
a democracia. Não sejam indiferentes – venham à Maidan! Só poderemos ganhar se
estivermos juntos!”. Fiquei profundamente impressionada com esta afirmação tão
audaz da parte de um museu nacional e pedi ao Ihor para partilhar connosco a
sua reflexão sobre o papel que os museus podem desempenhar nas suas sociedades
em momentos históricos, como estes que estão a ter lugar actualmente na
Ucrânia. Não tenho palavras para agradecer ao Ihor o seu lindíssimo texto. mv
Foto: Bohdan Poshyvailo |
No dia 1 de Dezembro, a minha amiga e colega americana
Linda Norris publicou o post If I Ran a Museum in Kyiv Right Now no seu blog The Uncataloged Museum. Foi a
resposta imediata desta especialista em museus, muito conhecida na Ucrânia, ao
ataque nocturno da polícia de choque a manifestantes pacíficos, sobretudo
estudantes, em Kiev. Uma onda de manifestações e de agitação civil surgiu no
final de Novembro, resultado de uma reivindicação maciça em Kiev por uma maior
integração europeia, que se chamou “Euromaidan”. Guy
Verhofstadt, membro do
Parlamento Europeu e antigo Primeiro-Ministro da Bélgica, considerou-a a maior manifestação pró-Europa na história da UE.
Victoria Nuland, Assistant Secretary no
United States Department, declarou que a Euromaidan é um
símbolo do poder da sociedade civil:
“É sobre justiça, direitos civis e a exigência das
pessoas de ter um governo que as ouve, que representa os seus interesses e que
as respeita.”
No seu post,
Linda coloca-se no lugar do director de um museu ucraniano e apresenta um plano
de acção em três áreas: representação dos valores e ética da comunidade,
serviço à comunidade, e colecção. Mais especificamente, teria feito uma
declaração pública, teria olhado para o comportamento ético e a transparência
no seu próprio museu, teria aberto as portas e convidado o público a entrar
gratuitamente. Teria mantido o museu aberto cedo de manhã e até tarde à noite,
oferecido chávenas de chá, proporcionado um lugar quente para reflexão e contemplação
e criado, na exposição, um espaço para as pessoas escreverem ou desenharem
sobre as suas esperanças e medos; teria encorajado os participantes a pensar
sobre a Ucrânia como uma nação, sobre a beleza, a verdade e as histórias
complicadas. Mais do que isso, teria permitido e até encorajado os funcionários
do museu a participar nos protestos, se assim desejassem. Se a Linda fosse
directora de um museu de história, estaria na rua a coleccionar objectos para a
colecção, começando por Tweets e posts no Facebook, histórias orais,
bandeiras, estandartes e sinais feitos à mão, e fotografias de barricadas,
capacetes e fardas de polícia e até antídotos ao gás lacrimogéneo feitos em
casa.
Foto: Bohdan Poshyvailo |
Realmente,
esta é uma reacção simples, eficaz e aparentemente comum para um típico museu
americano ou ocidental. Um museu que é “sobre”, “para” e “com” as pessoas.
Tinha sido este o tema da comunicação de uma outra colega e amiga, Maria
Vlachou, na European Museum Mediators Conference em Lisboa, no ano passado
(aqui). Servir a comunidade é
particularmente importante para os museus modernos, que se estão a tornar em
agentes de comunicação, operando não apenas explicitamente ao nível dos
objectos de história, ciência, cultura, educação e entretenimento, mas também a
um nível implícito, abordando as esferas do poder, da ideologia, dos valores e
da identidade.
Mas para mim, no contexto dos actuais eventos em Kiev, a
combinação das palavras “museus com as pessoas” ganha um novo sentido, um
sentido especial. Isto parece bastante óbvio, banal até. Mas será comum para a
Ucrânia e outros nações pós-soviéticas? Os nossos museus querem, podem e sabem
como estar com as pessoas? Especialmente num período de revoltas sociais e
tensões políticas, em situações invulgares, que exigem de um museu um olhar
aberto e honesto nos olhos dos seus actuais e potenciais visitantes, das
comunidades que representam.
Foto: Bohdan Poshyvailo |
Acontece que a maioria dos museus na
Ucrânia são estatais e, por isso, dependem ideologicamente, financeiramente e
administrativamente do governo. Portanto, como deveriam comportar-se durante um
conflito profundo entre o governo e a sociedade? Espero que para muitos museus
a resposta seja teoricamente óbvia – o mesmo que para os soldados do exército e
da polícia de choque que juraram “estar ao serviço das pessoas”. Serão os museus
ucranianos observadores indiferentes dos eventos empolgantes da Praça da
Independência, que têm tido cobertura a nível internacional? Como é que podem
responder e mostrar-se inclusivos para as necessidades da sociedade e das
comunidades que representam e que servem?
Ironicamente, no momento que o Presidente da Ucrânia
Yanukonych estava de visita no Museu Qin dos Soldados em Terracotta na China e
escrevia no livro dos convidados de honra, o ICOM Ucrânia e uma série de museus
ucranianos emitiam declarações públicas condenando a inesperada repressão de
manifestantes pacíficos e a retirada do pacto de associação à União Europeia. O
Conselho de Directores dos Museus de Lviv coordenou as declarações de protesto
de vários museus de Lviv. Um dos mais antigos museus etnográficos da Europa
Oriental-Central, o Museu de Etnografia e Artesanato de Lviv, exibiu um
estandarte na sua varanda que dizia “Apoiamos as exigências do Euromaidan”. Em
Kiev, uma dúzia de museus fizeram declarações públicas, incluindo o Museu da História
de Kiev que é gerido pela Câmara e tutelado pelo seu Presidente, cuja sede foi
ocupada pelos manifestantes. O Museu-Memorial Pavlo Tychyna (perto de Maidan)
abriu as suas portas aos manifestantes e ofereceu-lhes chá, um espaço para
descansarem e programas culturais. O Museu-Reserva de História “Tustan” na
região de Lviv pediu às pessoas através do Facebook para cozinharem bolos de
mel, escreverem uma mensagem e enviarem aos activistas que gelam na rua. O
Museu Ivan Honchar, que glorifica as eternas virtudes tradicionais do povo
ucraniano – liberdade, fé, honra, democracia e humanismo, levou os seus
programas educativos para a Euromaidan. Realizou uma série de flash mobs
(como a instalação e decoração do tradicional símbolo ucraniano do Natal –
Didukh, “o espírito dos antepassados”, aos pés do monumento da Independência) e
organizou celebrações populares, danças e canções no epicentro da área dos
protestos.
Praticamente todos os museus na Ucrânia são geridos e
financiados pelo estado. Naturalmente, estamos preocupados com eventuais
repercussões. Soubemos do director do famoso Museu do Território do Terror em
Lviv que foi inquirido pelo Departamento de Investigação do Gabinete do
Procurador-Geral como “testemunha” dos eventos na Euromaidan. Ouvimos sobre o
condutor do metro de Kiev que foi despedido simplesmente por dizer aos
passageiros como encontrar a saída mais próxima das estações centrais que
estavam bloqueadas para se juntarem aos manifestantes. Ouvimos sobre os
comandantes da polícia de choque que foram dispensados em algumas regiões
quando os seus soldados se recusaram a ir a Kiev e atacar os manifestantes.
Foto: Bohdan Poshyvailo |
Claro que o síndrome da Praça Tahrir está vivo nas
memórias de muitos profissionais de museus, mas penso que a Euromaidan
ucraniana é uma grande oportunidade para muitos museus testarem a sua
capacidade de estar com as pessoas. Vi esta necessidade nos olhos brilhantes de
muitos manifestantes pacíficos nas últimas três semanas. Cheguei à conclusão
que, para estarem com as pessoas, os nossos museus não precisam necessariamente
de fazer coisas extraordinárias, deveriam sobretudo ouvir com atenção o pulso
da nação e abrir as suas portas aos corações gelados.
Ihor
Poshyvailo é Etnólogo, doutorado pelo Instituto de Estudos
Artísticos, Arte Popular e Etnologia, Academia Nacional das Ciências da Ucrânia
(1998). É Director-Adjunto do Centro Nacional de Cultura Popular “Ivan Honchar
Museum” (Kiev). Co-moderador e co-organizador de seminários internacionais sobre gestão
de museus (desde 2005). Participou no International
Visitor Program (EUA, 2004), Global Youth Exchange Program (Japão, 2004) e The
World Master’s Festival in Arts and Culture (Coreia do Sul, 2007). Curador de projectos artísticos internacionais, incluindo a exposição
itinerária “Smithsonian Folklife Festival: Culture Of, By, and For People”
(2011), “Interpreting Cultural Heritage”
(2011), “Home to Home: Landscapes of Memory”
(2011-2012). Foi Fulbright Scholar no Smithsonian Center of
Folklife and Cultural Heritage (2009-2010) e Summer International Fellow no
Kennedy Center (2011-2013). Ihor escreveu um
outro post para este blog em 2012, intitulado Reinventando e tornando os museus relevantes.
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