Patrice Jackson a actuar em 2002 (Foto: Andrew Sacks para o The New York Times) |
O meu primeiro post sobre música clássica, escrito em 2012, intitulava-se "Qual o problema com a música clássica? Aparentemente, nenhum... ”. Sete anos depois, ainda acredito que não há problema nenhum com o género em si, mas há vários problemas com o modo como está a ser gerido.
Há poucos dias, soube através de um artigo
no New York Times que as mulheres não eram "admitidas" na Vienna
Philharmonic até 1997. Ainda hoje, apenas 15 de seus 145 membros permanentes
são mulheres. E elas representam no máximo 30% das orquestras clássicas da
Europa continental.
Nas décadas de 1970 e 1980, algumas orquestras começaram a
implementar “audições cegas” para evitar preconceitos relacionados com o género.
Os candidatos colocavam-se atrás de uma tela perante um júri que não os via. De
acordo com o The Guardian, “os investigadores determinaram que somente essa
etapa aumenta em 50% a probabilidade de uma mulher avançar para a final. E a
tela também demonstrou ser a fonte de um aumento no número de mulheres que vêm
ocupar vagas.” Ainda assim, alguns detalhes neste processo dão-nos uma visão mais
completa do que está aqui em jogo: as mulheres são instruídas a remover o seu
calçado (mais especificamente, sapatos com salto alto) antes de subirem ao
palco, pois o seu som influencia alguns membros do júri...
Marin Alsop (a nova maestrina da Vienna Radio Symphony Orchestra)
foi citada no artigo do New York Times acima mencionado, dizendo que “a música
clássica é um microcosmo minúsuclo da nossa sociedade em geral e é um
microcosmo muito conservador: vestimos a mesma roupa que temos usado há 200
anos."
A falta de diversidade não é exclusiva do campo da música
clássica, mas a resistência à mudança parece ser mais forte. Cada vez mais
profissionais, no entanto, anseiam para ver este sector seguir em frente.
Chi-chi Nwanoku, contrabaixista e fundadora da Chineke! Foundation, reconheceu que
“imprecisões históricas, contribuições não reconhecidas e jóias perdidas há
muito tempo estão a ser restauradas e restabelecidas (…) Da arte à ciência e
além, o trabalho de grupos historicamente marginalizados está a ser
gloriosamente partilhado. Excepto na música clássica. E para complicar, os
erros do passado estão a ser repetidos hoje.” Nwanoku fundou a Chineke! em
2015, a primeira orquestra europeia composta maioritariamente por músicos BME
[Black/Minority Ethnic], convencida que algo deveria ser feito “após 35 anos de
actuação na plataforma internacional de concertos e tendo-me acostumado a ser a
única pessoa negra no palco". Nwanoku criticou fortemente os BBC Proms
deste ano, que incluiram o trabalho de apenas 29 compositoras (num total de
160), e onde, entre as 13 novas encomendas da BBC, apenas uma foi de uma
compositora negra e outra de um compositor negro.
Também nos EUA, país onde os músicos afro-americanos
representavam apenas 1,8% dos músicos de orquestra em 2014, três organizações
nacionais - Sphinx
Organization, New World Symphony e League of American Orchestras - uniram
esforços no ano passado para ajudar mais músicos afro-americanos e
hispánicos a considerar uma carreira nesta área: “Estão a treinar músicos para
audições, arranjam-lhes mentores, mostram o seu trabalho em concertos e
dão-lhes subsídios para viajar para audições.” A urgência em considerar estes
desequilíbrios tornou-se ainda mais óbvia quando o maestro Brandon Keith Brown discutiu
abertamente os seus pontos de vista sobre os preconceitos implícitos no
campo da música clássica, onde nunca houve um maestro negro numa das dez
melhores orquestras dos EUA; os concertos dos maestros negros ficam excluídos das
assinaturas; os músicos podem trabalhar uma vida inteira sem terem uma
experiência com um maestro negro. Brown também relatou um comportamento
inapropriado e desrespeitoso da parte de alguns músicos (por exemplo, não tocar
quando lhes é dada a deixa ou de todo; ripostar/discutir/dizer asneiras;
recusar serem corrigidos; trocar partes do concerto para causar confusão; não
aparecer nos ensaios a tempo ou de todo). Brown e Nwanoku consideram que este é
o resultado de um campo dominado por homens brancos, tanto no nível de
administração como entre os músicos. Não é um segredo que ambientes com falta
de diversidade são propensos a (e até determinados em) manter monoculturas.
Brandon Keith Brown (Foto: Deyan Baric) |
Passando para outras "tradições" no sector, uma
que parece manter-se forte é o uso de blackface. Enquanto a estrela da
ópera Anna Netrebko o defendeu na sua interpretação de “Aida”, de Verdi, em Março
passado em São Petersburgo (“Rosto Negro e Corpo Negro para a princesa etíope,
para a maior ópera de Verdi! SIM!”, Netrebko escreveu na sua conta no Instagram
respondendo às criticas), a soprano Tamara Wilson recusou-se
a fazer o mesmo em Verona. Alguns excertos de sua entrevista:
"A música clássica e a ópera estão imersas
na tradição há muito tempo. O público ainda quer ser transportado e sentir a
ligação com a música que toca a sua alma, mas às vezes a nossa indústria apega-se
excessivamente a essas tradições. Muitas pessoas na nossa indústria e entre o
público vêem a intenção original do compositor e libretista como primordial, o
que não deixa espaço para alterações ou interpretações modernas, mas há outras
pessoas, inclusive eu, que acreditam que a nossa forma artística deve reflectir
os tempos em que vivemos. (...) Os cantores de ópera viajam hoje pelo mundo e
conhecem pessoas de todas as origens, com opiniões próprias sobre a forma como
são e devem ser representadas em palco. É mais difícil argumentar que devemos
manter tradições históricas da ópera quando as pessoas retratadas que se
encontram na plateia podem ter opiniões diferentes (…) Acho importante ter
produções tradicionais e retratar a história da própria ópera, mas também
acredito que precisamos ter produções inovadoras para lançar esta forma artística
no novo século."
Apreciei particularmente o posicionamento de Wilson. Ela
não ignora o passado e o seu contexto, mas também não ignora os contextos actuais
em que o seu sector opera. Não opta por ignorar um lado em nome da tradição. A
arrogância acaba por levar à irrelevância; a ignorância também. O mundo da
música clássica (e especialmente a ópera, a forma artística frequentemente considerada
"moribunda” e que recebe mais financiamento público do que qualquer outra,
desde a rica Noruega ao pobre Portugal) pode pagar este preço?
Fundação Calouste Gulbenkian |
Deixei para o fim a relação “tradicional” da música
clássica com o seu público, que tenho abordado em várias ocasiões neste blog
(links no final deste texto). Estamos perante uma tradição que faz com que a
Fundação Calouste Gublenkian acredite que não há problema em instruir as
pessoas a não tossir durante os concertos (sugerindo que a tosse demonstra
falta de respeito e apresentando um conjunto de dicas para a evitar!); ou que
faz com que La
Scala acredite que não há problema em mandar as pessoas embora
quando aparecem em dias quentes de verão em calções, T-shirts sem mangas ou
chinelos (outra demonstração de falta de respeito? Para quem?); ou que faz com
que seja correcto repreender, humilhar e assustar qualquer membro do público
que, sentindo-se entusiasmado, bata palmas entre andamentos (uma regra
inventada no século 20 que ajuda a separar aqueles que têm o direito de estar
na sala dos intrusos).
Algumas organizações culturais ficam presas e parecem
importar-se apenas com o seu público tradicional. O que vejo nesses processos é
arrogância e a intenção de excluir para se sentir exclusivo. Existe uma maneira
“certa" de ouvir música clássica? Sem dúvida, algumas pessoas dirão que
"sim". Tudo bem, têm o direito de apreciar as coisas da maneira que
preferirem. Elas podem, no entanto, impor as suas opções aos outros? E as
organizações culturais devem apoiar esta atitude de imposição e não criar
espaço para outros?
Existem organizações culturais que fazem grandes esforços
para transmitir que as pessoas podem vestir-se como quiserem, que são
bem-vindas de qualquer forma (em 2012, a English National Opoera fez uma
campanha chamada “ENO
says undress”). Mais recentemente, o Opera Theater of Saint Louis (EUA)
ouviu uma senhora num focus group dizer que não ia aos concertos porque
não tinha um vestido de baile... Apoiado pela Wallace Foundation, o Opera
Theatre procurou identificar
os motivos porque muitas pessoas não comparecem. Para
além da senhora que pensa que é preciso um vestido de baile para assistir, temos
também as pessoas que acham que as óperas são todas em italiano ou francês ou noutra
língua que não dominam (“A ópera não era apenas para os mais instruídos - era
para os excessivamente educados”) ou aquela que o Opera Theater considera uma
das descobertas mais encorajadoras, ou seja, que o público jovem quer ver um
elenco mais diverso em palco (“E esse pedido não veio apenas de jovens de cor,
mas de todos”). Joe Gfeller, ex-director de marketing e comunicação, disse que
"essencialmente, comunicar o que o Opera Theatre é neste espaço não
significa dizer 'seja bem-vindo aqui'. Trata-se de dizer ‘Nós valorizamo-o/a. Conversas,
questões, coisas com as quais se importa, também são coisas com as quais nos
importamos.’”
Aubrey Bergauer foi até muito recentemente a Directora Executiva da California Symphony e liderou a equipa responsável pelas significativas mudanças na orquestra. (Foto retirada de Southwestmag) |
Faz sentido. Construir este novo relacionamento não
significa afirmar “Quero que sejamos amigos”, mas questionar “O que é
necessário para nos tornarmos amigos? Porque é que não éramos amigos até agora?”.
É preciso muito mais do que dizer "Estamos abertos a todos"; é
preciso uma introspecção honesta e profunda que possa levar à mudança tão
necessária. O Opera Theater of Saint Louis seguiu esse caminho, questionando o
que faz, como o faz e para quem; testando e avaliando novas maneiras de
construir novos relacionamentos. Outras organizações - como a California Symphony,
a Orchestra of the Age of the Enlightenment ou a Classical Revolution - também passaram por essa
introspecção e procuraram outras maneiras de se envolver e ser relevantes para
outras pessoas.
No seu livro "The Art of Relevance", Nina Simon
define a relevância como "uma chave que desbloqueia o significado. Abre
portas para experiências que são importantes para nós, que nos surpreendem e que
acrescentam valor às nossas vidas”. Não criamos significado apenas convidando
as pessoas, muito menos dizendo-lhes que só são bem-vindas se se vestirem de
uma certa maneira, se se comportarem de uma certa maneira, se desfrutarem das
coisas da mesma maneira que outras pessoas, com mais conhecimento. A arrogância
não alimenta relações, nem as políticas que oferecem suporte a práticas de
exclusão.
A escritora de música clássica Olivia Giovetti assinou
recentemente um artigo intitulado “To
save opera, we have to let it die”. E explicou: "Apelar
pela morte da ópera não significa pedir que o Met seja encerrado. Também não
significa o completo abandono de compositores como Mozart e Puccini. No entanto,
significa que não devemos mais romantizar as épocas passadas da chamada ‘era de
ouro’ da ópera ao ponto de não conseguirmos imaginar o futuro do género.”
Mais leituras
Alex Marshall (2019), Blackface at the ballet highlights a global divide on race
Charlotte Smith (2012), Orchestra of the Age of the Enlightenment presents “The Night Shift”
Chloe Veltman (2011), Classical music moves from concert halls to cafés
Laura Fraser (2019), Shake up the symphony
Sophie de Merteuil (2017), Opera’s race problem
Mais sobre música clássica neste blog
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