Monday, 19 October 2015

As armadilhas


Museu dos Coches, Lisboa (imagem retirada de Boas Notícias)

No mês passado, foi noticiado por vários jornais que nos quatro primeiros meses do novo Museu dos Coches houve uma série de acidentes devido a deficiências no projecto arquitectónico. ‘Deficiências' no sentido de terem sido adoptadas soluções (ou, se preferem, de terem sido criados elementos arquitectónicos) que se tornam armadilhas para os utilizadores do espaço (sim, eles existem).

Curiosamente (mas, mesmo assim, não surpreendentemente), três ou quatro dias depois foi também noticiado que este mesmo projecto arquitectónico, o novo Museu dos Coches, da autoria de Paulo Mendes da Rocha, recebeu o Prémio do Comité Internacional de Críticos de Arquitectura (CICA). Ricardo Bak Gordon, o arquitecto português que acompanhou o projecto, reagiu à atribuição da distinção afirmando que este será o primeiro de vários prémios internacionais que o museu receberá. "Ver a crítica reconhecer o projecto é muito importante. E ver um museu que foi inaugurado há tão pouco tempo e que não está ainda acabado recebê-lo faz-me pensar que os Coches só agora começaram a sua carreira internacional."

Fiquei perplexa em relação aos critérios que a crítica profissional usa para avaliar e premiar projectos de arquitectura. Será que a funcionalidade pesa tanto quanto a estética? A arquitectura não é esse equilíbrio? Ou devemos vê-la como como algo que existe para ser visto, mas não para ser usado por pessoas? Neste contexto, parece irónico que a primeira afirmação do jornalista que fez uma entrevista a Paulo Mendes da Rocha para a Gazeta do Povo tenha sido esta: "Sua principal característica é o respeito para com as pessoas que vão fazer uso do projecto e os habitantes da cidade. O próprio júri do Pritzker de 2006 reforçou essa sua consciência." Isto não será mais do que uma teoria bonita?

Arquipélago, Açores (imagem retirada do Diário Imobiliário)
A minha perplexidade em relação a estas questões intensificou-se quando, recentemente, vi uma imagem do interior do Arquipélago, o novo centro de arte contemporânea nos Açores, da autoria de João Mendes Ribeiro. Estarei a ver mal ou está ali um “buraco” (o lanço de escadas que conduz ao piso inferior) à espera de engolir pessoas, uma armadilha que produzirá pernas, braços ou cabeças partidas (se não pior)? Os visitantes irão circular nesta sala. Visitantes de várias idades e estaturas, de diferentes capacidades, mais ou menos distraídos. Os visitantes estarão a conversar com os seus acompanhantes, estarão a olhar para as obras expostas e não para o chão. Não é isto que acontece em salas de exposições?

No ano passado, a Acesso Cultura organizou uma conferência intitulada "Arquitectura: a abrir ou a fechar portas?". Após a conferência, a Direcção da associação recebeu o email de um estudante de arquitectura que dizia:

“É preciso mudar as mentalidades para a não-rejeição da acessibilidade em projecto. É que não se trata do não conhecimento dessas necessidades. Toda a gente sabe que existem tais necessidades. Tem a ver com uma preguiça de pensar criativamente com este aspecto incluído (muitas vezes olhado como uma limitação, uma castração da criatividade). E, consequentemente, nota-se que tanto os professores como os alunos ignoram muito estas questões mais práticas e, de certo modo, sociais. Teoricamente, a arquitectura é um equilíbrio entre a função (útil, prática, social), a construção (técnica) e a simbologia (que inclui a forma e a estética) de um espaço. Na formação que tenho, sinto que não há este equilíbrio. 70% da exigência é relativa a simbologia, 15% relativa à técnica e 15% relativa à funcionalidade. Claro que não posso generalizar toda a faculdade com base na minha vivência lá. No entanto, não deixa de ser uma realidade que me assusta. Ter tantos futuros colegas completamente indiferentes a um direito humano básico.”

Novas gerações de arquitectos que entram no mercado de trabalho sem terem desenvolvido, na faculdade, alguma sensibilidade em relação à funcionalidade dos edifícios que vão projectar e ao facto de que estes serão usados ​​por pessoas. Mas também em relação aos requisitos definidos por lei. E o que eles observam na prática, nos edifícios projectados por arquitectos famosos e premiados, é a mesma falta de consideração em relação às pessoas que utilizam esses espaços. Não vou dizer ignorância, qualquer arquitecto tem a obrigação de conhecer a lei. No entanto, mesmo conhecendo-a, avança porque tem muitos "mas" escondidos na manga.

Na verdade, as pessoas utilizam os espaços projectados, é por isso que eles foram criados. Usam-nos como funcionários ou como visitantes e espectadores. Essas pessoas têm todas a mesma medida? Têm as mesmas capacidades? Movem-se da mesma maneira? Têm as mesmas necessidades? De uma visita que fiz há 3 anos ao novo Museu dos Coches (na altura ainda em construção), lembro-me que as portas dos gabinetes tinham cerca de 70 centímetros de largura e que não havia casa de banho para pessoas com deficiência na área privada. Devemos pensar que a equipa deste museu nunca incluirá um funcionário em cadeira de rodas?

No entanto, outra questão que aqui se coloca é a da responsabilidade do "cliente", ou seja, dos responsáveis ​​pelos museus e teatros em questão. Sabemos que, muitas vezes, com a experiência que eles têm sobre o uso dos espaços, levantam uma série de questões, mas, curiosamente, não são ouvidos. Pensamos, no entanto, que estes são requisitos que devem ser incluídos no caderno de encargos, em vez de se tentar emendá-los posteriormente, e não apenas com uma referência genérica às "boas práticas". Ambas as partes devem ter conhecimento detalhado do que são estas "boas práticas", bem como dos requisitos estabelecidos por lei. Cabe depois ao arquitecto dar asas à sua criatividade, tendo desde o início tomado em consideração estas premissas. Os arquitectos que mais se preocupam com estas questões dizem que essas premissas acabam sempre por tornar o processo criativo mais rico, sem obrigar a compromissos no que diz respeito à estética. Faz sentido.

Finalmente, há aqui um terceiro elemento, muitas vezes passivo ou silencioso: os próprios utilizadores. Estes tendem a culpar-se a si mesmos ("estava distraído") ou aprenderam a considerar normal que os espaços públicos não estejam preparados para os receber, nem sequer respeitam a lei. Não é normal... É importante que essa voz seja mais ouvida.

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