Saturday 7 May 2022

De quem é a história para contar?

National Museum of African-American History and Culture, Washington D.C. (Photo: Justin T. Gellerson / NYT)

A primeira vez que ouvi falar de Emmet Till foi em 2017, quando o quadro “Open Casket” de Dana Schutz, exposto na Biennal do Whitney Museum, provocou uma enorme controvérsia. Emmet Till foi brutalmente assassinado, linchado, em 1955, após ter sido acusado de ter ofendido uma mulher branca na sua mercearia. Este assassinato impulsionou o Movimento dos Direitos Civis nos EUA. A mãe de Emmet, Mamie Till, pediu que o caixão permanecesse aberto durante o funeral do seu filho para as pessoas verem. As suas palavras recebem os visitantes no National Museum of African American History and Culture: “Deixem as pessoas ver o que eu vi. Penso que todas as pessoas precisam de saber o que aconteceu a Emmet Till.”

No passado, escrevi sobre este e outros casos num post intitulado “Apropriação cultural: menos guardiões, mais pensadores críticos”. Em 2017, houve críticos que defenderam que Schutz, sendo branca, não deveria abordar esta história, não era sua para contar. Activistas colocaram-se à frente do quadro, para obstruir a visualização, e houve quem defendeu a destruição da obra. Por outro lado, a historiadora de arte cubana, Coco Fusco, alertava: “Presumir que os apelos pela censura e destruição constituem uma resposta legítima ao que é considerado por alguns uma injustiça leva-nos por um caminho muito sombrio. (…) A autoridade para falar por ou sobre a cultura negra não é garantida pela cor da pele ou linhagem, e pode ser prejudicada por inverdades. Os meus 25 anos a ensinar arte mostraram-me que uma combinação de ignorância sobre a história e supremacia do formalismo na arte-educação - mais do que o racismo - está por trás do fracasso da maioria dos artistas de qualquer origem em lidar efectivamente com questões raciais.”

Voltei a cruzar-me com esta história ao ler o livro de Laura Raicovich Culture strike: Art and museums in an age of protest. A autora cita diferentes críticos. A artista Pastiche Lumumba defendeu que “É insensível e gratuito para a artista, em primeiro lugar – e depois para os curadores e o museu – participar voluntariamente na longa tradição de pessoas brancas a partilhar e fazer circular imagens de violência anti-negra.” A artista Hannah Black afirmou que “As pessoas não-negras devem aceitar que nunca vão encarnar nem poderão compreender este gesto [o da Mamie Till pedir para o caixão ficar aberto]. (…) Se as pessoas negras lhe dizem [à Dana Schutz] que o quadro causou uma mágoa desnecessária, ela e vocês devem aceitar a verdade disto. A pintura deve ser retirada.” Raicovich cita ainda Coco Fusco que, em resposta à Hannah Black, disse: “Presume uma capacidade de falar por todas as pessoas negras que cheira a um nacionalismo cultural que raramente serviu às mulheres negras, e que no passado foi usado para manter os artistas negros britânicos fora de conversas sobre a cultura negra nos Estados Unidos.” Raicovich alinha com os opositores da exposição do quadro. À afirmação de Dana Schutz (“Não sei o que é ser negro na América, mas sei o que é ser mãe. Emmet era o único filho de Mamie Till. A ideia de que qualquer coisa possa acontecer à tua criança ultrapassa qualquer compreensão. A dor deles é a tua dor. O meu envolvimento com esta imagem foi através da empatia que senti pela sua mãe.”) Raicovich responde: “As objeções a este sentimento são claras; como mulher branca, não tem qualquer ideia do que significa ser mãe de uma criança negra.”

Protest at the Whitney Museum (Image taken from Dazed

Soube através do livro de Raicovich que há quem defende que as histórias de violência contra pessoas negras pertencem aos artistas negros; que os artistas brancos devem retratar os agressores. Continuo a não concordar com a ideia que se pode ditar os temas com os quais qualquer artista se possa envolver ou não. Por isso, achei muito mais necessária e relevante a discussão à volta da obra em si. Christina Sharpe, professora de English Literarature and Black Studies, diz que a superfície abstracta da pintura anula, reprime ou abandona mesmo a violência desobstruída transmitida pela fotografia que Mamie Till deu permissão para ser reproduzida. O artista Lyle Ashton Harris disse que “Qualquer horror redentor que esteja na fotografia original foi silenciado pelo que é, na verdade, uma representação pictórica abstrata de uma imagem que, de uma forma perturbadora, não assume qualquer compromisso.” Estas análises permitiram-me olhar de outra forma para o trabalho de Schutz, de compreender de outra forma a dor e a raiva que esta possa ter provocado, sem lhe retirar, no entanto, o direito de abordar esta história.

A história de Emmet Till foi alvo de uma nova controvérsia mais recentemente, quando em Março uma petição assinada por milhares de pessoas exigiu o cancelamento de Emmet Till, A New American Opera (ler aqui). A ópera tem como base uma peça de 2013, Down in My Heart, escrita pela dramaturga branca Clare Coss e a compositora negra Mary D. Watkins. Mya Bishop, a estudante que iniciou a petição, escreveu: “Se vamos contar a história de Emmett Till, deve ser apenas de uma perspectiva negra, um escritor negro e a permissão e aprovação da família de Till. Clare Coss ultrapassa os limites ao assumir a responsabilidade de transformar o trauma negro em entretenimento e ao explorar uma tragédia negra para impulsionar a sua carreira e sentir-se aliviada de sua culpa de branca.”

Clare Coss (86 anos) e Mary D. Watkins (83 anos) têm ambas memórias do linchamento de Emmet Till. O envolvimento de Watkins na peça não é referido na petição, que se centra no facto de haver uma criadora branca na equipa. Watkins emitiu um comunicado em que se manifesta muito perturbada pelo facto das pessoas condenarem a peça sem a ter visto ou ouvido (o que faz lembrar a forma como muitas pessoas, em Portugal e noutros países, reagiram à apresentação de Catarina e a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues). “Pegaram no facto de a dramaturga ser branca e assumiram todo o tipo de coisas sobre o conteúdo da peça. Embora haja muitos artistas de cor envolvidos neste projecto, os críticos assumem que não tivemos nenhum impacto sobre a forma final da peça e que a dramaturga de alguma forma nos forçou a todos a contar a sua história. É um insulto para mim, como mulher negra, e para os membros da companhia que são afro-americanos." Uma porta-voz da produtora referiu num comunicado que "A ópera aborda também outros temas e personagens de cor, incluindo a coragem do tio de Till, Mose Wright, o fracasso do sistema judicial e o dilema do professor branco que representa os conceitos de silêncio branco e supremacia branca."

Olhamos para as comunidades como se fossem homogéneas, como se todas as pessoas brancas ou negras ou outras pensassem, sentissem e se posicionassem da mesma forma face a diversos temas e dilemas. Precisamos de estar abertos a diferentes pontos de vista, só assim teremos a oportunidade de conhecer e entender melhor as nuances que estes assuntos e experiências de vida apresentam. Continuo a pensar que isto não vai acontecer se procurarmos controlar as narrativas, definir sobre o que é que um artista ou qualquer outra pessoa pode ou não falar e, pior, se considerarmos legítimo impedir o acesso a uma obra ou pedir a sua destruição.


Sugestões de leitura:

Siddhartha Mitter, “What Does It Mean to Be Black and Look at This?” A Scholar Reflects on the Dana Schutz Controversy, in Hyperallergic, 24.3.2017

Coco Fusco, Censorship, not the painting, must go: On Dana Schutz's image of Emmet Till, in Hyperallergic, 27.3.2017

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