Monday, 6 January 2014

Para que possam viver felizes para sempre


Lembro-me que quando li a notícia sobre a colaboração do Museu de Arte Antiga (MNAA) com a agência Everything is New na produção da exposição do Prado em Portugal senti-me um pouco surpreendida. Tão pouco tempo depois da exposição de Joana Vasconcelos no Palácio da Ajuda e apesar das questões que aquela primeira parceria tinha levantado (não tanto publicamente e formalmente, talvez, mas, sem dúvida, em muitas conversas entre colegas), aqui estava mais uma parceria do Estado Português (e de um museu nacional) com o mesmo parceiro. Pelo que li nos jornais, a Everything is New financiou a produção da exposição no valor de €380.000, sendo que a receita de bilheteira e de outras vendas até este valor será a 100% da Everything is New; acima deste montante, será dividida entre esta agência e o MNAA.   

Acredito muito nas parcerias público-privadas e penso que irão acontecer cada vez mais e ainda bem. Além disso, e no caso específico da Everything is New, gostei particularmente de ler as afirmações do seu director, Álvaro Covões, em Novembro passado, a propósito dos resultados do Eurobarómetro sobre a participação cultural dos portugueses. Numa altura em que a maioria das reacções no sector ia no sentido de acusar este povo de ignorância e desinteresse e falta de cultura, Covões dizia que o estudo não era assustador e que, pelo contrário, representava uma oportunidade e uma responsabilidade social. Eu também penso o mesmo.


Quando na semana passada entrei no MNAA, uma das primeiras coisas que vi foi um suporte acrílico com folhetos: da exposição temporária do Prado em Portugal; do concerto da Beyonce; e do espectáculo “Dralion” do Cirque du Soleil. Percebi, então, que este era o suporte de publicidade da Everything is New. Esta mistura de propostas fez-me sorrir. Colocar as paisagens nórdicas de Rubens, Brueghel e Lorrain lado a lado com a Beyonce, no Museu de Arte Antiga, pode ser uma forma de desafiar os nossos preconceitos sobre “alta” e “baixa” cultura, de reconhecer que quem gosta de uma coisa pode também gostar da outra e que as formas de participação cultural variam e não acontecem apenas dentro de moldes pré-definidos pelos profissionais do sector. Acredito que esta coexistência no suporte acrílico tenha sido apenas o resultado de uma das contrapartidas dadas à Everything is New e não uma tentativa consciente de desafiar as nossas noções sobre o que é “cultura” e “arte”. Mesmo assim, é um dos resultados colaterais, e para mim positivos, deste género de parcerias.

Depois deste sorriso inicial, no entanto, começaram a surgir as dúvidas. E isto porque, quanto mais olho para os pormenores da comunicação desta parceria, mais sinto que o que vi não foi a nova exposição do MNAA, mas sim, a exposição da Everything is New no MNAA. Detalhes? Talvez sim, talvez não.

O folheto da exposição é um folheto neutro. ‘Neutro’ porque não identifica, como devia, a entidade promotora, a entidade que apresenta a exposição e que nos convida a visitá-la (o que normalmente acontece através da inclusão do logo desta num lugar de destaque). No caso do MNAA e de outros museus nacionais isto não é novo. Estas entidades estão condenadas à discrição, não se podem assumir como grandes promotoras das suas iniciativas, sendo o seu logo remetido para o rodapé dos materiais de divulgação, obrigatoriamente precedido por aqueles (dois neste caso) da sua tutela e ao mesmo nível que os logos dos apoios. Nos materiais de divulgação, a referência aos museus nacionais é, em primeiro lugar, uma referência ao local – apenas o local – de uma exposição. O que é novo no folheto desta exposição no MNAA é que o museu é mesmo identificado como ‘o local’. Não se trata apenas de uma interpretação da forma como a informação é referenciada, mas existe mesmo a designação “Localização / Location”, e não “Morada / Address”, como seria natural. Detalhes? Talvez sim, talvez não.

A posição discreta do MNAA no âmbito desta parceria é reafirmada nos suportes online. Ao clicar na imagem desta exposição temporária no website do museu, somos levados para uma página com apenas três links: 1. Nota de imprensa + info (encontramos aqui informação destinada apenas aos meios de comunicação social); 2. Vídeo de divulgação (no canal do You Tube do MNAA e com o título “A Paisagem Nórdica do Museu do Prado” e não “Rubens, Brueghel, Lorrain”, que é o título com o qual a exposição está a ser divulgada – um pouco enganador, mas por uma boa causa, suponho, uma vez que os nomes são atractivos, apesar da sua representação na exposição ser limitada); 3.  Bilhetes e informações (remete para o site específico da exposição - Porque é que esta exposição tem um site específico? Porque é que não encontramos toda a informação relevante no site do MNAA?). Detalhes? Talvez sim, talvez não.

Imagem retirada do website Portugal Confidential.
Onde quero chegar? Uma das coisas que aprendi e muito bem nesta profissão é que tudo, ‘tudo’, comunica: o que se diz e o que não se diz; o que se faz e o que não se faz. E o que me é comunicado no caso desta parceria, olhando para alguns suportes de divulgação e lendo as notícias nos jornais, é a afirmação da Everything is New como o agente que permitiu tornar a exposição realidade e que, por isso, pode beneficiar de (ou exigir?) condições especiais de apresentação e de representação.

“Mas, o que é que te incomoda realmente?”, insistiu uma amiga.

O que me incomoda realmente é que parcerias como esta são, na verdade, vistas como uma espécie de favor que se faz da parte de quem tem o dinheiro e não como verdadeiras parcerias, que contam com o contributo de ambas ou, neste caso, de várias partes. A Everything is New investiu nesta exposição, como antes na exposição da Joana Vasconcelos, um valor muito significativo que, sem dúvida, foi determinante para a viabilização do projecto. Fê-lo não porque teve pena dos museus e das condições muito limitadas em que estes estão a operar, mas porque sentiu que tinha algo a ganhar com isto, tanto em termos financeiros, como também em termos de prestígio, nesta área que não é propriamente – ou ainda - a sua. Por isso, não investiu numa exposição qualquer, mas sim, numa exposição que resulta da parceria do MNAA com o Museu do Prado. Pelo seu lado, o MNAA não recebeu apenas. Contribuiu igualmente para a realização da exposição. Contribuiu com o espaço, contribuiu com a toda a sua infra-estrutura, contribuiu com a sua expertise e contribuiu com o seu prestígio. Esta exposição não seria a mesma coisa se este museu não estivesse envolvido. E ainda, quanto terá custado, por exemplo, o seguro das obras, suportado pela Lusitânia? Ou a impressão do catálogo, assumida pela Casa da Imprensa? Portanto, esta é uma verdadeira parceria e deveria ser encarada como uma “win-win situation” e não como um risco assumido, generosamente e apenas, pela Everything is New. A exposição não teria acontecido apenas com os €380.000 que a agência investiu, não é verdade?

Imagem retirada do website Museus de Portugal
Mas mesmo antes disto, o que me incomoda realmente, e principalmente, é que o Estado avançou com esta nova parceria com a Everything is New sem terem sido discutidas, esclarecidas e avaliadas as questões levantadas pela exposição da Joana Vasconcelos no Palácio da Ajuda. Questões relacionadas com a entrega do espaço ao controlo do parceiro/investidor; com o impacto na colecção do Palácio e no próprio edifício, devido a decisões/imposições que contrariavam os conselhos dos técnicos do museu; com as condições de contratação e com a preparação dos monitores da exposição. Não consigo dizer até que ponto estas questões têm fundamento ou não; também não tenho informação concreta sobre os moldes da parceria, apesar de a ter procurado.

O Estado tem responsabilidades e tem a obrigação de ser transparente na elaboração destas parcerias. Nós, os profissionais, também temos responsabilidades e a obrigação de exigir transparência e de intervir de forma decisiva, o que ultrapassa as conversas entre colegas e a troca de comentários no Facebook. As parcerias público-privadas são fundamentais e, na minha opinião, desejáveis. Tal como é desejável que tenhamos conhecimento dos moldes em que as mesmas se constróem para que não fiquemos com a incómoda sensação - interpretando os sinais, as conversas, os rumores e as notícias nos jornais – que os museus nacionais são entregues a agentes externos e usados apenas como palcos. Detalhes? Certamente que não.

2 comments:

sara said...

Uma amiga do Porto foi ver a exposição (eu ainda não fui) e sugere no FB um título alternativo: "Rubens, Brueghel, Lorrain. Três ou quatro bons quadros do Prado" :)

Maria Vlachou said...

:-) Não sou perita nesta área... Gostei da exposição, que não é feita só de quadros de famosos, apesar do marketing se concentrar neles.