Sunday 23 February 2020

A beleza há-de vencer



“Hoje o nosso tempo requer leveza, humor, encantamento e poesia. Não é mais a luta do bem contra o mal, representada por Guerra nas Estrelas, mas a utopia da vida bela. Descobrir o instante de beleza que a poesia nos dá, a inspiração que nos lembra que estamos na vida não só para trabalhar, lutar, brigar, mas também para amar, sorrir, dançar, abraçar, sonhar. Vivemos um tempo em que o mais revolucionário é ser poeta.”

Quando recebi o livro Imaginação: Reinventando a Cultura, de Marta Porto, deixei o que estava a fazer. Mergulhei nele e cada palavra, cada ideia, trazia-me a Marta que conheço e admiro e o prazer enorme, intelectual e físico, de cada encontro com ela. Especialmente, as palavras que abrem este texto e que reúnem o seu espírito crítico, a sua inteligência e o seu profundo humanismo.

Li o livro “num instante”, com verdadeira sede. Fui sublinhando palavras, passagens inteiras, e voltei a ele em vários momentos, à procura de conforto e de motivação. Volto agora a ele para o partilhar com outros.

Dividido em três actos, o primeiro traz-nos pílulas de inspiração, a reflexão da Marta “Sobre artes e artistas”. O texto “Sobre arte e fronteira: carta com Amós Oz” foi apresentado no ano passado aqui em Lisboa, na Livraria Tigre de Papel, no âmbito do Festival da Palavra. Marta cita aqui o russo Ilya Progogine, Prémio Nobel da Química, que quando associa arte/criatividade com os fenómenos irreversíveis que ocorrem na natureza diz que “O universo em torno de nós é apenas um exemplo de universo possível.” É essa variável que as artes trazem para o mundo real, diz a Marta. “A ideia de que a realidade é uma entre várias possíveis. E que as diferenças nos alimentam, ampliam probabilidades e possibilidades de vida e não as restringem.” (pág.23).

A imaginação e a poesia, o seu poder, são elementos centrais na forma como a Marta pensa a cultura e o mundo. Na pág. 52, propõe-nos “um retorno a um ideal aristotélico de ‘poética’, o lugar onde se valoriza a potência da imaginação humana para criar mundos e realidades diferentes das que um determinado tempo-espaço nos brinda.”

Vivendo nós hoje um momento em que o mundo parece andar para trás, muitas vezes paralisados, dormentes, ou então perfeitamente conscientes mas incapazes de reagir, Marta vai buscar inspiração em Italo Calvino, que em Seis propostas para o próximo milênio diz que “são poetas e artistas que lembram para a humanidade, a cada tempo e era vivida, que a imaginação, a poesia e as artes são o principal antídoto contra o medo, a violência e a barbárie.” Uma ideia cujo impacto encontramos novamente, de forma bastante concreta, no terceiro acto do livro, “Atuar”.

Pelo meio, temos o segundo acto, o mais extenso, sobre “Política, cultura e imaginário social”. Uma reflexão dedicada à urgência de repensar, reinventar, a democracia, através também da reinvenção das políticas culturais. “Quem faz arte e cultura”, lê-se na pág. 42, “é o povo, os artistas, mas quem cria as condições para que ela seja democrática, se amplie e faça sentido para o conjunto da sociedade é a política.”

Considerando a discussão mais intensa gerada nas últimas semanas em Portugal, sobre  temas, no entanto, permanentes e persistentes, como o papel das políticas culturais (e a sua ausência), o poder, o medo, o silêncio, a subserviência, Marta sugere, de forma muito relevante também para nós, que “a cultura, ou melhor, as políticas que lhe dão corpo, devem priorizar a construção de um imaginário social de entendimento, crítica e luta por fazer valer os ideais democráticos. Estimular mentalidades sensíveis e capazes de estruturar sociedades em que o cumprimento de direitos não é ato de misericórdia, mas ato consciente que responde a um imperativo democrático.” (pág.36).

A reinvenção da democracia passa, inevitavelmente, pela reinvenção das políticas que formam culturas. Também é interessante ver aqui como Marta consegue resumir em quatro linhas o que é isso de “formar culturas”: “Quando os exemplos são exceções, podemos falar de falta ou de necessidade de educação. Quando são a maioria, falamos de cultura social, de um imaginário de como nos manifestamos, percebemos e agimos como corpo social.” (pág. 37)

Mas, afinal, o que podem as políticas culturais? O livro apresenta-nos três ideias (pp.44-47):

1. A necessidade de o ecossistema cultural “elaborar e desenvolver ações que garantissem que os valores essenciais à democracia cultural constituem a existir e se sobreponham à necessidade de criar muros, de destruir culturas e formas inteiras de existência, abandonando-as à indiferença, à miséria e à ausência de oportunidades.”
2. A necessidade de reconhecer e entender os novos códigos de aprendizagem que as novas tecnologias oferecem “para promover curiosidade e abertura de outros conhecimentos que não estão disponíveis nas formas rápidas e superficiais que as redes sociais oferecem.” Promover experimentações que possam “estimular a alteridade cultural”, “praticar a experiência de estar na pele do outro”.
3. A defesa da liberdade artística e dos artistas como fundamento da gestão e das políticas culturais. Porque “Um mundo livre se constrói sem medo do desconforto, do incômodo, por vezes do choque e do horror, que as obras de arte sempre provocaram ao longo da historia.”

“Uma boa política cultural é aquela que entrelaça dois campos da vida pública: o desenvolvimento estético e ético (valores) de uma sociedade”, diz Marta (pág. 93). Valoriza e reforça o poder da experiência afirmando que “Experiência é fato que se transforma em significado, que inspira e nos alegra, nos choca e emociona. (...) É saber que um museu não é importante para um indivíduo ou uma cidade só porque gera empregos ou atrai turistas. (...) mas porque ali, naquele espaço, e naquele momento, é dado ao sujeito viver o inexplicável, a emoção, o choque diante de uma experiência estética que o faz chorar, ou se alegrar, ou se irritar e bravejar... que coloca diante do lado mágico da vida, aquele que mais se aproxima da razão da existência humana...” (pág.97-98).

Chegamos, assim, ao acto 3, “Atuar”. A Marta questiona logo no início: “Com que valores culturais a cultura se compromete para construir uma democracia que vá além do voto na urna?” (pág. 102). Pergunta esta fundamental, considerando a desconfiança e desrespeito dos cidadãos pelo sistema criado e a sua necessidade de encontrar um ponto de fuga não através do verdadeiro, mas sim, do que consideram “autêntico”, mesmo que bárbaro, elementar, primário[1].

Essa primeira pergunta é reforçada com uma outra: “A imaginação é um valor para educar e aprender?” (pág. 103). Marta fala-nos da necessidade de “pensar redes sociopedagógicas em que os espaços culturais – museus, bibliotecas, pontos de cultura – integrem esses esforços de educar para a vida valorizando a ética, a estética, a criatividade e o poder de imaginação como pilares dessa refundação do tempo, da experiência escolar e dos processos de aprendizagem.” (pág.104).  E apresenta-nos quatro dimensões de aprendizagem onde as artes e a literatura colaboram decisivamente: educação em valores; o lugar à experiência criativa; o domínio de habilidades cognitivas complexas; a compreensão dos signos do tempo que se vive.

Antes de concluir, volto atrás no livro, na pág.47, onde Marta fala da urgência de institucionalizar a liberdade das artes como um pilar da democracia política e criar programas de apoio com um grau de risco mais elevado, afirmando que “O espírito desse tempo que nos foi delegado viver nos obriga a sair do comodismo das fórmulas já conhecidas.”

Como cruzar a dimensão política da vida, a arte e suas modulações de experiências?

“Sobretudo nutrindo curadores, gestores, os propósitos e programas de arte e cultura de energia, curiosidade risco e potência. Abrindo um caminho para libertar a arte e suas representações públicas de todo o tipo de domesticação que elimina inquietações e angústias e acaba por fazer o jogo do já jogado.” (pág. 109).

A Marta traz-me a mistura de inquietação e conforto que preciso para permanecer em alerta, para continuar a crescer cada vez mais consciente do mundo que me rodeia, para alimentar a esperança e a vontade de dar um passo no meu tempo de vida na caminhada que alguns começaram há muito e outros irão acarinhar no futuro. Seremos o melhor que pudermos.




[1] Ler Confiança radical neste blog.

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