Thursday 26 December 2019

Resistência: à mudança, mas também à tradição

Patrice Jackson a actuar em 2002 (Foto: Andrew Sacks para o The New York Times)

O meu primeiro post sobre música clássica, escrito em 2012, intitulava-se "Qual o problema com a música clássica? Aparentemente, nenhum... ”. Sete anos depois, ainda acredito que não há problema nenhum com o género em si, mas há vários problemas com o modo como está a ser gerido.

Há poucos dias, soube através de um artigo no New York Times que as mulheres não eram "admitidas" na Vienna Philharmonic até 1997. Ainda hoje, apenas 15 de seus 145 membros permanentes são mulheres. E elas representam no máximo 30% das orquestras clássicas da Europa continental.

Nas décadas de 1970 e 1980, algumas orquestras começaram a implementar “audições cegas” para evitar preconceitos relacionados com o género. Os candidatos colocavam-se atrás de uma tela perante um júri que não os via. De acordo com o The Guardian, “os investigadores determinaram que somente essa etapa aumenta em 50% a probabilidade de uma mulher avançar para a final. E a tela também demonstrou ser a fonte de um aumento no número de mulheres que vêm ocupar vagas.” Ainda assim, alguns detalhes neste processo dão-nos uma visão mais completa do que está aqui em jogo: as mulheres são instruídas a remover o seu calçado (mais especificamente, sapatos com salto alto) antes de subirem ao palco, pois o seu som influencia alguns membros do júri...

Marin Alsop (a nova maestrina da Vienna Radio Symphony Orchestra) foi citada no artigo do New York Times acima mencionado, dizendo que “a música clássica é um microcosmo minúsuclo da nossa sociedade em geral e é um microcosmo muito conservador: vestimos a mesma roupa que temos usado há 200 anos."

A falta de diversidade não é exclusiva do campo da música clássica, mas a resistência à mudança parece ser mais forte. Cada vez mais profissionais, no entanto, anseiam para ver este sector seguir em frente. Chi-chi Nwanoku, contrabaixista e fundadora da Chineke! Foundation, reconheceu que “imprecisões históricas, contribuições não reconhecidas e jóias perdidas há muito tempo estão a ser restauradas e restabelecidas (…) Da arte à ciência e além, o trabalho de grupos historicamente marginalizados está a ser gloriosamente partilhado. Excepto na música clássica. E para complicar, os erros do passado estão a ser repetidos hoje.” Nwanoku fundou a Chineke! em 2015, a primeira orquestra europeia composta maioritariamente por músicos BME [Black/Minority Ethnic], convencida que algo deveria ser feito “após 35 anos de actuação na plataforma internacional de concertos e tendo-me acostumado a ser a única pessoa negra no palco". Nwanoku criticou fortemente os BBC Proms deste ano, que incluiram o trabalho de apenas 29 compositoras (num total de 160), e onde, entre as 13 novas encomendas da BBC, apenas uma foi de uma compositora negra e outra de um compositor negro.

Também nos EUA, país onde os músicos afro-americanos representavam apenas 1,8% dos músicos de orquestra em 2014, três organizações nacionais - Sphinx Organization, New World Symphony e League of American Orchestras - uniram esforços no ano passado para ajudar mais músicos afro-americanos e hispánicos a considerar uma carreira nesta área: “Estão a treinar músicos para audições, arranjam-lhes mentores, mostram o seu trabalho em concertos e dão-lhes subsídios para viajar para audições.” A urgência em considerar estes desequilíbrios tornou-se ainda mais óbvia quando o maestro Brandon Keith Brown discutiu abertamente os seus pontos de vista sobre os preconceitos implícitos no campo da música clássica, onde nunca houve um maestro negro numa das dez melhores orquestras dos EUA; os concertos dos maestros negros ficam excluídos das assinaturas; os músicos podem trabalhar uma vida inteira sem terem uma experiência com um maestro negro. Brown também relatou um comportamento inapropriado e desrespeitoso da parte de alguns músicos (por exemplo, não tocar quando lhes é dada a deixa ou de todo; ripostar/discutir/dizer asneiras; recusar serem corrigidos; trocar partes do concerto para causar confusão; não aparecer nos ensaios a tempo ou de todo). Brown e Nwanoku consideram que este é o resultado de um campo dominado por homens brancos, tanto no nível de administração como entre os músicos. Não é um segredo que ambientes com falta de diversidade são propensos a (e até determinados em) manter monoculturas.

Brandon Keith Brown (Foto: Deyan Baric)

Passando para outras "tradições" no sector, uma que parece manter-se forte é o uso de blackface. Enquanto a estrela da ópera Anna Netrebko o defendeu na sua interpretação de “Aida”, de Verdi, em Março passado em São Petersburgo (“Rosto Negro e Corpo Negro para a princesa etíope, para a maior ópera de Verdi! SIM!”, Netrebko escreveu na sua conta no Instagram respondendo às criticas), a soprano Tamara Wilson recusou-se a fazer o mesmo em Verona. Alguns excertos de sua entrevista:

"A música clássica e a ópera estão imersas na tradição há muito tempo. O público ainda quer ser transportado e sentir a ligação com a música que toca a sua alma, mas às vezes a nossa indústria apega-se excessivamente a essas tradições. Muitas pessoas na nossa indústria e entre o público vêem a intenção original do compositor e libretista como primordial, o que não deixa espaço para alterações ou interpretações modernas, mas há outras pessoas, inclusive eu, que acreditam que a nossa forma artística deve reflectir os tempos em que vivemos. (...) Os cantores de ópera viajam hoje pelo mundo e conhecem pessoas de todas as origens, com opiniões próprias sobre a forma como são e devem ser representadas em palco. É mais difícil argumentar que devemos manter tradições históricas da ópera quando as pessoas retratadas que se encontram na plateia podem ter opiniões diferentes (…) Acho importante ter produções tradicionais e retratar a história da própria ópera, mas também acredito que precisamos ter produções inovadoras para lançar esta forma artística no novo século."

Apreciei particularmente o posicionamento de Wilson. Ela não ignora o passado e o seu contexto, mas também não ignora os contextos actuais em que o seu sector opera. Não opta por ignorar um lado em nome da tradição. A arrogância acaba por levar à irrelevância; a ignorância também. O mundo da música clássica (e especialmente a ópera, a forma artística frequentemente considerada "moribunda” e que recebe mais financiamento público do que qualquer outra, desde a rica Noruega ao pobre Portugal) pode pagar este preço?

Fundação Calouste Gulbenkian

Deixei para o fim a relação “tradicional” da música clássica com o seu público, que tenho abordado em várias ocasiões neste blog (links no final deste texto). Estamos perante uma tradição que faz com que a Fundação Calouste Gublenkian acredite que não há problema em instruir as pessoas a não tossir durante os concertos (sugerindo que a tosse demonstra falta de respeito e apresentando um conjunto de dicas para a evitar!); ou que faz com que La Scala acredite que não há problema em mandar as pessoas embora quando aparecem em dias quentes de verão em calções, T-shirts sem mangas ou chinelos (outra demonstração de falta de respeito? Para quem?); ou que faz com que seja correcto repreender, humilhar e assustar qualquer membro do público que, sentindo-se entusiasmado, bata palmas entre andamentos (uma regra inventada no século 20 que ajuda a separar aqueles que têm o direito de estar na sala dos intrusos).

Algumas organizações culturais ficam presas e parecem importar-se apenas com o seu público tradicional. O que vejo nesses processos é arrogância e a intenção de excluir para se sentir exclusivo. Existe uma maneira “certa" de ouvir música clássica? Sem dúvida, algumas pessoas dirão que "sim". Tudo bem, têm o direito de apreciar as coisas da maneira que preferirem. Elas podem, no entanto, impor as suas opções aos outros? E as organizações culturais devem apoiar esta atitude de imposição e não criar espaço para outros?

Existem organizações culturais que fazem grandes esforços para transmitir que as pessoas podem vestir-se como quiserem, que são bem-vindas de qualquer forma (em 2012, a English National Opoera fez uma campanha chamada ENO says undress). Mais recentemente, o Opera Theater of Saint Louis (EUA) ouviu uma senhora num focus group dizer que não ia aos concertos porque não tinha um vestido de baile... Apoiado pela Wallace Foundation, o Opera Theatre procurou identificar os motivos porque muitas pessoas não comparecem. Para além da senhora que pensa que é preciso um vestido de baile para assistir, temos também as pessoas que acham que as óperas são todas em italiano ou francês ou noutra língua que não dominam (“A ópera não era apenas para os mais instruídos - era para os excessivamente educados”) ou aquela que o Opera Theater considera uma das descobertas mais encorajadoras, ou seja, que o público jovem quer ver um elenco mais diverso em palco (“E esse pedido não veio apenas de jovens de cor, mas de todos”). Joe Gfeller, ex-director de marketing e comunicação, disse que "essencialmente, comunicar o que o Opera Theatre é neste espaço não significa dizer 'seja bem-vindo aqui'. Trata-se de dizer ‘Nós valorizamo-o/a. Conversas, questões, coisas com as quais se importa, também são coisas com as quais nos importamos.’”

Aubrey Bergauer foi até muito recentemente a Directora Executiva da California Symphony e liderou a equipa responsável pelas significativas mudanças na orquestra. (Foto retirada de Southwestmag)

Faz sentido. Construir este novo relacionamento não significa afirmar “Quero que sejamos amigos”, mas questionar “O que é necessário para nos tornarmos amigos? Porque é que não éramos amigos até agora?”. É preciso muito mais do que dizer "Estamos abertos a todos"; é preciso uma introspecção honesta e profunda que possa levar à mudança tão necessária. O Opera Theater of Saint Louis seguiu esse caminho, questionando o que faz, como o faz e para quem; testando e avaliando novas maneiras de construir novos relacionamentos. Outras organizações - como a California Symphony, a Orchestra of the Age of the Enlightenment ou a Classical Revolution - também passaram por essa introspecção e procuraram outras maneiras de se envolver e ser relevantes para outras pessoas.

No seu livro "The Art of Relevance", Nina Simon define a relevância como "uma chave que desbloqueia o significado. Abre portas para experiências que são importantes para nós, que nos surpreendem e que acrescentam valor às nossas vidas”. Não criamos significado apenas convidando as pessoas, muito menos dizendo-lhes que só são bem-vindas se se vestirem de uma certa maneira, se se comportarem de uma certa maneira, se desfrutarem das coisas da mesma maneira que outras pessoas, com mais conhecimento. A arrogância não alimenta relações, nem as políticas que oferecem suporte a práticas de exclusão.

A escritora de música clássica Olivia Giovetti assinou recentemente um artigo intitulado To save opera, we have to let it die”. E explicou: "Apelar pela morte da ópera não significa pedir que o Met seja encerrado. Também não significa o completo abandono de compositores como Mozart e Puccini. No entanto, significa que não devemos mais romantizar as épocas passadas da chamada ‘era de ouro’ da ópera ao ponto de não conseguirmos imaginar o futuro do género.”


Mais leituras

Laura Fraser (2019),
Shake up the symphony

Sophie de Merteuil (2017),
Opera’s race problem


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