Sunday, 5 April 2020

Leituras da quarentena

Mar Jónico, Verão 2019

Procurando entender o que está a acontecer, tentando pôr os meus pensamentos em ordem, tentando cuidar do imediato e imaginar o distante, o “pós-algo”, as minhas últimas leituras misturam-se, uma alimenta a outra, e algumas palavras vão surgindo com ferquênica:

medo e incerteza; esperança e imaginação; cuidado e solidariedade;
E ... silêncio


Do medo e da incerteza

“Quem pode pensar em dar um beijo a um estranho, apanhar o autocarro ou mandar o seu filho para a escola sem sentir, realmente, medo?”, questiona Arundhati Roy.

Ao mesmo tempo, Franco “Bifo” Berardi cita o psicólogo Luigi D´Elia, que escreveu recentemente: “Quando bem focado, o medo é a principal motivação para a mudança. Jung diz claramente: ‘Onde está o medo, lá está a tarefa.’”

“Qual é o objecto do medo?”, continua Berardi. “Mais que um: medo da doença, medo do tédio e medo de como será o mundo quando finalmente sairmos de casa. Mas, como o medo é um mecanismo de mudança, o que precisamos de fazer é criar condições conscientes para a mudança.”


Da esperança e da imaginação

O medo pode dar-nos um empurrão para a frente e a esperança pode fazer-nos sonhar e imaginar. Qual é a mudança que precisamos, a mudança com a qual podemos sonhar e que devemos desejar, a mudança que deveríamos agora planear?

Judith Butler fala sobre a esperança: "Penso que permanecermos dentro da estrutura da Realpolitik é aceitarmos o encerramento dos nossos horizontes, é uma forma de parecermos "cool" e cépticos às custas da esperança e de aspirações radicais."

Devemos ser teimosos e insistir em manter os nossos horizontes abertos, ignorar aqueles que nos dizem que não temos outras opções.

Para Deborah Cullinan, a esperança é uma força motriz:

“Estamos dispostos a aceitar - como sistema artístico e como sociedade - que não estamos apenas à espera para podermos voltar atrás? Diria que estamos perante esse vírus - e de toda a desigualdade e injustiça que emerge com ele - para podermos estar preparados para reinventar as nossas instituições e os nossos sistemas, para responder a novas necessidades, encontrar uma nova normalidade e melhor servir o bem-estar das nossas comunidades. Essa necessidade de reinvenção é a nossa certeza absoluta. Para dar um passo em frente, precisamos de entender a esperança como um factor essencial e prático num sistema de possibilidades. (…) Como podemos ajudar a não perpetuar o nosso sector como o conhecemos; e, em vez disso, re-imaginando o nosso trabalho através de sectores, silos e diferenças, introduzirmos novas possibilidades para liderar e servir um novo e diferente amanhã? Qual é a nossa aplicação prática em tempos de perda e incerteza?”.


Do cuidado e da solidariedade

Há em muitos de nós uma necessidade de servirmos as nossas comunidades, uma necessidade de sermos úteis. Talvez haja aqui uma resposta possível.

Voltando a Berardi: “Quando, um dia, o corpo sair do confinamento da quarentena, o problema não será reequilibrar a relação entre tempo, trabalho e dinheiro, reequilibrar a dívida e o pagamento. A União Europeia ficou fracturada e enfraquecida com a sua obsessão por dívidas e equilíbrio, mas as pessoas estão a morrer, os hospitais estão a ficar sem ventiladores e os médicos estão sobrecarregados com fadiga, ansiedade e medo de infecção. Neste momento, isto não pode mudar com dinheiro, porque o problema não é o dinheiro. O problema é: quais são as nossas necessidades concretas? O que é útil para a vida humana, para a colectividade, para a terapia? (...) Então, o dinheiro é agora impotente. Somente a solidariedade social e a inteligência científica estão vivas e podem tornar-se politicamente poderosas. (...) De que é que precisamos agora? Agora, no imediato, precisamos de uma vacina contra a doença, precisamos de máscaras protectoras e precisamos de equipamentos de terapia intensiva. E, a longo prazo, precisamos de comida, precisamos de carinho e prazer. E de uma nova cultura de ternura, solidariedade e frugalidade.”

A quem vamos expressar essa ternura e solidariedade?

Ailton Kranak lembra-nos que o nosso conceito de "humanidade" exclui uma variedade de sub-humanidades (caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes) que vivem agarradas à terra, e ainda 70% das populações arrancadas do campo e das florestas, que vivem em favelas e periferias.

Judith Butler argumenta que “se nos repensássemos como criaturas sociais que são fundamentalmente dependentes uma da outra - e não há vergonha, humilhação ou ‘feminização’ nisto - acho que nos trataríamos de maneira diferente, porque a nossa própria concepção do eu não seria definida pelo interesse pessoal individual. (…) A nossa interdependência serve como base para as nossas obrigações éticas entre nós. Quando nos atacamos um ao outro, atacamos esse mesmo vínculo. (...) Teríamos de desenvolver práticas políticas para tomarmos decisões sobre como viver juntos com menos violência.”

Muitos intelectuais concordam, neste momento, que um retorno à “normalidade” seria catastrófico. Muitas pessoas suspeitam que o “normal” não era bom o suficiente e levou-nos a esse ponto. Talvez haja esperança de que muitos esterão dispostos a trabalhar em conjunto para uma “nova normalidade” e, como sempre, Deborah Cullinan vê as organizações culturais e as artes na vanguarda de tais processos.


Atrevemo-nos a imaginar ...

“Historicamente, as pandemias obrigaram os humanos a romper com o passado e a re-imaginar o seu mundo. Esta não é diferente. É um portal, uma porta de entrada entre um mundo e o outro”, escreve Arundhati Roy. Judith Butler lembra-nos que “às vezes a ‘realidade’ é usada para desvalorizar como infantis ou desconhecedores pontos de vista que oferecem realmente uma possibilidade mais radical de igualdade ou liberdade ou democracia ou justiça, o que significa sair de um entendimento definido".

Devemos ousar imaginar algo diferente e ignorar aqueles que desejam disciplinar-nos com os seus argumentos “realistas”.

Berardi acredita que teremos a oportunidade de reescrever as regras e acabar com qualquer automatismo. Mas essa crença vem com um aviso: "Mas convém saber que isso não acontecerá pacificamente. Não podemos prever a forma que o conflito assumirá, mas devemos começar a imaginá-lo. Quem imaginar primeiro vence - uma das leis universais da história.”

Kranak dá-nos uma ideia do que o conflito poderá envolver: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos.
Berardi também reflecte sobre isso: “A disseminação massiva da morte que estamos a testemunhar nesta pandemia pode reactivar o nosso sentido de tempo como prazer, e não como adiamento da alegria.”

Do silêncio

“A nossa mãe, a Terra, dá de graça o oxigênio, põe a gente para dormir, desperta de manhã com sol, dá oxigênio, deixa pássaros cantar, as correntezas, as brisas, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele?  Isso pode significar uma mãe amorosa, que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não é porque não goste dele, mas quer ensinar alguma coisa para ele. Filho, silêncio. A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não é ordem imperativa. Ela simplesmente está dizendo para a gente: silêncio. Esse é também o significado do recolhimento.”

Leituras:
Arundhati Roy, The pandemic is a portal

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