O logo da campanha pelo "Sim" no Voice Referendum. |
Ler que a Playlist da Oakland Symphony vai receber e celebrar a Angela Davies deu-me alguma esperança esta manhã, no meio das terríveis notícias que temos vindo a acompanhar na última semana. "Ativista. Educadora. Consciência de uma geração. Ela vai partilhar a música que inspirou a sua coragem e o seu compromisso”, lê-se no website da orquestra. “Coragem” e “compromisso” tornaram-se atributos essenciais para as organizações culturais dos EUA, tendo em conta os desafios enfrentados pela democracia naquele país. Há poucos dias, senti-me verdadeiramente deprimida ao ler sobre a recusa de uma estação de rádio da Carolina do Norte a transmitir óperas da Metropolitan Opera que considerava “inapropriadas”. A recusa, li num artigo, “ocorre num momento em que a Metropolitan Opera está ansiosa por mostrar o seu compromisso com óperas e obras escritas recentemente, fora do cânone tradicional da música escrita por homens brancos. Três das óperas que a WCPE considera rejeitar na temporada 2023-24 foram escritas por compositores negros ou mexicanos. Em Abril passado, a WCPE também se recusou a transmitir outra ópera produzida pelo Met, escrita por um compositor negro que incluía temas LGBTQ”. Considerando os esforços da Met para ir além do “cânone” e tornar-se mais relevante para mais cidadãos nos EUA, a gerente da estação de rádio expressou profundas preocupações morais, tais como “E se uma criança ouvir isto? Quando eu estiver diante de Jesus Cristo no Dia do Juízo, o que direi?”. No dia 5 de Outubro, chegou a notícia de que a estação de rádio tinha revertido a sua decisão devido a críticas generalizadas.
Isto não tem apenas a ver com os EUA. Cada país, cada
sociedade, enfrenta os seus próprios desafios e as organizações culturais
muitas vezes não conseguem compreender o seu papel em lidar com eles ou optam
por permanecer à margem.
Li recentemente sobre a forma curiosa como uma orquestra
australiana escolheu lidar com o “Voice Referendum”, que foi realizado no dia
14 de Outubro. O referendo em si foi bastante intrigante para mim: perguntava-se
aos eleitores se aprovavam uma mudança na Constituição australiana que
reconhecesse os indígenas australianos através da criação de um órgão (chamado “Voz
dos Aborígenes e dos Habitantes das Ilhas do Estreito de Torres) para
representar esta população perante o Parlamento e o Governo Executivo da
Commonwealth. Uma vez reconhecida a invisibilidade e a
contínua discriminação das populações indígenas, como
é possível que o direito da sua voz ser ouvida fosse uma questão para um
referendo e uma mudança na constituição? De qualquer forma, a maioria dos australianos
votou “Não”.
O artigo que li
era
relacionado com a liderança cultural e começava com a seguinte história: Quando
a data do referendo foi anunciada, a Orquestra Sinfónica da Tasmânia (TSO)
cancelou discretamente o seu concerto Last Night of the Proms, agendado para a
noite anterior. Na altura, a orquestra informou apenas quem tinha comprado
bilhete, individualmente. Semanas depois, num comunicado para a imprensa, a TSO
disse que o motivo do cancelamento foi que “prosseguir com uma celebração
musical da pompa britânica nessa noite pareceu insensível, dada a proximidade
com o referendo do Voice no dia seguinte”.
“Porque é que a orquestra não fez nenhuma declaração
significativa a propósito do cancelamento?”, questionou Samuel Cairnduff, autor
do artigo e doutorando em liderança cultural. Na minha opinião, há um sinal
claro de sensibilidade para com as questões sociais que afectam parte da
população do país e que preocupam muitos outros cidadãos. E também parece
existir consciência sobre as formas como a população é afectada. Ao mesmo
tempo, a TSO seguiu os passos frequentemente seguidos pela maioria, talvez, das
organizações culturais em todo o mundo: optou por não tomar uma posição clara
sobre uma questão que divide os cidadãos australianos; optou por não criar um
espaço tão necessário para debater este assunto; escolheu ficar à margem. Não
se sentiriam confortáveis em realizar o programa inicialmente planeado (e isso
significa alguma coisa), mas desejaram permanecer o mais discretos - ou deveria
dizer “neutros”? – possível. É isto que se pode esperar de uma organização que
pretende servir o sector como líder cultural (pág. 7 do seu documento estratégico)?
O mundo da música clássica é tão político como qualquer
outro. Ao ler sobre este cancelamento, lembrei-me da Orquestra Filarmónica de
Cardiff que alterou um concerto com obras de Tchaikovsky, previsto para 18 de Março
de 2022. Embora muitos tenham visto isso como um “cancelamento” do compositor
russo, a orquestra
esclareceu que “Havia também duas peças com temáticas militares - Marche
Slave e 1812 Overture - que consideramos particularmente inadequadas neste
momento.” (além de mencionar que um membro da orquestra tinha família na
Ucrânia e que também foram informados na altura de que o título “Pequeno Russo”
da Sinfonia nº 2 era considerado ofensivo para os ucranianos). É uma surpresa
que as peças musicais não sejam apenas “um conjunto de notas”, mas que
carreguem significado e uma mensagem? As orquestras e os músicos não deveriam
partilhar isto com o seu público e não só? Será a música “apenas” música – tal
como Gustavo Dudamel afirmou uma vez que era “apenas” um músico, quando se
esperava que tomasse uma posição em relação ao tratamento dado pelo regime
venezuelano aos manifestantes pacíficos em 2014? (veja
mais neste blog)
Não somos “apenas”… E o que criamos ou produzimos também
não é “apenas”. Tomamos posição, tanto com o que dizemos como com o que não
dizemos; tanto com o que fazemos como com o que não fazemos.
Em 2014, escrevi
neste blog sobre a dimensão educativa do trabalho dos profissionais da
cultura. Nesse texto mencionava um protesto ocorrido durante o intervalo do
“Requiem” de Brahms pela Orquestra Sinfónica de Saint Louis. Os manifestantes
levantaram-se e cantaram “Requiem for Mike Brown” (o jovem negro desarmado que
foi baleado por um polícia em Ferguson, um subúrbio de St.Louis). “Ninguém
interrompeu os manifestantes, ninguém chamou a polícia”, escrevi na altura,
“Talvez porque o que aconteceu fez sentido, naquele local, naquela hora, naquele
contexto específico”. Nesse mesmo texto, referia-me também à controversa
decisão do Tricycle Theatre de não acolher o Festival de Cinema Judáico do
Reino Unido, pela primeira vez em oito anos. A razão era que o festival recebia
apoio da Embaixada de Israel em Londres e, dado o ataque em curso à Gaza na
altura, não parecia apropriado aceitar apoio financeiro de uma agência
governamental – um duro lembrete para todos nós que actualmente comentamos
sobre o conflito Israel-Hamas que o ataque à Gaza e o assassinato de civis
palestinianos não é algo novo, não é uma resposta ao massacre levado a cabo
pelo Hamas a 7 de Outubro. Talvez, como profissionais da cultura, devêssemos
considerar a nossa responsabilidade por esta continuada falta de humanidade –
não apenas na Palestina ou na Austrália, mas também no nosso bairro. Ou ainda
estaremos a perguntar o que temos a ver com isso?
Viver em sociedade não é (nunca foi) uma tarefa fácil.
Aprender como fazer, se esforçar para fazer, exige esforço e tempo. Mas, como
escrevi recentemente num post sobre política e cultura, “a vida política, a
vida organizada numa polis (cidade), é uma condição para a nossa
sobrevivência”. Uma sociedade que se preocupa é uma sociedade que tem uma oportunidade
de prosperar e ser feliz. A minha sensação nos últimos meses é que os
profissionais da cultura parecem estar cansados, até mesmo impacientes, em
relação ao que muitos chamam de questões sociais “difíceis” ou “fracturantes”
ou mesmo “controversas”. Acredito que gostaríamos que as coisas fossem “mais
fáceis”, menos exigentes, preferimos continuar com o nosso “business as usual”
em vez de investirmos tempo para ouvir, para aprender, para compreender as
“nuances”, bom… para nos preocuparmos, mesmo. As organizações culturais para as
quais todos trabalhamos serão tão irrelevantes para as pessoas quanto a nossa
falta de interesse em nos envolvermos.
Mais neste blog:
No comments:
Post a Comment