O intenso debate público em torno da criação de um “museu
das descobertas” abrandou nos últimos meses. No entanto, marcou de forma
significativa e, parece-me, irreversível a discussão em relação ao papel dos
museus na sociedade portuguesa, às formas como se pode e deve olhar para o
passado, às razões porque esse passado é preservado e estudado.
Ao longo deste debate, o argumento e a acusação de “revisionismo histórico” ou de “querer julgar o passado com base em padrões morais do presente” ouviram-se repetidamente. Num artigo escrito em Outubro passado, António Barreto afirmava: “Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda.” Esta não é só uma má interpretação do que parte da sociedade hoje exige (e, curiosamente, as fontes das exigências criticadas raramente são citadas), mas um argumento que sempre me pareceu absurdo. Além disso, as afirmações de quem defende que não se deve sentir culpa por algo que aconteceu há cem ou mil anos soaram-me inconsistentes, porque essas mesmas pessoas afirmam repetidamente o seu orgulho por coisas que igualmente aconteceram há cem ou mil anos (ler aqui ou aqui ou aqui ).
Várias vezes, estes argumentos fizeram-me questionar se,
realmente, os nossos antepassados (todos eles) terão visto e aceite com
naturalidade o que hoje é visto como barbárie, quer se trate do comércio de
escravos há 500 anos ou dos alegados actos de assédio sexual cometidos por
Plácido Domingo há quarenta anos ou menos. As afirmações de Domingo que
“as regras e os padrões pelos quais somos - e devemos ser – julgados hoje são
muito diferentes do que eram no passado” não me soam tão diferentes das
daqueles que defendem que a escravatura não era vista como desumana ou imoral
no século 16.
“Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910”, Museu de Lisboa - Palácio Pimenta |
Ontem, encontrei uma possível resposta ao meu
questionamento nas paredes de uma exposição do Museu de Lisboa - Palácio Pimenta:
“Nós fomos os inventores de tão mau trato, nunca usado nem
ouvido entre humanos. Não se achara nem razão humana consente, que jamais
houvesse no mundo trato público e livre de comprar e vender homens livres e
pacíficos, como quem compra e vende alimarias, bois ou cavalos e semelhantes.”
Este é um excerto da obra “Arte da Guerra do Mar”, escrita
em 1555 pelo Padre Fernando Oliveira, inserido na exposição “Convivência(s).
Lisboa Plural. 1147-1910” (comissariada por Paulo Almeida Fernandes
e Ana Paula Antunes, aberta até dia 22 de Dezembro e, curiosamente, pouco ou
nada falada no meu meio). Na mesma exposição, temos a possibilidade de ver o
vídeo “O
Atlântico dos Outros: escravatura negra no império português” (um
projecto da Fundação Calouste Gulbenkian), que inclui um excerto da obra
“Crónica da Guiné” de Gomes Eanes de Zurara, concluída em 1453:
“Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910”, Museu de Lisboa - Palácio Pimenta |
“apartando-se (...); os filhos dos padres, e as mulheres
dos maridos, e os irmãos uns dos outros (...) as madres apertavam os outros
filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com
pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados!”
Afinal, houve quem nos séculos 15 ou 16 tivesse considerado
estas práticas desumanas. O seu olhar sobre o que estava a acontecer não terá
sido tão diferente do de hoje. E, ao longo deste tempo todo, as vítimas nunca
consideraram aquilo pelo que estavam a passar “natural”. No entanto, as suas
revoltas e insurreições são raramente faladas entre nós (foi apenas em 2011 que
ouvi falar pela primeira vez de Toussaint Louverture no National
Museum of African Art, Washington DC; e apenas em Março deste ano li
pela primeira vez sobre os Maroons de Jamaica, no Wilberforce
House Museum, Hull).
Eis agora, e finalmente, que um museu português, um museu
de cidade, o Museu de Lisboa, propõe-nos reflectir sobre o papel que
“estrangeiros e minorias religiosas tiveram na construção da imagem da cidade” e
sobre “uma cidade que se fez de rejeição, de segregação e de expulsão, mas
também de tolerância, de miscigenação e de integração.” A exposição partilha
conhecimento e traz um questionamento necessário sobre temas que ocupam o
espaço público e preocupam a opinião pública, mas que os museus portugueses em
geral evitam. Fá-lo de forma consciente, com sentido de responsabilidade e,
parece-me, com coragem.
Concentrando-me concretamente na parte “Lisboa dos
Africanos”, a escravatura, as condições de trabalho e de vida, os preconceitos
não são temas a evitar aqui. Pelo contrário, os objectos (vindos da colecção do
museu e de outros museus) não são apenas descritos, como normalmente acontece,
mas servem para contar uma história (a História), sem eufemismos. Da mesma
forma e neste contexto, também não se evita falar de pessoas vindas de África
que, ao contrário daquelas escravizadas, foram ricas e tiveram um outro
estatuto social (o caso da Dona Simoa Godinha, cujo testamento, pertencente ao
arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, encontra-se aqui exposto). Ao
mesmo tempo, quando não é possível expor objectos e obras muito relevantes para
se contar esta história, o Museu de Lisboa expõe fotografias dos mesmos (como,
por exemplo, do quadro “Rua Nova dos Mercadores”, que foi apresentado “sem
comentários” em 2017 na exposição “A
cidade global” no Museu Nacional de Arte Antiga).
“Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910”, Museu de Lisboa - Palácio Pimenta. |
O que parte da sociedade pretende hoje não é a
“auto-flagelação”, mas sim, uma discussão mais completa, honesta e corajosa também
sobre os aspectos negativos do passado que nos orgulha, que inclua as vozes de
quem, mesmo falando, foi largamente ignorado. A História é sempre contada a
partir de um ponto de vista. No entanto, não se trata de um livro sagrado e
intocável, porque a investigação não pára, não se congela, e os pontos de vista
são múltiplos e não homogéneos. Não se trata de “inventar um passado
democrático” (no entendimento do director do Museu de Arte Antiga), mas de reconhecer que esse passado não foi
democrático e não foi respeituoso para todos os seres humanos, um facto que
afecta ainda hoje a vida de milhares de cidadãos neste país e as nossas
relações na vida em sociedade. Talvez esta seja a parte que faz falta na
exposição “Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910”: o reflexo e consequências
da história contada nas nossas relações sociais hoje em Lisboa (e no país) –
tal como acontece no Wilberforce House Museum em Hull. O museu pode não dispor
de objectos na sua colecção para falar desta parte, mas há cidadãos que
poderiam emprestá-los, para além de disponibilizarem o seu testemunho (os
vídeos “Lugares de Memória” – aqui e
aqui –,
produzidos pela Culturgest no âmbito do ciclo Memórias Coloniais,
teriam sido um bom complemento). Talvez este possa ser o próximo passo, muito
necessário.
Wilberforce House Museum, Hull |
Mais leituras
António Barreto, Três
museus, Público (1.9.2019)
Lucinda Canelas, Os
museus devem promover a igualdade ou a sua missão primordial (ainda) é outra?,
Público (1.9.2019)
Maria Vlachou, Para
que servem os museus?, Público (21.9.2019)
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