Mar Jónico, Verão 2019 |
Procurando
entender o que está a acontecer, tentando pôr os meus pensamentos em ordem,
tentando cuidar do imediato e imaginar o distante, o “pós-algo”, as minhas
últimas leituras misturam-se, uma alimenta a outra, e algumas palavras vão
surgindo com ferquênica:
medo e incerteza; esperança e imaginação; cuidado e
solidariedade;
E ... silêncio
Do medo
e da incerteza
“Quem
pode pensar em dar um beijo a um estranho, apanhar o autocarro ou mandar o seu
filho para a escola sem sentir, realmente, medo?”, questiona Arundhati Roy.
Ao
mesmo tempo, Franco “Bifo” Berardi cita o psicólogo Luigi D´Elia, que escreveu
recentemente: “Quando bem focado, o medo é a principal motivação para a
mudança. Jung diz claramente: ‘Onde está o medo, lá está a tarefa.’”
“Qual
é o objecto do medo?”, continua Berardi. “Mais que um: medo da doença, medo do
tédio e medo de como será o mundo quando finalmente sairmos de casa. Mas, como
o medo é um mecanismo de mudança, o que precisamos de fazer é criar condições
conscientes para a mudança.”
Da
esperança e da imaginação
O medo
pode dar-nos um empurrão para a frente e a esperança pode fazer-nos sonhar e
imaginar. Qual é a mudança que precisamos, a mudança com a qual podemos sonhar
e que devemos desejar, a mudança que deveríamos agora planear?
Judith
Butler fala sobre a esperança: "Penso que permanecermos dentro da
estrutura da Realpolitik é aceitarmos o encerramento dos nossos horizontes, é uma
forma de parecermos "cool" e cépticos às custas da esperança e de aspirações
radicais."
Devemos
ser teimosos e insistir em manter os nossos horizontes abertos, ignorar aqueles
que nos dizem que não temos outras opções.
Para
Deborah Cullinan, a esperança é uma força motriz:
“Estamos
dispostos a aceitar - como sistema artístico e como sociedade - que não estamos
apenas à espera para podermos voltar atrás? Diria que estamos perante esse
vírus - e de toda a desigualdade e injustiça que emerge com ele - para podermos
estar preparados para reinventar as nossas instituições e os nossos sistemas,
para responder a novas necessidades, encontrar uma nova normalidade e melhor
servir o bem-estar das nossas comunidades. Essa necessidade de reinvenção é a
nossa certeza absoluta. Para dar um passo em frente, precisamos de entender a
esperança como um factor essencial e prático num sistema de possibilidades. (…)
Como podemos ajudar a não perpetuar o nosso sector como o conhecemos; e, em vez
disso, re-imaginando o nosso trabalho através de sectores, silos e diferenças,
introduzirmos novas possibilidades para liderar e servir um novo e diferente
amanhã? Qual é a nossa aplicação prática em tempos de perda e incerteza?”.
Do
cuidado e da solidariedade
Há em
muitos de nós uma necessidade de servirmos as nossas comunidades, uma
necessidade de sermos úteis. Talvez haja aqui uma resposta possível.
Voltando
a Berardi: “Quando, um dia, o corpo sair do confinamento da quarentena, o
problema não será reequilibrar a relação entre tempo, trabalho e dinheiro, reequilibrar
a dívida e o pagamento. A União Europeia ficou fracturada e enfraquecida com a
sua obsessão por dívidas e equilíbrio, mas as pessoas estão a morrer, os
hospitais estão a ficar sem ventiladores e os médicos estão sobrecarregados com
fadiga, ansiedade e medo de infecção. Neste momento, isto não pode mudar com
dinheiro, porque o problema não é o dinheiro. O problema é: quais são as nossas
necessidades concretas? O que é útil para a vida humana, para a colectividade,
para a terapia? (...) Então, o dinheiro é agora impotente. Somente a
solidariedade social e a inteligência científica estão vivas e podem tornar-se
politicamente poderosas. (...) De que é que precisamos agora? Agora, no
imediato, precisamos de uma vacina contra a doença, precisamos de máscaras
protectoras e precisamos de equipamentos de terapia intensiva. E, a longo
prazo, precisamos de comida, precisamos de carinho e prazer. E de uma nova
cultura de ternura, solidariedade e frugalidade.”
A quem
vamos expressar essa ternura e solidariedade?
Ailton
Kranak lembra-nos que o nosso conceito de "humanidade" exclui uma
variedade de sub-humanidades (caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes) que vivem
agarradas à terra, e ainda 70% das populações arrancadas do campo e das florestas, que
vivem em favelas e periferias.
Judith
Butler argumenta que “se nos repensássemos como criaturas sociais que são
fundamentalmente dependentes uma da outra - e não há vergonha, humilhação ou ‘feminização’
nisto - acho que nos trataríamos de maneira diferente, porque a nossa própria
concepção do eu não seria definida pelo interesse pessoal individual. (…) A nossa
interdependência serve como base para as nossas obrigações éticas entre nós.
Quando nos atacamos um ao outro, atacamos esse mesmo vínculo. (...) Teríamos de
desenvolver práticas políticas para tomarmos decisões sobre como viver juntos
com menos violência.”
Muitos
intelectuais concordam, neste momento, que um retorno à “normalidade” seria
catastrófico. Muitas pessoas suspeitam que o “normal” não era bom o suficiente
e levou-nos a esse ponto. Talvez haja esperança de que muitos esterão dispostos
a trabalhar em conjunto para uma “nova normalidade” e, como sempre, Deborah
Cullinan vê as organizações culturais e as artes na vanguarda de tais
processos.
Atrevemo-nos
a imaginar ...
“Historicamente,
as pandemias obrigaram os humanos a romper com o passado e a re-imaginar o seu
mundo. Esta não é diferente. É um portal, uma porta de entrada entre um mundo e
o outro”, escreve Arundhati Roy. Judith Butler lembra-nos que “às vezes a ‘realidade’
é usada para desvalorizar como infantis ou desconhecedores pontos de vista que
oferecem realmente uma possibilidade mais radical de igualdade ou liberdade ou
democracia ou justiça, o que significa sair de um entendimento definido".
Devemos
ousar imaginar algo diferente e ignorar aqueles que desejam disciplinar-nos com
os seus argumentos “realistas”.
Berardi
acredita que teremos a oportunidade de reescrever as regras e acabar com
qualquer automatismo. Mas essa crença vem com um aviso: "Mas convém saber
que isso não acontecerá pacificamente. Não podemos prever a forma que o
conflito assumirá, mas devemos começar a imaginá-lo. Quem imaginar primeiro
vence - uma das leis universais da história.”
Kranak
dá-nos uma ideia do que o conflito poderá envolver: “Nosso tempo é especialista em criar
ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência
da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é
capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está
cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta,
faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar
não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo
como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos.”
Berardi
também reflecte sobre isso: “A disseminação massiva da morte que estamos a testemunhar
nesta pandemia pode reactivar o nosso sentido de tempo como prazer, e não como
adiamento da alegria.”
Do
silêncio
“A nossa mãe, a Terra,
dá de graça o oxigênio, põe a gente para dormir, desperta de manhã com sol, dá
oxigênio, deixa pássaros cantar, as correntezas, as brisas, cria esse mundo
maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele? Isso pode significar uma mãe amorosa, que
decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não é porque não
goste dele, mas quer ensinar alguma coisa para ele. Filho, silêncio. A Terra
está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não é ordem
imperativa. Ela simplesmente está dizendo para a gente: silêncio. Esse é também
o significado do recolhimento.”
Leituras:
Arundhati Roy, The pandemic is a portal
Deborah Cullinan, The time for hope and imagination
Franco “Bifo” Berardi, Chronicles of the pseudo-deflation #2 “Normality must
not return”
Franco “Bifo” Berardi, Beyond the Breakdown: Three Meditations on a Possible
Aftermath
Judith Butler wants to reshape our rage (interview)
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