Este ano, tive a oportunidade
de passar três dias no FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos.
Assisti, entre outras coisas, ao lançamento de “Voltas e Reviravoltas - A Cidadania”, de Ana Maria Magalhães
e Isabel Alçada, com ilustrações de Mantraste. Este é o segundo de 12 livros da
colecção infantojuvenil “Missão: Democracia”,
uma iniciativa da Assembleia da
República, com curadoria da Dora Batalim SottoMayor.
Nesse evento, Isabel Alçada disse que, para os jovens hoje, a democracia é tão natural como abrir a torneira e sair água. Apontei esta afirmação no meu caderno. Criou um desconforto em mim naquele momento e, posteriormente, voltei a ela em diversas ocasiões. Porque, do ponto de vista empírico, não vejo nada disso à minha volta. Porque o oposto da repressão política não é necessariamente uma democracia de qualidade, uma democracia saudável, uma democracia tão natural como a água que sai da torneira.
O que vejo, em primeiro
lugar, à minha volta é adultos. Adultos que se auto-censuram para não desagradarem
aos seus superiores ou pessoas do seu ciclo. Vejo adultos, que são os tais “superiores”
à espera de obediência e submissão, a combater activamente o espírito crítico. Adultos
que não se incomodam, não sentem que lhes diz respeito a discriminação vivida
diariamente por outras pessoas, porque não a sentem na própria pele. Adultos
que educam os mais novos recomendando auto-censura, submissão, indiferença e… “moderação”.
Foi esta a palavra que mais ouvi a propósito das jovens pessoas activistas pelo
clima. Duvido, por isso, que a democracia seja tão natural como abrir a torneira
e sair água. Duvido também que a maioria entre nós – adultos e,
consequentemente, não adultos também - tenha consciência das exigências que
traz para os cidadãos uma democracia de qualidade, uma democracia saudável.
Isto é o que me diz o meu
conhecimento empírico. Mas existem dados mais científicos também. Li recentemente
um artigo intitulado “Democracy in trouble, stagnant at best, and
declining in many places” (Democracia em apuros, estagnada, na
melhor das hipóteses, e em declínio em muitos lugares). Apresentava o mais
recente relatório do think tank sueco IDEA
- International Institute for Democracy and Electoral Assistance. IDEA baseia os
seus índices em mais de 100 variáveis relacionadas com questões políticas,
incluindo representação, direitos, Estado de direito e participação. O que nos
diz o relatório de 2023?
- Que 85 dos 173 países
pesquisados “sofreram um declínio em pelo menos um indicador-chave do
desempenho democrático nos últimos cinco anos”.
- Que, pelo sexto ano
consecutivo, metade dos países do mundo retrocedeu em indicadores como
liberdade de expressão e participação política.
- Que a queda de seis anos é o período mais longo de retrocesso democrático desde que os registos começaram em 1975.
Estes resultados não são uma
surpresa. E, apesar de a Europa ter sido nomeada como a região com melhor
desempenho em termos democráticos, foram registados retrocessos tanto em
democracias mais jovens (p.e. a Hungria), como noutras, mais estabelecidas (p.e.
o Reino Unido).
No final de Outubro, tive o
privilégio de assistir ao encontro em Lisboa do projecto europeu Future of Europe for Public Libraries.
O seu objectivo é construir em toda a Europa uma rede de bibliotecas públicas, as
Lighthouse Libraries (Bibliotecas Faróis), para participarem nas políticas e
iniciativas da União Europeia sobre os temas digital, sustentabilidade e
democracia. No início do primeiro dia, ouvimos a directora da magnífica
biblioteca de Aarhus (Dinamarca), Marie Østergaard, falar sobre os programas públicos da sua
biblioteca, que olham para a participação pública como infraestrutura
democrática. O seu colega Asmund Bertelsen apresentou-nos o programa “Democracy Fitness”,
que pretende exercitar os “músculos” da democracia: mobilização, compromisso,
escuta activa, empatia, desacordo, activismo, confiança verbal, curiosidade,
coragem, opinião. O programa reconhece que precisamos de treinar diariamente as
nossas capacidades para viver em democracia – lembrando Martha Nussbaum, que no
seu livro “Cultivando a humanidade” escreve que “a liberdade de pensamento e a
dignidade humana são capacidades a serem desenvolvidas, a fim de produzir
cidadãos livres, cidadãos que são livres não por causa da riqueza ou do
nascimento, mas porque podem chamar as suas mentes de suas próprias mentes.”
Portanto, a democracia não é tão natural, como gostaríamos, para a natureza humana.
É preciso treinar para saber defender e protegê-la.
Da apresentação de Asmund Bertelsen.
Na sua apresentação, Marie Østergaard
explicou que dois dos objectivos principais dos programas públicos da
biblioteca de Aarhus é cultivar a confiança no sistema e a auto-confiança
democrática. Ou seja, querem que as pessoas mais jovens possam perceber que a
sua opinião conta e que valerá a pena participarem, envolverem-se. Algo que me fez
pensar também no que muitos jovens estarão a ver à sua volta. Não faltam os
adultos com opinião e com auto-confiança, mas, para que é que isto serve perante
a arrogância e a falta de sentido democrático de muitos políticos? Temos
políticos demasiado confortáveis no seu poder, habituados à subserviência (ou a
exigi-la), convictos que os cidadãos existem para os servir e não o contrário.
Não poucas vezes, esta realidade faz as pessoas questionar se vale a pena
votar, se vale a pena participar, se isto alguma vez vai mudar.
Pensei novamente nestes questionamentos quando li o último
parágrafo no artigo de hoje da Alexandra Lucas Coelho, sobre a situação em
Israel e nos territórios palestinianos ocupados. É com esse seu parágrafo que
concluirei o meu texto:
“Israel tem de ser isolado como Estado de
apartheid, investigado por crimes de guerra, à luz do direito internacional e
humanitário. Sujeito a sanções económicas e políticas, além do boicote dos
cidadãos. Não ficarmos impotentes é também questionar quem governa: António
Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, a Assembleia da República, a União Europeia. As
pessoas estão a protestar como podem. E quem as representa? Provem que a
democracia existe, que ainda vale a pena votar, que os direitos humanos são de
toda a gente. Estejam à altura da vida que chega de Gaza, e a cada minuto não
sabemos se continua.”
Estejamos à altura…
Mais leituras:
Liberdade
para quê? Cultura para quê?
Agradecimentos
CRID –
Centro de Reabilitação e Integração de Deficientes, Instituto Politécnico de
Leiria
DGLAB –
Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas
Município de Óbidos
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