Conferência da RTCP em Portalegre, 7.11.2023 |
Os encontros profissionais são, cada vez mais, um momento precioso para quem consegue dar a si próprio ou consegue reclamar junto de chefias o tempo para participar. Com cada vez mais profissionais da cultura a falar abertamente de doença mental, de esgotamento, de depressão, de ritmos que não fazem sentido, estes momentos de encontro - em que podemos estar juntos, abraçar-nos, olharmo-nos nos olhos, sorrirmos, conversarmos – são mais que necessários, são urgentes.
Mas, mesmo reconhecendo a importância disto, vários entre
nós saímos da conferência da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP) em
Portalegre lamentando que os nossos encontros profissionais não possam ser algo
mais. Senti, e ouvi outros colegas a afirmar, que nos mantemos sempre na superfície;
juntamo-nos para ouvir a descrição de projectos; parece que começamos sempre do
início, do básico; não aprofundamos. Não basta descrever um projecto, como é
óbvio. Porque cada projecto traz problemas, dúvidas, surpresas, desafios
inesperados; exige de nós sensibilidade, abertura para aprender, capacidade de
adaptação, criatividade, honestidade. Algumas destas palavras foram ouvidas num
ou outro encontro a que assisti (não assisti a todos), mas não passámos disto,
da constatação. Não se disse algo mais.
Também é claro que nem tudo foi assim. E escrevo hoje para partilhar
aquilo que foi para mim o momento alto da conferência da RTCP: a presença em
palco da actriz e encenadora Zia Soares e da vereadora da cultura Manuela Ralha.
A Zia foi apresentada como a primeira directora artística
negra de uma companhia de teatro em Portugal. Pois, daquelas que ela própria fundou… (Praga e Teatro
Griot). Parece irónico fazer essa afirmação. Não perdeu a oportunidade de
lembrar (mais uma vez) que é convidada para estes encontros como um “token”. Quantas
vezes ainda terá de o dizer para começarmos a questionar-nos a nós próprios das
ausências na sala, no palco e na plateia? Para agirmos sobre elas? Também partilhou
connosco que o Teatro Griot, que conta com 14 anos de vida, deve ter sido
convidada para apresentar o seu trabalho em 2-3 teatros dos mais de noventa que
fazem parte da RTCP. Questionou quantos desses teatros terão uma pessoa negra
na liderança (ou na equipa?). E mais para o final da sessão, olhou para a sala
e perguntou: “Quais são as pessoas não negras nesta sala?”. Os presentes
sentiram-se confusos, indecisos. Devo ter visto uns 5 braços levantados. A
pergunta que nos é normalmente colocada é “Quantas pessoas negras na sala?”.
Habituámo-nos a ouvir a pergunta, ainda não estamos a agir sobre ela. Mas a Zia
trocou-nos as voltas: “Quais são as pessoas não negras nesta sala?”. Todas nós,
excepto a Zia, naquele lugar da “violência de ser o único”, de que fala a
artista Grada Kilomba.
“Antes de falarmos em participação temos de falar em
acessibilidade.” Foi assim que Manuela Ralha iniciou a sua intervenção. De manhã,
quando entrei no auditório, encontrei-a na última fila. Não tinha opção, tinha
de lá ficar (talvez alguém esteja a pensar que deveríamos estar satisfeitos,
porque noutros teatros teria ficado atrás da última fila, o único espaço a que
teria acesso – não, não estamos satisfeitos, não devemos estar). Manuela
continuou: “Todos nós falamos em programar, em envolver, em participação, mas
esquecemos que há uma franja da população que começa logo a ser barrada na
entrada, que não consegue participar, não consegue assistir, não consegue sequer
ser público.” Falou daquilo que é hoje do conhecimento de todos, que, apesar da
acessibilidade ser um critério para a credenciação na RTCP, a maioria dos
teatros não o é. Um conhecimento sobre o qual, mais uma vez, não agimos.
Estava “escondida”, “protegida”, no meio de muitas pessoas
naquele auditório. Mas as intervenções dessas duas mulheres fizeram-me sentir
penosamente consciente da minha presença. Porque, para que serve o conhecimento
se não se torna consciência? Para que serve o conhecimento se, regressando aos
nossos lugares de trabalho, reassumimos uma rotina que não questiona, não
incomoda, permite ignorar, permite fingir que não sabemos, escondidos e
protegidos como estamos no nosso dia-a-dia. Cheios de justificações.
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