A promoção do acesso intelectual por algumas pessoas no sector
cultural é muitas vezes descartada por outras como 'emburrecimento' (dumbing
down). Recentemente, li o seguinte no ensaio de Rob Riemen "O eterno
retorno do fascismo":
"Na cultura desta sociedade [a sociedade de massa;
nossa sociedade contemporânea], há uma tendência para o menor, o nível mais
baixo, porque é aqui que se encontra a maioria das coisas que as pessoas podem partilhar.
É exactamente por isso que os indicadores da educação universitária são
nivelados por baixo, de modo que ‘todos’ possam estudar e obter um diploma. E o
mesmo se aplicará às artes, porque elas terão de ser acessíveis a todos, não só
no que diz respeito às propinas, mas também ao nível de compreensão. Afinal, a
mais feroz indignação é dirigida ao que é difícil. Porque o que não é
compreendido imediatamente por todos é difícil, ou seja ‘elitista’ e, portanto,
não-democrático." (tradução minha do grego)
É por causa desta passagem num ensaio que apreciei
enormemente - em defesa de valores intelectuais, do humanismo, do pensamento
crítico, da liberdade e da responsabilidade individual, do amor à vida - que quis
escrever sobre o que ‘acesso intelectual’ significa para mim.
Em primeiro lugar, não acredito que tudo deve ser entendido
por todos e não defendo o nivelamento por baixo. O conhecimento é precisamente isso,
uma construção, que pode levar-nos mais e mais alto, elevar-nos, mas não vamos
directamente do ponto A ao ponto Z (vamos supor que um ponto Z existe, para
benefício do argumento). Na verdade, algumas pessoas podem ficar a meio caminho,
seja porque, intelectualmente, elas não podem ir mais longe ou porque não vêem
interesse no que lhes é proposto. Eu fico muitas vezes a meio caminho, em
relação a várias questões. Não defendo, porém, que tudo o que eu não entendo ou
que pessoalmente não aprecio não deve realmente existir ou não deve ser apoiado,
porque, mesmo se eu não usufruo directamente, entendo a sua importância na
construção. E penso que a questão aqui é mesmo esta.
Acredito que é perfeitamente legítimo que, digamos, um
museu organize uma exposição tendo em mente um público especializado. Os
especialistas são um dos muitos públicos do museu. O problema é que nunca vi um
museu assumir que a exposição que apresenta é dirigida principalmente aos
especialistas. Pelo contrário, e apesar de muitas exposições serem feitas por e
para especialistas, elas são oficialmente “para todos". Assim, quando as
pessoas não visitam, tentamos entender o que está errado com elas - as
pessoas-, qual é o problema delas.
Há alguns meses, num debate, alguns colegas da área das
artes visuais questionaram porque é que uma das grandes instituições culturais
de Lisboa não tem mais visitantes, embora apresente um excelente programa de
exposições. Atribuíram isso ao baixo nível cultural das pessoas, à falta de
interesse e ao amor pelo futebol... Contra-argumentei que devíamos primeiro
tentar entender que tipo de pessoas a dita instituição tem como objectivo
atrair, porque, considerando o conteúdo de suas exposições e a forma como estas
são comunicadas para o exterior, acredito que pode estar interessada em
dialogar principalmente com um público especialista ou iniciado e, assim, estar
muito satisfeita com os resultados. E se este for realmente o caso, então, está
tudo bem.
Assim, o meu primeiro ponto é que trabalhar para um público
especialista ou iniciado é perfeitamente legítimo (mas convinha que esta
posição fosse assumida). O meu segundo ponto é que nem todos têm como objectivo
fazer isso ou têm o direito de se limitar a isso, nomeadamente, as instituições
culturais públicas.
As instituições culturais têm um papel na construção do conhecimento
e na promoção de valores intelectuais; e as instituições culturais públicas têm
uma responsabilidade para com todos os cidadãos. Assim, não podem esquecer que
nem todos estamos no ponto Z e que haverá sempre pessoas que estão no A, B, C –
pessoas essas de todas as idades e não apenas crianças e jovens. A maioria dos
visitantes nas exposições dos museus, por exemplo, não é especialista, nem irá
tornar-se especialista visitando uma exposição. Proporcionar o acesso
intelectual, neste caso, é criar conteúdos que permitirão que os
não-especialistas possam ter uma introdução, tornar-se conscientes e interessados
em questões que
são novas para eles ou adquirir mais conhecimento ou uma interpretação
diferente sobre coisas que pensavam que sabiam. Comunicar com quem não partilha
os nossos conhecimentos e linguagem pode ser um desafio ainda maior.
Image retirada do website do Roadside Theater |
Da mesma maneira, precisamos de teatros ou orquestras que
contemplem também na sua programação as necessidades e interesses dos cidadãos
que estão no A, B, C. Isto não é feito através do ‘emburrecimento’; isso é
feito com respeito e sem paternalismos; é feito por especialistas com uma visão
clara de quem são as pessoas que estão a abordar e qual a razão porque as estão
a abordar; e às vezes pode ser feito em colaboração com outros museus,
orquestras e teatros, criando os percursos necessários para os que querem
continuar a caminhar. Eu não quero que esses especialistas me tratem como se fosse
burra. Quero que me tratem como uma pessoa inteligente, interessada e curiosa,
que deseja conhecer e saber mais.
O terceiro ponto que gostaria de levantar é a forma como se
comunica o que é complicado de entender, o que é inovador ou experimental, junto
daqueles que não vão usufruir directamente. Num post recente (A mensagem, a linguagem, as opções), escrevi
sobre a maneira pouco adequada como os artistas defendem a responsabilidade do
Estado em apoiar as artes perante um público mais alargado. Muitas vezes, e
considerando precisamente os diversos perfis dessa audiência, temos a pessoa
errada ou a linguagem errada no meio errado. As pessoas têm o direito de
entender porque é importante investir o dinheiro dos contribuintes em algo que elas
podem não apreciar pessoalmente ou mesmo entender. Isso nunca vai acontecer se
o sector sente que não tem que prestar contas (ser ‘accountable’); se pensa que
não tem que explicar nada a ninguém, porque o apoio financeiro do Estado é um
direito; se não adaptar a linguagem e a mensagem aos públicos com os quais
deseja (ou tem que) comunicar.
Assim, a razão porque defendo o acesso intelectual no
sector cultural é que as organizações culturais são sobre as pessoas e sobre a
vida. Se queremos ajudar a construir um mundo melhor - um mundo que reconhece e
defende valores intelectuais absolutos e abraça a verdade, a beleza e a justiça
na vida -, se queremos ajudar a elevar o ser humano, então as instituições culturais
são um dos lugares onde isto pode acontecer. Para que isso aconteça, porém,
estas têm que encontrar formas de envolver as pessoas - mais pessoas, todas as
pessoas que estão abertas e interessadas. É um processo e não nos leva directamente
de A a Z. Trata-se de construir sobre o que é conhecido para ir em direcção ao
desconhecido, o incómodo, o experimental; e pode e deve ajudar a instigar
apreço e apoio para tudo isto, mesmo que nem todas as pessoas entendam tudo,
mas porque elas acreditam na causa final.
Uma pessoa precisa de entender, porém, qual é a causa final
e quais são seus benefícios para todos. Isto é o que ‘acesso intelectual’
significa para mim e o ‘emburrecimento’ definitivamente não faz parte da
equação.
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