Monday, 16 October 2023

A política e a música clássica

O logo da campanha pelo "Sim" no Voice Referendum.

Ler que a Playlist da Oakland Symphony vai receber e celebrar a Angela Davies deu-me alguma esperança esta manhã, no meio das terríveis notícias que temos vindo a acompanhar na última semana. "Ativista. Educadora. Consciência de uma geração. Ela vai partilhar a música que inspirou a sua coragem e o seu compromisso”, lê-se no website da orquestra. “Coragem” e “compromisso” tornaram-se atributos essenciais para as organizações culturais dos EUA, tendo em conta os desafios enfrentados pela democracia naquele país. Há poucos dias, senti-me verdadeiramente deprimida ao ler sobre a recusa de uma estação de rádio da Carolina do Norte a transmitir óperas da Metropolitan Opera que considerava “inapropriadas”. A recusa, li num artigo, “ocorre num momento em que a Metropolitan Opera está ansiosa por mostrar o seu compromisso com óperas e obras escritas recentemente, fora do cânone tradicional da música escrita por homens brancos. Três das óperas que a WCPE considera rejeitar na temporada 2023-24 foram escritas por compositores negros ou mexicanos. Em Abril passado, a WCPE também se recusou a transmitir outra ópera produzida pelo Met, escrita por um compositor negro que incluía temas LGBTQ”. Considerando os esforços da Met para ir além do “cânone” e tornar-se mais relevante para mais cidadãos nos EUA, a gerente da estação de rádio expressou profundas preocupações morais, tais como “E se uma criança ouvir isto? Quando eu estiver diante de Jesus Cristo no Dia do Juízo, o que direi?”. No dia 5 de Outubro, chegou a notícia de que a estação de rádio tinha revertido a sua decisão devido a críticas generalizadas.

Isto não tem apenas a ver com os EUA. Cada país, cada sociedade, enfrenta os seus próprios desafios e as organizações culturais muitas vezes não conseguem compreender o seu papel em lidar com eles ou optam por permanecer à margem.

Li recentemente sobre a forma curiosa como uma orquestra australiana escolheu lidar com o “Voice Referendum”, que foi realizado no dia 14 de Outubro. O referendo em si foi bastante intrigante para mim: perguntava-se aos eleitores se aprovavam uma mudança na Constituição australiana que reconhecesse os indígenas australianos através da criação de um órgão (chamado “Voz dos Aborígenes e dos Habitantes das Ilhas do Estreito de Torres) para representar esta população perante o Parlamento e o Governo Executivo da Commonwealth. Uma vez reconhecida a invisibilidade e a contínua discriminação das populações indígenas, como é possível que o direito da sua voz ser ouvida fosse uma questão para um referendo e uma mudança na constituição? De qualquer forma, a maioria dos australianos votou “Não”.

O artigo que li era relacionado com a liderança cultural e começava com a seguinte história: Quando a data do referendo foi anunciada, a Orquestra Sinfónica da Tasmânia (TSO) cancelou discretamente o seu concerto Last Night of the Proms, agendado para a noite anterior. Na altura, a orquestra informou apenas quem tinha comprado bilhete, individualmente. Semanas depois, num comunicado para a imprensa, a TSO disse que o motivo do cancelamento foi que “prosseguir com uma celebração musical da pompa britânica nessa noite pareceu insensível, dada a proximidade com o referendo do Voice no dia seguinte”.

“Porque é que a orquestra não fez nenhuma declaração significativa a propósito do cancelamento?”, questionou Samuel Cairnduff, autor do artigo e doutorando em liderança cultural. Na minha opinião, há um sinal claro de sensibilidade para com as questões sociais que afectam parte da população do país e que preocupam muitos outros cidadãos. E também parece existir consciência sobre as formas como a população é afectada. Ao mesmo tempo, a TSO seguiu os passos frequentemente seguidos pela maioria, talvez, das organizações culturais em todo o mundo: optou por não tomar uma posição clara sobre uma questão que divide os cidadãos australianos; optou por não criar um espaço tão necessário para debater este assunto; escolheu ficar à margem. Não se sentiriam confortáveis em realizar o programa inicialmente planeado (e isso significa alguma coisa), mas desejaram permanecer o mais discretos - ou deveria dizer “neutros”? – possível. É isto que se pode esperar de uma organização que pretende servir o sector como líder cultural (pág. 7 do seu documento estratégico)?

O mundo da música clássica é tão político como qualquer outro. Ao ler sobre este cancelamento, lembrei-me da Orquestra Filarmónica de Cardiff que alterou um concerto com obras de Tchaikovsky, previsto para 18 de Março de 2022. Embora muitos tenham visto isso como um “cancelamento” do compositor russo, a orquestra esclareceu que “Havia também duas peças com temáticas militares - Marche Slave e 1812 Overture - que consideramos particularmente inadequadas neste momento.” (além de mencionar que um membro da orquestra tinha família na Ucrânia e que também foram informados na altura de que o título “Pequeno Russo” da Sinfonia nº 2 era considerado ofensivo para os ucranianos). É uma surpresa que as peças musicais não sejam apenas “um conjunto de notas”, mas que carreguem significado e uma mensagem? As orquestras e os músicos não deveriam partilhar isto com o seu público e não só? Será a música “apenas” música – tal como Gustavo Dudamel afirmou uma vez que era “apenas” um músico, quando se esperava que tomasse uma posição em relação ao tratamento dado pelo regime venezuelano aos manifestantes pacíficos em 2014? (veja mais neste blog)

Não somos “apenas”… E o que criamos ou produzimos também não é “apenas”. Tomamos posição, tanto com o que dizemos como com o que não dizemos; tanto com o que fazemos como com o que não fazemos.

Em 2014, escrevi neste blog sobre a dimensão educativa do trabalho dos profissionais da cultura. Nesse texto mencionava um protesto ocorrido durante o intervalo do “Requiem” de Brahms pela Orquestra Sinfónica de Saint Louis. Os manifestantes levantaram-se e cantaram “Requiem for Mike Brown” (o jovem negro desarmado que foi baleado por um polícia em Ferguson, um subúrbio de St.Louis). “Ninguém interrompeu os manifestantes, ninguém chamou a polícia”, escrevi na altura, “Talvez porque o que aconteceu fez sentido, naquele local, naquela hora, naquele contexto específico”. Nesse mesmo texto, referia-me também à controversa decisão do Tricycle Theatre de não acolher o Festival de Cinema Judáico do Reino Unido, pela primeira vez em oito anos. A razão era que o festival recebia apoio da Embaixada de Israel em Londres e, dado o ataque em curso à Gaza na altura, não parecia apropriado aceitar apoio financeiro de uma agência governamental – um duro lembrete para todos nós que actualmente comentamos sobre o conflito Israel-Hamas que o ataque à Gaza e o assassinato de civis palestinianos não é algo novo, não é uma resposta ao massacre levado a cabo pelo Hamas a 7 de Outubro. Talvez, como profissionais da cultura, devêssemos considerar a nossa responsabilidade por esta continuada falta de humanidade – não apenas na Palestina ou na Austrália, mas também no nosso bairro. Ou ainda estaremos a perguntar o que temos a ver com isso?

Viver em sociedade não é (nunca foi) uma tarefa fácil. Aprender como fazer, se esforçar para fazer, exige esforço e tempo. Mas, como escrevi recentemente num post sobre política e cultura, “a vida política, a vida organizada numa polis (cidade), é uma condição para a nossa sobrevivência”. Uma sociedade que se preocupa é uma sociedade que tem uma oportunidade de prosperar e ser feliz. A minha sensação nos últimos meses é que os profissionais da cultura parecem estar cansados, até mesmo impacientes, em relação ao que muitos chamam de questões sociais “difíceis” ou “fracturantes” ou mesmo “controversas”. Acredito que gostaríamos que as coisas fossem “mais fáceis”, menos exigentes, preferimos continuar com o nosso “business as usual” em vez de investirmos tempo para ouvir, para aprender, para compreender as “nuances”, bom… para nos preocuparmos, mesmo. As organizações culturais para as quais todos trabalhamos serão tão irrelevantes para as pessoas quanto a nossa falta de interesse em nos envolvermos.

 

Mais neste blog:

O que é a política e para que serve a cultura?

A dimensão educativa

Ser ‘apenas’

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