Sunday 10 October 2021

Provocar o suspiro

Esta semana, estive nos Territórios Públicos, o encontro nacional de serviços educativos e mediação organizado pelo 23 Milhas, o projecto cultural do Município de Ílhavo. Gosto do nome desta iniciativa, que me leva a pensar em palavras como “comunidade” e “comunicação” – comunicação que cria comunidade – a ligação criada por uma tarefa partilhada (para lembrar o discurso “O que é amar um país” de Tolentino Mendonça).

O início do encontro ficou marcado pela participação de Álvaro Laborinho Lúcio, pelo mundo que ele traz e partilha generosamente, com um misto de charmosa seriedade e cativante leveza, nas suas intervenções públicas. Poderia destacar vários pontos, mas, considerando o tema deste post, o que me parece mais relevante é referir aqui a forma como nos encorajou a seguir o impulso da nossa constante ignorância, que nos leva do estereótipo, para a interrogação, o questionamento, a dúvida…

Nessa mesma tarde, tivemos a oportunidade de ouvir Nuno Faria (Director Artístico) e Marta Bernardes (Gestora de Projectos Educativos) do Museu da Cidade do Porto. Apresentaram uma ideia de museu de cidade que intriga, uma intensão de questionar, de ir a fundo, de olhar para o museu-instituição como uma instituição também em crise, com necessidade de olhar para si própria, de se questionar e de mudar.

Com as palavras de Laborinho Lúcio sobre a nossa constante ignorância a ecoar ainda na minha cabeça, senti que este projecto foi apresentado tendo como base demasiadas certezas, demasiadas convicções sobre o que as pessoas podem ou não sentir, podem ou não desejar, podem ou não precisar. Penso também que a apresentação não foi além da teoria, não houve intenção ou capacidade de concretizar. Senti, aliás, alguma arrogância na postura, que se tornou mais forte (para mim, desconfortável até) quando um jovem colega perguntou como é que as pessoas chegam ao museu. Pareceu-me ser uma pergunta no sentido literal (como sabem, como se informam, como chegam), mas foi encarada também num sentido metafórico: como é que as pessoas chegam aos conteúdos, como é que se relacionam com eles.

Marta Bernardes falou da falta de educação artística das pessoas; das falhas da escola nesse sentido; da forma como as pessoas exigem compreender e exigem compreender da forma que elas querem. Fez uma comparação com as crianças que entram na primária para aprender a ler e a escrever e para quem aquilo que no início parece ser rabiscos incompreensíveis começa, com a prática, a ganhar significado. Comparou ainda à sua própria ignorância, e consequente falta de compreensão, do jogo de rugby, até que um amigo com mais conhecimentos lhe explicou algumas regras básicas. Para voltar à falta de educação artística.

Visitei o ex-Museu Romântico (espaço agora chamado Extensão do Romantismo) há poucos dias. No passado, tinha-o visitado apenas duas vezes, ambas antes da remodelação de 2017. Lembro-me que não me disse algo especial, achei o nome (principal factor de atracção aquando da primeira visita – a primeira também à cidade do Porto) mais interessante do que o conteúdo em si. Devo dizer que fiquei muito incomodada com a violência das recentes críticas feitas nas redes sociais ao novo projecto. A maioria baseava-se em fotografias e em convicções, não revelava qualquer curiosidade, sentia-se sobretudo raiva. Fiquei a pensar no que poderiam ser os motivos desta raiva e também nos critérios dos profissionais do sector quando certos museus ou colecções desaparecem (pensei concretamente no continuado silêncio em relação ao que se passa no Museu dos Transportes e Comunicações na mesma cidade).

Não sentindo nenhuma ligação especial ao ex-Museu Romântico, sem raiva ou mágoa e com alguma curiosidade, quis conhecer a nova proposta; que não comunicou comigo: um texto de introdução sem informação relevante, que parte de vários pressupostos em relação a conhecimentos prévios dos visitantes; e, depois, vários objectos e obras expostas, sem qualquer contexto ou informação, a não ser um folheto dado na entrada através do qual o visitante pode fazer uma simples correspondência entre o que vê exposto e o esquema apresentado no folheto. O website do Museu da Cidade prepara o visitante mais experiente para este tipo de experiência que desorienta e desespera: confuso, nada intuitivo, um exercício estético em detrimento da funcionalidade, que resulta num website inacessível.

De que forma terá sido feita a avaliação da proposta do ex-Museu Romântico? O que pensavam dele os profissionais dos museus e também os visitantes? Como terá sido tomada esta decisão de mudança radical? Com que propósito? Qual a necessidade identificada? Quais as referências do projecto no que diz respeito à educação e à mediação? São algumas das perguntas que espero poder ver esclarecidas.

Antes da visita à Extensão do Romantismo, passei pela Galeria Municipal, onde está patente a exposição “Os Novos Babilónios”. Cerca de 10 minutos depois estava de saída. Mais uma vez, fui confrontada com um texto introdutório que não me disse nada; textos melhores, mas muito extensos, nas paredes (que depois pude levar comigo e ler, sentada e com calma, numa brochura fornecida pela galeria) e um cruzamento constante de sons de vídeos que cansa profundamente.




Em momentos como estes, lembro-me sempre da museóloga canadiana Gail Lord que nos disse, quando visitou Portugal há uns anos, que o que é bom nos museus é que não temos de fazer um exame para entrar e outro para sair… Mas parece que, em certos museus, é mesmo isto que é esperado de nós. Somos culpados pela nossa ignorância, quando os responsáveis pelos mesmos não sabem, claramente, se querem comunicar, com quem e porquê. Visito diferentes tipos de museu (de arte, de história, de ciência, de arqueologia) e sinto que alguns dos seus curadores ou comissários esperam que eu tenha os seus conhecimentos ou, talvez, que consulte antecipadamente alguma bibliografia para poder ter uma visita com significado, relevante. Os curadores sabem navegar neles de olhos fechados, mas atiram o visitante para dentro sem qualquer orientação ou mapa. Isto não é um museu (na definição actual, e talvez na futura também). Não é fácil comunicar com pessoas que não sabem (que é a maioria de nós, pessoas que visitamos museus). Mas há profissionais capazes de reconhecer a sua “constante ignorância” e com um genuíno e honesto interesse e capacidade para comunicar: pelo prazer da partilha, da comunhão, da comunicação, da comunidade.

Queria acabar fazendo referência a uma pessoa que conheci ontem, no Festival Materiais Diversos, e a quem roubei o título para este post. Filipa Morgado, arquitecta e artista plástica, está a desenvolver, com o apoio da Direcção-Geral das Artes, o projecto CAU – Cortém Aldeia Urbana, na sua aldeia de Cortém, próximo das Caldas da Rainha. Voltou para Portugal por causa da pandemia, para passar mais tempo com o pai. Quis fazer algo na sua aldeia, para e com os habitantes. Uma aldeia construída dos dois lados de uma estrada, sem praça central. Falou com as pessoas, que manifestaram a sua satisfação pelo que têm, pelo seu modo de vida. Envolve-as no projecto batendo à porta, deixando informação na caixa de correio, telefonando. Qual o desejo da Filipa Morgado, também habitante da aldeia? Que as pessoas possam ser surpreendidas. “O meu objectivo é provocar o suspiro…”. Foi o que me ficou da conversa de ontem.

Foto: Luísa Baeta | Materiais Diversos


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