Lembro-me que quando li a notícia sobre a colaboração do
Museu de Arte Antiga (MNAA) com a agência Everything is New na produção da
exposição do Prado em Portugal senti-me um pouco surpreendida. Tão pouco tempo
depois da exposição de Joana Vasconcelos no Palácio da Ajuda e apesar das
questões que aquela primeira parceria tinha levantado (não tanto publicamente e
formalmente, talvez, mas, sem dúvida, em muitas conversas entre colegas), aqui
estava mais uma parceria do Estado Português (e de um museu nacional) com o
mesmo parceiro. Pelo que li nos jornais, a Everything is New financiou a
produção da exposição no valor de €380.000, sendo que a receita de bilheteira e
de outras vendas até este valor será a 100% da Everything is New; acima deste
montante, será dividida entre esta agência e o MNAA.
Acredito muito nas parcerias público-privadas e penso que
irão acontecer cada vez mais e ainda bem. Além disso, e no caso específico da
Everything is New, gostei particularmente de ler as afirmações do seu director,
Álvaro Covões, em Novembro passado, a propósito dos resultados do Eurobarómetro
sobre a participação cultural dos portugueses. Numa altura em que a maioria das
reacções no sector ia no sentido de acusar este povo de ignorância e
desinteresse e falta de cultura, Covões dizia que o estudo não era assustador e
que, pelo contrário, representava uma oportunidade e uma responsabilidade
social. Eu também penso o mesmo.
Quando na semana passada entrei no MNAA, uma das primeiras
coisas que vi foi um suporte acrílico com folhetos: da exposição temporária do
Prado em Portugal; do concerto da Beyonce; e do espectáculo “Dralion” do Cirque
du Soleil. Percebi, então, que este era o suporte de publicidade da Everything
is New. Esta mistura de propostas fez-me sorrir. Colocar as paisagens nórdicas
de Rubens, Brueghel e Lorrain lado a lado com a Beyonce, no Museu de Arte
Antiga, pode ser uma forma de desafiar os nossos preconceitos sobre “alta” e
“baixa” cultura, de reconhecer que quem gosta de uma coisa pode também gostar da
outra e que as formas de participação cultural variam e não acontecem apenas
dentro de moldes pré-definidos pelos profissionais do sector. Acredito que esta
coexistência no suporte acrílico tenha sido apenas o resultado de uma das
contrapartidas dadas à Everything is New e não uma tentativa consciente de
desafiar as nossas noções sobre o que é “cultura” e “arte”. Mesmo assim, é um
dos resultados colaterais, e para mim positivos, deste género de parcerias.
Depois deste sorriso inicial, no entanto, começaram a surgir
as dúvidas. E isto porque, quanto mais olho para os pormenores da comunicação
desta parceria, mais sinto que o que vi não foi a nova exposição do MNAA, mas
sim, a exposição da Everything is New no MNAA. Detalhes? Talvez sim, talvez
não.
O folheto da exposição é um folheto neutro. ‘Neutro’ porque
não identifica, como devia, a entidade promotora, a entidade que apresenta a
exposição e que nos convida a visitá-la (o que normalmente acontece através da
inclusão do logo desta num lugar de destaque). No caso do MNAA e de outros
museus nacionais isto não é novo. Estas entidades estão condenadas à discrição,
não se podem assumir como grandes promotoras das suas iniciativas, sendo o seu
logo remetido para o rodapé dos materiais de divulgação, obrigatoriamente
precedido por aqueles (dois neste caso) da sua tutela e ao mesmo nível que os
logos dos apoios. Nos materiais de divulgação, a referência aos museus
nacionais é, em primeiro lugar, uma referência ao local – apenas o local – de
uma exposição. O que é novo no folheto desta exposição no MNAA é que o museu é
mesmo identificado como ‘o local’. Não se trata apenas de uma interpretação da
forma como a informação é referenciada, mas existe mesmo a designação
“Localização / Location”, e não “Morada / Address”, como seria natural.
Detalhes? Talvez sim, talvez não.
A posição discreta do MNAA no âmbito desta parceria é
reafirmada nos suportes online. Ao clicar na imagem desta exposição temporária no website do museu, somos
levados para uma página com apenas três links: 1. Nota de imprensa + info
(encontramos aqui informação destinada apenas aos meios de comunicação social);
2. Vídeo de divulgação (no canal do You Tube do MNAA e com o título “A Paisagem
Nórdica do Museu do Prado” e não “Rubens, Brueghel, Lorrain”, que é o título
com o qual a exposição está a ser divulgada – um pouco enganador, mas por uma
boa causa, suponho, uma vez que os nomes são atractivos, apesar da sua
representação na exposição ser limitada); 3.
Bilhetes e informações (remete para o site específico da exposição -
Porque é que esta exposição tem um site específico? Porque é que não
encontramos toda a informação relevante no site do MNAA?). Detalhes? Talvez
sim, talvez não.
Imagem retirada do website Portugal Confidential. |
Onde quero chegar? Uma das coisas que aprendi e muito bem
nesta profissão é que tudo, ‘tudo’, comunica: o que se diz e o que não se diz;
o que se faz e o que não se faz. E o que me é comunicado no caso desta
parceria, olhando para alguns suportes de divulgação e lendo as notícias nos
jornais, é a afirmação da Everything is New como o agente que permitiu tornar a
exposição realidade e que, por isso, pode beneficiar de (ou exigir?) condições
especiais de apresentação e de representação.
“Mas, o que é que te incomoda realmente?”, insistiu uma
amiga.
O que me incomoda realmente é que parcerias como esta são,
na verdade, vistas como uma espécie de favor que se faz da parte de quem tem o
dinheiro e não como verdadeiras parcerias, que contam com o contributo de ambas
ou, neste caso, de várias partes. A Everything is New investiu nesta exposição,
como antes na exposição da Joana Vasconcelos, um valor muito significativo que,
sem dúvida, foi determinante para a viabilização do projecto. Fê-lo não porque
teve pena dos museus e das condições muito limitadas em que estes estão a
operar, mas porque sentiu que tinha algo a ganhar com isto, tanto em termos
financeiros, como também em termos de prestígio, nesta área que não é
propriamente – ou ainda - a sua. Por isso, não investiu numa exposição
qualquer, mas sim, numa exposição que resulta da parceria do MNAA com o Museu
do Prado. Pelo seu lado, o MNAA não recebeu apenas. Contribuiu igualmente para
a realização da exposição. Contribuiu com o espaço, contribuiu com a toda a sua
infra-estrutura, contribuiu com a sua expertise e contribuiu com o seu
prestígio. Esta exposição não seria a mesma coisa se este museu não estivesse
envolvido. E ainda, quanto terá custado, por exemplo, o seguro das obras,
suportado pela Lusitânia? Ou a impressão do catálogo, assumida pela Casa da
Imprensa? Portanto, esta é uma verdadeira parceria e deveria ser encarada como
uma “win-win situation” e não como um risco assumido, generosamente e apenas,
pela Everything is New. A exposição não teria acontecido apenas com os €380.000
que a agência investiu, não é verdade?
Imagem retirada do website Museus de Portugal |
Mas mesmo antes disto, o que me incomoda realmente, e
principalmente, é que o Estado avançou com esta nova parceria com a Everything
is New sem terem sido discutidas, esclarecidas e avaliadas as questões
levantadas pela exposição da Joana Vasconcelos no Palácio da Ajuda. Questões
relacionadas com a entrega do espaço ao controlo do parceiro/investidor; com o
impacto na colecção do Palácio e no próprio edifício, devido a
decisões/imposições que contrariavam os conselhos dos técnicos do museu; com as
condições de contratação e com a preparação dos monitores da exposição. Não
consigo dizer até que ponto estas questões têm fundamento ou não; também não
tenho informação concreta sobre os moldes da parceria, apesar de a ter
procurado.
O Estado tem responsabilidades e tem a obrigação de ser
transparente na elaboração destas parcerias. Nós, os profissionais, também
temos responsabilidades e a obrigação de exigir transparência e de intervir de
forma decisiva, o que ultrapassa as conversas entre colegas e a troca de
comentários no Facebook. As parcerias público-privadas são fundamentais e, na
minha opinião, desejáveis. Tal como é desejável que tenhamos conhecimento dos
moldes em que as mesmas se constróem para que não fiquemos com a incómoda
sensação - interpretando os sinais, as conversas, os rumores e as notícias nos
jornais – que os museus nacionais são entregues a agentes externos e usados
apenas como palcos. Detalhes? Certamente que não.
2 comments:
Uma amiga do Porto foi ver a exposição (eu ainda não fui) e sugere no FB um título alternativo: "Rubens, Brueghel, Lorrain. Três ou quatro bons quadros do Prado" :)
:-) Não sou perita nesta área... Gostei da exposição, que não é feita só de quadros de famosos, apesar do marketing se concentrar neles.
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