Museu dos Coches, Lisboa (imagem retirada de Boas Notícias) |
No mês passado, foi noticiado por vários jornais que nos quatro primeiros meses do novo Museu dos Coches houve uma série de acidentes devido a deficiências no projecto arquitectónico. ‘Deficiências' no sentido de terem sido adoptadas soluções (ou, se preferem, de terem sido criados elementos arquitectónicos) que se tornam armadilhas para os utilizadores do espaço (sim, eles existem).
Curiosamente (mas, mesmo assim, não
surpreendentemente), três ou quatro dias depois foi também noticiado que este mesmo projecto
arquitectónico, o novo Museu dos Coches, da autoria de Paulo Mendes da Rocha,
recebeu o Prémio do Comité Internacional de Críticos de Arquitectura (CICA).
Ricardo Bak Gordon, o arquitecto português que acompanhou o projecto, reagiu à
atribuição da distinção afirmando que este será o primeiro de vários prémios
internacionais que o museu receberá. "Ver a crítica reconhecer o projecto é muito importante. E ver
um museu que foi inaugurado há tão pouco tempo e que não está ainda acabado
recebê-lo faz-me pensar que os Coches só agora começaram a sua carreira
internacional."
Fiquei perplexa em relação aos critérios que a
crítica profissional usa para avaliar e premiar projectos de arquitectura. Será
que a funcionalidade pesa tanto quanto a estética? A arquitectura não é esse
equilíbrio? Ou devemos vê-la como como algo que existe para ser visto, mas não
para ser usado por pessoas? Neste contexto, parece irónico que a primeira afirmação
do jornalista que fez uma entrevista a Paulo Mendes da Rocha para a Gazeta do Povo tenha sido esta:
"Sua principal característica é o respeito para com as pessoas
que vão fazer uso do projecto e os habitantes da cidade. O próprio júri do
Pritzker de 2006 reforçou essa sua consciência." Isto não será
mais do que uma teoria bonita?
Arquipélago, Açores (imagem retirada do Diário Imobiliário) |
A minha perplexidade em relação a estas
questões intensificou-se quando, recentemente, vi uma imagem do interior do Arquipélago,
o novo centro de arte contemporânea nos Açores, da autoria de João Mendes
Ribeiro. Estarei a ver mal ou está ali um “buraco” (o lanço de escadas que
conduz ao piso inferior) à espera de engolir pessoas, uma armadilha que
produzirá pernas, braços ou cabeças partidas (se não pior)? Os visitantes irão
circular nesta sala. Visitantes de várias idades e estaturas, de diferentes
capacidades, mais ou menos distraídos. Os visitantes estarão a conversar com os
seus acompanhantes, estarão a olhar para as obras expostas e não para o chão.
Não é isto que acontece em salas de exposições?
No ano passado, a Acesso Cultura organizou uma
conferência intitulada "Arquitectura: a abrir ou a fechar portas?".
Após a conferência, a Direcção da associação recebeu o email de um estudante de
arquitectura que dizia:
“É preciso mudar as
mentalidades para a não-rejeição da acessibilidade em projecto. É que não se
trata do não conhecimento dessas necessidades. Toda a gente sabe que existem
tais necessidades. Tem a ver com uma preguiça de pensar
criativamente com este aspecto incluído (muitas vezes olhado como uma
limitação, uma castração da criatividade). E, consequentemente, nota-se que
tanto os professores como os alunos ignoram muito estas questões mais práticas
e, de certo modo, sociais. Teoricamente, a arquitectura é um equilíbrio entre a
função (útil, prática, social), a construção (técnica) e a simbologia (que
inclui a forma e a estética) de um espaço. Na formação que tenho, sinto que não
há este equilíbrio. 70% da exigência é relativa a simbologia, 15% relativa à
técnica e 15% relativa à funcionalidade. Claro que não posso generalizar toda a
faculdade com base na minha vivência lá. No entanto, não deixa de ser uma
realidade que me assusta. Ter tantos futuros colegas completamente indiferentes
a um direito humano básico.”
Novas gerações de arquitectos que entram no
mercado de trabalho sem terem desenvolvido, na faculdade, alguma sensibilidade em
relação à funcionalidade dos edifícios que vão projectar e ao facto de que estes
serão usados por pessoas. Mas também em relação aos requisitos definidos por
lei. E o que eles observam na prática, nos edifícios projectados por arquitectos
famosos e premiados, é a mesma falta de consideração em relação às pessoas que
utilizam esses espaços. Não vou dizer ignorância, qualquer arquitecto tem a
obrigação de conhecer a lei. No entanto, mesmo conhecendo-a, avança porque tem
muitos "mas" escondidos na manga.
Na verdade, as pessoas utilizam os espaços
projectados, é por isso que eles foram criados. Usam-nos como funcionários ou
como visitantes e espectadores. Essas pessoas têm todas a mesma medida? Têm as
mesmas capacidades? Movem-se da mesma maneira? Têm as mesmas necessidades? De
uma visita que fiz há 3 anos ao novo Museu dos Coches (na altura ainda em
construção), lembro-me que as portas dos gabinetes tinham cerca de 70
centímetros de largura e que não havia casa de banho para pessoas com
deficiência na área privada. Devemos pensar que a equipa deste museu nunca
incluirá um funcionário em cadeira de rodas?
No entanto, outra questão que aqui se coloca é
a da responsabilidade do "cliente", ou seja, dos responsáveis pelos
museus e teatros em questão. Sabemos que, muitas vezes, com a experiência que
eles têm sobre o uso dos espaços, levantam uma série de questões, mas,
curiosamente, não são ouvidos. Pensamos, no entanto, que estes são requisitos
que devem ser incluídos no caderno de encargos, em vez de se tentar emendá-los
posteriormente, e não apenas com uma referência genérica às "boas
práticas". Ambas as partes devem ter conhecimento detalhado do que são estas
"boas práticas", bem como dos requisitos estabelecidos por lei. Cabe depois
ao arquitecto dar asas à sua criatividade, tendo desde o início tomado em consideração
estas premissas. Os arquitectos que mais se preocupam com estas questões dizem que
essas premissas acabam sempre por tornar o processo criativo mais rico, sem obrigar
a compromissos no que diz respeito à estética. Faz sentido.
Finalmente, há aqui um terceiro elemento,
muitas vezes passivo ou silencioso: os próprios utilizadores. Estes tendem a
culpar-se a si mesmos ("estava distraído") ou aprenderam a considerar
normal que os espaços públicos não estejam preparados para os receber, nem
sequer respeitam a lei. Não é normal... É importante que essa voz seja mais
ouvida.
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