"Acho que é responsabilidade de um director artístico,
ou, digamos, do colectivo que é a instituição artística, dizer ‘aqui está a força
que estou a sentir na nossa comunidade. Mas, afinal, não é nossa responsabilidade
ter uma espécie de eloquência ou articulação em torno disto, que talvez a
própria comunidade sinta, mas não manifesta como uma declaração específica de
necessidade? Então, acho que ser sensível a isso é liderança, dizer ‘aqui está
o que sentimos que está no ar e ao qual pensamos que deveremos dar voz.”
Costumo citar estas palavras de Martha Lavey, directora durante muitos anos do Steppenwolf
Theater em Chicago, falecida em 2017. Actualmente, penso nelas com mais frequência
ainda, revisito-as, pois resumem lindamente o propósito do trabalho de um director
artístico ou de uma organização
cultural.
Voltei a pensar nelas quando vi um vídeo feito por artistas e técnicos portugueses,
intitulado "Adiem-nos, mas não nos cancelem agora". Ocorreu-me que
esse pedido, essa visão ou sugestão, considerando a situação que estamos a
viver, não fazia sentido. Não faz sentido, se considerarmos que há um propósito, uma
intenção, por trás do trabalho de um director artístico ou de uma organização
cultural; não faz sentido, se entendermos esse trabalho como uma maneira de criar um
relacionamento com as comunidades com que procuramos envolver-nos, as suas
aspirações, ansiedades, dúvidas e, também, a sua busca da felicidade.
Escrevi na minha página do Facebook:
Escrevi na minha página do Facebook:
- O reagendamento é fundamental para cumprir com o compromisso de co-produzir e apresentar um espectáculo;
- Sem reagendamento, os artistas ficam sem as apresentações e o contacto com o publico;
- Nós reagendámos os nossos espectáculos para que tudo possa voltar a cena;
- Portanto, defendes que os artistas deviam ser prejudicados pese embora já tivessem as apresentações marcadas?
- As temporadas são decididas neste momento. Não se pode “esperar” sob pena de estarmos a condenar a temporada 20/21 penalizando duplamente os artistas.
Li atentamente esses argumentos, grata por poder ter uma visão das
preocupações e prioridades de um director artístico num momento como este. No entanto, depois disso, adiar
fez ainda menos sentido para mim.
Antes de tudo, não quero parecer insensível à situação dos artistas, muito
menos causar-lhes mais danos ou angústia. Dito isto, a programação de uma
organização cultural tem apenas a ver com os artistas ou com uma comunidade
maior, da qual fazem parte os artistas, outros profissionais da cultura e as
pessoas a quem chamamos de “público”? Uma encomenda ou co-produção decidida há meses,
resultado de uma intenção específica, será relevante para esta comunidade
quando voltarmos? E o que é que "voltarmos" significa ao certo neste
momento? Que forma vai tomar? É realista acreditar que daqui a uns meses
estaremos a festejar “normalmente” a abertura de mais uma temporada? Trata-se
de adiar o “business as usual” ou será esta uma oportunidade de transformá-lo?
Há muitas perguntas para as quais não temos respostas neste momento. A nossa
realidade continua a evoluir, continua a mudar. Talvez, a única coisa que
possamos dizer com certeza é que não teremos a abertura "normal" de uma
temporada em Setembro, não como a tínhamos planeado. As questões serão
diferentes, a nossa psicologia será diferente, os espaços e formatos
provavelmente terão que ser diferentes também. Será um lento retorno à
normalidade pela qual ansiamos (estarmos juntos, tocarmo-nos, partilharmos a
experiência de um espectáculo). Ao mesmo tempo, este é provavelmente o momento para
pensarmos também na "normalidade" à qual não queremos voltar (vejam o questionário Where to land after the pandemic?)
Como vamos sobreviver a isto? Como podemos adaptar-nos para sobrevivermos?
O que fará sentido? O que desejamos? Para o que é que não queremos voltar?
Acredito que as respostas a essas perguntas não virão do reagendamento de projectos
previamente programado, pelo menos, não de todos eles e não da forma como
tinham sido pensados. Faria sentido procurarmos juntos as respostas, com as nossas
comunidades, incluindo os artistas. "Não nos fixemos no plano, mas fixemo-nos
na pessoa", disse a minha amiga e colega Chiara Organtini na nossa mais
recente reunião do RESHAPE.
Neste processo em que vamos ter que rever o nosso trabalho e o nosso lugar
na comunidade, vamos discordar. É natural e é necessário, nunca antes passámos
por isto. Não há outra maneira para afinarmos e ajustarmos as nossas ideias e
imaginarmos o nosso futuro juntos.
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