Paula Sá Nogueira no programa Inferno. |
Mais uma vez, a discussão que se gerou após o anúncio da
atribuição dos apoios da Direcção-Geral das Artes (DgArtes) fez-me pensar sobre
a forma como este sector comunica com o público, com os cidadãos e
contribuintes. Há uma questão maior, claro, a dos apoios em si: do sistema de
candidaturas, da avaliação das propostas, do acompanhamento das estruturas, do
propósito e da duração dos apoios. Mas hoje, aqui, a minha reflexão centra-se
na comunicação.
Paula Sá Nogueira (PSN), da Companhia Cão Solteiro (que,
pela primeira vez em 20 anos, não recebeu apoio da DgArtes) foi entrevistada no
início deste mês pelo programa “Inferno” no Canal Q. Quando os apresentadores
pediram para tentar explicar “à maioria” a sua afirmação que o Estado tem
obrigação de financiar as artes, PSN explicou:
“As artes promovem o pensamento; o pensamento promove a
evolução do homem; por isso, o investimento no pensamento e nas artes tem que
ser feito. (…) Talvez as artes sejam aquilo que nos impede de dar um tiro na
cabeça de manhã. Portanto, ou se investe nas artes ou em cemitérios.” (vídeo)
A entrevista de PSN foi partilhada e comentada pelos profissionais do
sector, sobretudo por outros artistas. A opinião geral é que falou muito bem.
No entanto, para mim, a questão centrou-se na mensagem, na linguagem e na sua
adequação ao meio de comunicação (neste caso, a televisão). Fiquei também a
pensar na escolha da pessoa que deverá dirigir-se ao público, à “maioria”, em
momentos como este. Como é que o cidadão comum, o contribuinte que com os seus
impostos apoia o trabalho do Cão Solteiro e de outros, terá recebido as
afirmações de PSN? Terá ficado esclarecido? Revoltado pelo facto do Cão Solteiro
não ter recebido o apoio, mesmo que nunca tivesse ouvido antes falar nesta
companhia? Terá considerado dar um tiro na cabeça?
Não pretendo ser irónica. Também eu gostei de ouvir a PSN no programa do Canal Q. Mas eu trabalho neste meio, entendo o que a PSN quer dizer, conheço o
contexto, conheço as especificidades do funcionamento deste sector. E nesta
qualidade, diria que a mensagem não passa e que deveremos ter uma preocupação
maior no nosso contacto com a “maioria”. O nosso discurso, tratando-se dos
meios de comunicação social, não pode ser um discurso de consumo interno,
apreciado e entendido pelos nossos pares, mas ineficaz com muitas outras
pessoas, que são também partes interessadas. E talvez não deva ser o próprio
artista a falar; pelo menos, não sempre.
Em 2012 tinha escrito sobre uma outra entrevista, realizada
pouco depois de ser anunciado o corte de 100% nos apoios anuais e pontuais
(Ministério da Cultura: Qual cultura? E de quem?). Nessa altura, o entrevistado era Jorge Silva Melo (JSM) num dos programas
de notícias matinais da RTP. Disse o seguinte: “Eu, como espectador, vou deixar
de ter espectáculos em que possa descobrir jovens talentos, jovens afirmações.
(…) Os apoios não são para financiar os artistas, os apoios são para financiar
o espectador. Porque se eu quiser ir ver um espectáculo do colectivo Truta, se
ele não tiver apoio, terei que pagar mais ou menos 100 Euros por bilhete e não
tenho esse dinheiro. E tenho direito de ver aquilo que os jovens criadores
andam a fazer, a inquietar-se, a pensar. É esse apoio que a mim, enquanto espectador,
me é retirado. (…)”.
Considerei, e considero, a resposta de JSM muito inteligente e, mais que
isso, adequada ao contexto em que estava a ser dada a entrevista. Colocou-se no
lugar do espectador, tentou explicar de que forma os cortes o afectam a ele,
como cidadão, e a outros. Saiu do registo habitual, algo egocêntrico, do
artista que muitas pessoas vêem ou ouvem uma vez na vida, quando perde o apoio
da DgArtes, uma intervenção que talvez só sirva para reforçar a ideia da
subsídio-dependência.
É urgente pensarmos a maneira como comunicamos com o exterior de forma
mais estratégica, escolhendo o interlocutor, a mensagem e a linguagem mais
adequados para cada contexto. A campanha britânica “I Love Museums” mostra um
caminho possível: permite ouvir a voz de pessoas comuns, de quem será afectado
pelos cortes (ler depoimentos). Penso que faz sentido, considerando que o destinatário final da mensagem é o
governo e os partidos e que os políticos avaliam tudo com base nos votos que
podem perder ou ganhar. A campanha encoraja ainda as pessoas a escrever
directamente ao deputado do seu círculo eleitoral e disponibiliza online
materiais gráficos em vários formatos, para facilitar a propagação da mensagem
nas redes sociais e noutras plataformas. Devo ainda dizer que o facto de ser
organizada pelo National Museum Directors’ Council foi uma agradável surpresa
para quem vive num país onde não se ouve publicamente a voz dos directores dos
museus nacionais em relação ao impacto dos cortes no funcionamento das
entidades pelas quais são responsáveis.
Este tipo de feedback, um indicador qualitativo do nosso
impacto na sociedade e na vida das pessoas, não nos é desconhecido. Mas penso
que não o procuramos activamente, não o registamos convenientemente e não
sabemos como e quando usá-lo. I Love Museums lembrou-me do caso da Casa
Conveniente, que, em 2011, foi a primeira companhia de teatro portuguesa, se
não me engano, a recorrer ao crowdfunding, com a campanha “Ser mecenas
da Casa Conveniente por €12”. Quando em Novembro de 2011 Mónica Calle e
Alexandra Gaspar vieram falar desta experiência numa conferência do ICOM
Portugal sobre sustentabilidade financeira, partilharam com os presentes
depoimentos maravilhosos e poderosos que as pessoas que quiseram apoiar
(muitas, com mais de €12) enviaram por email, juntamente com o seu donativo.
Várias vezes depois pensei se aqueles depoimentos terão sido aproveitados de
alguma forma e qual. Não os vi nem quando a companhia renovou o pedido nem em
materiais de divulgação nem no Facebook.
No entanto, estes são exemplos que envolvem pessoas que, a priori,
gostam de um determinado projecto cultural ou artístico, que têm já uma relação
com ele. Volto à minha preocupação inicial, que é “a maioria”, como disse o
apresentador do “Inferno”, que inclui também quem não conhece ou não se
relaciona. Como falar com o cidadão comum da necessidade de apoiar com dinheiro
público trabalhos que ele próprio pode não apreciar, não entender,
nem sequer conhecer? Como fazer com que “a maioria” considere que este apoio
vai para uma causa comum, indispensável, uma causa que traz benefícios a quem
usufrui e a quem não usufrui directamente? Seria mais fácil, talvez, se
estivéssemos a falar de uma escola ou de um hospital, mas estamos a falar das
artes. A nossa tarefa é bastante complexa, sabemo-lo. O que vamos fazer em
relação a isso?
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