Começo por dizer que acho muito significativo, do ponto de
vista simbólico, que seja neste monumento, que “evoca
a expansão ultramarina portuguesa, sintetiza um passado glorioso e simboliza a
grandeza da obra do Infante D. Henrique, o impulsionador das descobertas”, que
nos é proposta não uma revisão da história, mas sim, uma revisitação crítica
(como diria Álvaro Laborinho Lúcio).
Nos últimos anos, tive a oportunidade de visitar Retornar
– Traços de Memória em 2016 (escrevi sobre ela aqui), Racismo
e Cidadania e Atlântico Vermelho em 2017, Contar Áfricas em
2018. O que senti com esta última exposição, Visões do Império, é que,
mesmo sem corresponder completamente às minhas expectativas, vem reforçar a
intenção consciente, empenhada e coerente de aprofundar o debate, de ir cada
vez mais longe.
A leitura de uma reportagem
no Expresso, já depois de visitar a exposição, levanta
para mim algumas questões. Joana Pontes, uma das coordenadoras, “faz questão de
sublinhar que ‘o objetivo da mostra não era criticar o modelo colonialista
adotado por Portugal”, até porque ambos [os coordenadores – Miguel Bandeira
Jerónimo e Joana Pontes] discordam da forma ‘polarizada e moral’ como o debate
tem sido travado. O que é urgente é informar, dizem. ‘Esta exposição tenta
mostrar que é possível pensar para lá da acusação ou da colaboração. Não houve
o filtro da crítica, mas a intenção de mostrar a diversidade de pontos de vista
das fotografias e os usos que esta teve.’”
Toda a exposição é uma crítica ao modelo colonialista
adoptado por Portugal. Poderia não o ser? (nem questiono, claro, se seria
desejável…). Os coordenadores consideram que o resultado é uma proposta
“neutra” ou “equilibrada”? Alguns exemplos concretos que me ocorreram ao ler a
entrevista no Expresso:
Como é que o visitante deverá interpretar o uso extenso de aspas em palavras e expressões incluídas nos textos? (fotos 1 e 2 em baixo). Eu interpretei grande parte como crítica.
Como é que o visitante deverá interpretar a frase “A ‘obrigação moral de trabalhar’, aplicável apenas a africanos, por vezes ‘em condições análogas à escravatura’, predominou nos discursos políticos, nos textos legislativos, nas práticas administrativas.” (foto 1)? Podemos atribuir a primeira, sobre a “obrigação moral de trabalhar, à administração colonial, mas quem está a ser citado na segunda (em condições análogas à escravatura”)? Não é claro nem nos permite entendermos melhor que fontes foram consultadas.
Foto 1 |
Foto 2 |
Numa parte da exposição intitulada “As oficinas da alma”, vemos a fotografia 3 (em baixo) e lemos na legenda que é um “Estudante a aprender a ser professor” e que pertence à colecção “Missionários Metodistas Fotografam Angola”. A imagem levantou diversas questões para mim, tratando-se de um estudante negro a ensinar uma turma de crianças brancas. Não há qualquer outra informação sobre a mesma e as minhas questões não são de todo respondidas. Mais à frente, numa secção sobre a propaganda do Estado Novo, vemos uma outra fotografia parecida (Foto 4), de “Uma portuguesa de cor ensinando uma portuguesa branca” (legenda na própria fotografia). Aqui, lê-se na legenda da exposição que é uma “Foto enviada por angolanos para o Secretário Geral das Nações Unidas”. Portanto, aqui entendemos que nos é proposto ver esta fotografia no âmbito da propaganda; e ficámos perplexos, sem perceber quem foram, neste contexto, os “angolanos” que a enviaram para as Nações Unidas.
Foto 3 |
Foto 4 |
Ainda nesta secção da propaganda, e numa exposição cujos coordenadores dizem que “Não houve o filtro da crítica, mas a intenção de mostrar a diversidade de pontos de vista das fotografias e os usos que esta teve”: de que forma está integrada na exposição a voz do senhor que disse, a propósito da fotografia no autocarro (Foto 5), “Eu vivi lá, era mesmo assim, isto não é propaganda nenhuma!”?
Foto 5 |
Dados estes exemplos (que me fazem questionar a falta de crítica, mas também o cruzamento de vozes e experiência diversas na exposição), devo dizer também que gostei do facto dos textos serem assumidos. Com isto, quero dizer textos assinados por alguém (imagino que investigadores ligados à exposição?), cujo nome vemos no topo do painel, ao contrário da prática comum em museus e exposições em apresentar opiniões sem as assinar. Da mesma forma, gostei dos painéis intitulados “Do meu ponto de vista” (Foto 6), que parecem trazer outras vozes, mas fiquei sempre a pensar: Quem são estas pessoas? Qual o contexto a partir do qual nos dão a sua visão? Porque é que foi incluído na exposição o seu ponto de vista?
Foto 6 |
Um último comentário que gostaria de fazer tem a ver com diversas referências nas tabelas que, se não houvesse a tradução para o inglês, não saberia o que significavam (foto 7). Numa exposição, aberta ao público em geral, não se devem assumir conhecimentos prévios.
Foto 7 |
Em suma, diria que gostei a exposição, trouxe-me informações e imagens que não conhecia e um olhar crítico que me permitiu questionar e reflectir melhor sobre o que esperarei da próxima exposição do Padrão dos Descobrimentos, considerando o caminho que tem traçado. A exposição Visões do Império continua até dia 30 de Dezembro. É acompanhada de um programa de eventos e actividades, nos quais destaco o ciclo de cinema Outros Impérios, Outras Visões, que começou no dia 13 de Outubro e que se prolonga até o dia 26 de Novembro.
Não é preciso dizer o quão necessário e urgente é este questionamento, esta reflexão. Ou será? Olhando para outras iniciativas de algumas instituições culturais e tendo assistido a diversos debates nos últimos meses, constata-se repetidamente o atraso neste debate em Portugal. Na conferência anual da Acesso Cultura, no dia 11 de Outubro, algumas colegas negras voltaram a partilhar connosco a sua impaciência em relação ao estado das coisas ou exaustão provocada pelo mesmo (gravações disponíveis aqui). Têm razão, e nós temos de assumir as nossas responsabilidades por esta impaciência e exaustão. Temos de fazer a nossa parte. Nos últimos anos tenho investido muito (tempo e dinheiro) em leituras e debates para me auto-educar em relação àquilo que nunca fez parte do meu percurso (escolar e não só).
Tenho sorte em trabalhar neste sector, onde estou exposta a diferentes referências, posso ouvir os colegas na primeira pessoa. Mas nem todas as pessoas terão tempo e dinheiro para o fazer. E para muitas mais não é um assunto ou uma prioridade entre os vários assuntos. O ensino formal será fundamental, a longo prazo, para a educação de quem irá entrar para a escola primária. Mas para quem já está mais avançado no percurso escolar (tal como o é agora) e para os adultos, por onde passará essa auto-educação? Pelos museus, pelos teatros, pelas bibliotecas, pelos cinemas. Por nós, profissionais da cultura; se fizermos parte da vida das pessoas. Esta nossa relação com as pessoas é todo um outro capítulo, diversas vezes abordado neste blog.
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