Monday, 25 September 2023

O que é a política e para que serve a cultura?

A onda de calor em Chicago em 1995
(imagem retirada da apresentação de Liva Kreislere)

No início de Agosto, tive a oportunidade de participar numa escola de verão organizada pelo Latvian Centre for Contemporary Art e dedicada ao tema “Care of Earth. Care of People” (Cuidar da terra. Cuidar das pessoas). Pouco antes de partir, tive a oportunidade de assistir a uma parte da apresentação da jovem arquitecta e urbanista, Liva Kreislere, sobre planeamento cultural. O planeamento cultural é uma abordagem ao desenvolvimento da cidade que olha para a cidade como um fenómeno cultural e concentra-se fortemente na população local, nos agentes culturais locais que são partes interessadas e no envolvimento municipal. É um método onde os artistas e as instituições culturais tomam cada vez mais uma posição central, com um contributo comprovado para o bem-estar social, bem como para a melhoria do envolvimento cívico dos cidadãos. “A cultura”, disse Liva, “está intimamente ligada à saúde, à economia e à política”. Um dos exemplos que mencionou foi o da onda de calor mortal, em 1995, em Chicago. Segundo um estudo, houve maior taxa de sobrevivência entre a população idosa em bairros com fortes ligações entre os seus membros. Comunidades estreitamente unidas cuidaram melhor dos seus idosos, especialmente vulneráveis dadas as circunstâncias.

“Perdemos o sentido de cidade e de cidadania”, disse Liva. O que me lembrou do filósofo grego Christos Yannaras e do que escreveu no seu livro “Sobre o significado da política” sobre a origem do fenómeno político, da coexistência organizada dos seres humanos. Segundo o mito grego, as pessoas viviam dispersas, por isso eram presas fáceis para os animais selvagens. Embora tivessem desenvolvido artes criativas, que garantiam a sua alimentação, não tinham desenvolvido a arte política. Assim, os deuses ofereceram-lhes a vida política, a vida organizada numa polis (cidade), como condição para a sua sobrevivência. Isso não é algo natural do ser humano, não está na sua natureza. É um presente dos deuses, uma conquista de libertação da natureza humana.

Estas referências misturavam-se na minha cabeça, voltavam constantemente, fazendo-me questionar o que entendemos por “cultura” e qual o seu papel na construção de uma sociedade que se preocupa com a terra e com as pessoas. Passei as minhas férias de verão na minha cidade natal, na Grécia. O país testemunhou este ano graves desastres naturais / provocados pelas pessoas; viu a imagem de um abutre procurando o seu ninho na floresta ardida de Evros; soube da morte de um passageiro atrasado que foi atirado ao mar pela tripulação do ferry e ouviu um ministro equiparar a dor desta morte à dor das famílias dos responsáveis pela mesma; viu os preços da água engarrafada subirem à medida que as pessoas atingidas pelas cheias na Tessália foram privadas (ainda estão privadas) de água corrente. No mês de Setembro, os aniversários de dois assassinato intensificaram o meu questionamento em relação à cultura desta nação: o do rapper Pavlos Fyssas pela organização criminosa fascista Aurora Dourada (outrora um partido eleito no parlamento grego) e o do activista queer Zak Kostopoulos no centro de Atenas e nas mãos de cidadãos “comuns”, com a polícia a vigiar.

Quando o Arts Council England anunciou a sua estratégia cultural para a década, Let’s Create, em 2020, a questão subjacente era “Quem queremos ser em 2030?” Dizia: “Até 2030, queremos que Inglaterra seja um país onde a criatividade de cada um de nós seja valorizada e tenha a oportunidade de florescer. Um país onde cada um de nós tenha acesso a uma gama notável de experiências culturais de alta qualidade. (…) Até 2030, imaginamos um país transformado pela sua cultura e, ao mesmo tempo, em constante transformação: uma nação verdadeiramente criativa, na qual cada um de nós pode desempenhar um papel.” Conhecem algum outro país que olhe para a sua cultura como algo mais do que uma rede de espaços culturais formais e talvez também o conjunto de pessoas que trabalham no sector?

A mãe de Zak Kostopoulos lembrou-nos há poucos dias que “A cultura e a superioridade de uma sociedade são vistas na forma como protege e apoia os mais fracos, os pobres, as pessoas com deficiência, a mulher, a criança, o imigrante, os idosos, os doentes e outros. Na Grécia vimos os pobres perderem as suas casas, as pessoas com deficiência atiradas ao mar, a mulher assassinada pelo marido ou companheiro, a criança violada, o imigrante afundado com o barco, a pessoa transgénero esfaqueada.” (a sua carta aberta para quem lê grego)

O que dizer à mãe do Zak quando na Grécia vimos também um partido conduzido por um dos criminosos presos da Aurora Dourada, que surge três semanas antes das últimas eleições legislativas, ganhar 11 lugares no parlamento? Em que é que nos tornamos? Quem queremos ser? O que é a política e para que serve a cultura?

 

Leituras sugeridas por Liva Kreislere

Lia Ghilardi (2015), This is our city: Place-making through cultural planning

Franco Bianchini (2014), Cultural planning and artist-led urban transformation

Ambas disponíveis aqui

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Abutre à procura do seu ninho na floresta ardida (Foto: Christos Kalogeros/Facebook)


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