“Hoje o nosso tempo requer leveza, humor, encantamento e
poesia. Não é mais a luta do bem contra o mal, representada por Guerra nas
Estrelas, mas a utopia da vida bela. Descobrir o instante de beleza que a
poesia nos dá, a inspiração que nos lembra que estamos na vida não só para
trabalhar, lutar, brigar, mas também para amar, sorrir, dançar, abraçar, sonhar.
Vivemos um tempo em que o mais revolucionário é ser poeta.”
Quando recebi o livro Imaginação: Reinventando a Cultura,
de Marta Porto, deixei o que estava a fazer. Mergulhei nele e cada palavra, cada
ideia, trazia-me a Marta que conheço e admiro e o prazer enorme, intelectual e físico, de cada encontro com ela. Especialmente, as palavras que abrem este texto e
que reúnem o seu espírito crítico, a sua inteligência e o seu profundo
humanismo.
Li o livro “num instante”, com verdadeira sede. Fui sublinhando palavras, passagens inteiras, e voltei a ele em vários momentos, à procura de conforto e de motivação. Volto agora a ele para o partilhar com outros.
Li o livro “num instante”, com verdadeira sede. Fui sublinhando palavras, passagens inteiras, e voltei a ele em vários momentos, à procura de conforto e de motivação. Volto agora a ele para o partilhar com outros.
Dividido em três actos, o primeiro traz-nos pílulas de
inspiração, a reflexão da Marta “Sobre artes e artistas”. O texto “Sobre
arte e fronteira: carta com Amós Oz” foi apresentado no ano passado aqui em
Lisboa, na Livraria Tigre de Papel, no âmbito do Festival da Palavra. Marta cita aqui o russo Ilya Progogine, Prémio Nobel da Química, que quando associa
arte/criatividade com os fenómenos irreversíveis que ocorrem na natureza diz que
“O universo em torno de nós é apenas um exemplo de universo possível.” É essa
variável que as artes trazem para o mundo real, diz a Marta. “A ideia de que a
realidade é uma entre várias possíveis. E que as diferenças nos alimentam,
ampliam probabilidades e possibilidades de vida e não as restringem.” (pág.23).
A imaginação e a poesia, o seu poder, são elementos centrais
na forma como a Marta pensa a cultura e o mundo. Na pág. 52, propõe-nos “um
retorno a um ideal aristotélico de ‘poética’, o lugar onde se valoriza a
potência da imaginação humana para criar mundos e realidades diferentes das que
um determinado tempo-espaço nos brinda.”
Vivendo nós hoje um momento em que o mundo parece andar
para trás, muitas vezes paralisados, dormentes, ou então perfeitamente
conscientes mas incapazes de reagir, Marta vai buscar inspiração em Italo
Calvino, que em Seis propostas para o próximo milênio diz que “são poetas
e artistas que lembram para a humanidade, a cada tempo e era vivida, que a imaginação,
a poesia e as artes são o principal antídoto contra o medo, a violência e a barbárie.”
Uma ideia cujo impacto encontramos novamente, de forma bastante concreta, no
terceiro acto do livro, “Atuar”.
Pelo meio, temos o segundo acto, o mais extenso, sobre “Política,
cultura e imaginário social”. Uma reflexão dedicada à urgência de repensar,
reinventar, a democracia, através também da reinvenção das políticas culturais.
“Quem faz arte e cultura”, lê-se na pág. 42, “é o povo, os artistas, mas quem
cria as condições para que ela seja democrática, se amplie e faça sentido para
o conjunto da sociedade é a política.”
Considerando a discussão mais intensa gerada nas últimas semanas
em Portugal, sobre temas, no entanto, permanentes
e persistentes, como o papel das políticas culturais (e a sua ausência), o
poder, o medo, o silêncio, a subserviência, Marta sugere, de forma muito
relevante também para nós, que “a cultura, ou melhor, as políticas que lhe dão
corpo, devem priorizar a construção de um imaginário social de entendimento,
crítica e luta por fazer valer os ideais democráticos. Estimular mentalidades
sensíveis e capazes de estruturar sociedades em que o cumprimento de direitos não
é ato de misericórdia, mas ato consciente que responde a um imperativo
democrático.” (pág.36).
A reinvenção da democracia passa, inevitavelmente, pela
reinvenção das políticas que formam culturas. Também é interessante ver aqui
como Marta consegue resumir em quatro linhas o que é isso de “formar culturas”:
“Quando os exemplos são exceções, podemos falar de falta ou de necessidade de
educação. Quando são a maioria, falamos de cultura social, de um imaginário de
como nos manifestamos, percebemos e agimos como corpo social.” (pág. 37)
Mas, afinal, o que podem as políticas culturais? O livro
apresenta-nos três ideias (pp.44-47):
1. A necessidade de o ecossistema cultural “elaborar e
desenvolver ações que garantissem que os valores essenciais à democracia
cultural constituem a existir e se sobreponham à necessidade de criar muros, de
destruir culturas e formas inteiras de existência, abandonando-as à indiferença,
à miséria e à ausência de oportunidades.”
2. A necessidade de reconhecer e entender os novos códigos
de aprendizagem que as novas tecnologias oferecem “para promover curiosidade e
abertura de outros conhecimentos que não estão disponíveis nas formas rápidas e
superficiais que as redes sociais oferecem.” Promover experimentações que possam
“estimular a alteridade cultural”, “praticar a experiência de estar na pele do
outro”.
3. A defesa da liberdade artística e dos artistas como
fundamento da gestão e das políticas culturais. Porque “Um mundo livre se constrói
sem medo do desconforto, do incômodo, por vezes do choque e do horror, que as
obras de arte sempre provocaram ao longo da historia.”
“Uma boa política cultural é aquela que entrelaça dois campos
da vida pública: o desenvolvimento estético e ético (valores) de uma sociedade”,
diz Marta (pág. 93). Valoriza e reforça o poder da experiência afirmando que “Experiência
é fato que se transforma em significado, que inspira e nos alegra, nos choca e
emociona. (...) É saber que um museu não é importante para um indivíduo ou uma
cidade só porque gera empregos ou atrai turistas. (...) mas porque ali, naquele
espaço, e naquele momento, é dado ao sujeito viver o inexplicável, a emoção, o
choque diante de uma experiência estética que o faz chorar, ou se alegrar, ou
se irritar e bravejar... que coloca diante do lado mágico da vida, aquele que mais
se aproxima da razão da existência humana...” (pág.97-98).
Chegamos, assim, ao acto 3, “Atuar”. A Marta
questiona logo no início: “Com que valores culturais a cultura se compromete
para construir uma democracia que vá além do voto na urna?” (pág. 102). Pergunta
esta fundamental, considerando a desconfiança e desrespeito dos cidadãos pelo
sistema criado e a sua necessidade de encontrar um ponto de fuga não através do
verdadeiro, mas sim, do que consideram “autêntico”, mesmo que bárbaro, elementar,
primário[1].
Essa primeira pergunta é reforçada com uma outra: “A
imaginação é um valor para educar e aprender?” (pág. 103). Marta fala-nos da
necessidade de “pensar redes sociopedagógicas em que os espaços culturais – museus,
bibliotecas, pontos de cultura – integrem esses esforços de educar para a vida
valorizando a ética, a estética, a criatividade e o poder de imaginação como
pilares dessa refundação do tempo, da experiência escolar e dos processos de aprendizagem.”
(pág.104). E apresenta-nos quatro dimensões
de aprendizagem onde as artes e a literatura colaboram decisivamente: educação
em valores; o lugar à experiência criativa; o domínio de habilidades cognitivas
complexas; a compreensão dos signos do tempo que se vive.
Antes de concluir, volto atrás no livro, na pág.47, onde
Marta fala da urgência de
institucionalizar a liberdade das artes como um pilar da democracia política e
criar programas de apoio com um grau de risco mais elevado, afirmando que “O espírito
desse tempo que nos foi delegado viver nos obriga a sair do comodismo das fórmulas
já conhecidas.”
Como cruzar a dimensão política da vida, a arte e suas
modulações de experiências?
“Sobretudo nutrindo curadores, gestores, os propósitos e
programas de arte e cultura de energia, curiosidade risco e potência. Abrindo
um caminho para libertar a arte e suas representações públicas de todo o tipo
de domesticação que elimina inquietações e angústias e acaba por fazer o jogo
do já jogado.” (pág. 109).
A Marta traz-me a mistura de inquietação e conforto que
preciso para permanecer em alerta, para continuar a crescer cada vez mais consciente
do mundo que me rodeia, para alimentar a esperança e a vontade de dar um passo
no meu tempo de vida na caminhada que alguns começaram há muito e outros irão
acarinhar no futuro. Seremos o melhor que pudermos.
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