Fachada do Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 2020-2021
Dois recentes programas na RTP com foco na cultura, assim como inúmeros encontros com profissionais da área ao longo do ano e nos últimos anos, intensificam a preocupação em relação ao como este sector é entendido e gerido, que visão projecta e como a pratica.
O programa de 23 de Novembro da “Sociedade
Civil” propôs reflectir sobre “Cultura no Interior”. Convidou para
esta conversa o poeta, diplomata e ex-Ministro da Cultura Luís Filipe Castro
Mendes; o pianista e diplomata Adriano Jordão; e Tiago Nunes, Presidente da
associação CulturXis e director do Festival Internacional dos Açores. Ao longo
do programa ouvimos ainda Eduarda Freitas (da agência criativa Inquieta) e
Cláudio Henriques (do colectivo Cultura Alentejo).
O programa “É ou não é” de 12 de Dezembro
pretendeu questionar se “É possível fazer mais pela cultura?”. As pessoas convidadas foram o actual Ministro da Cultura, Pedro
Adão e Silva; o director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim;
a escritora Lídia Jorge; o músico e escritor Kalaf Epalanga; e o dono da
Everything is New, Álvaro Covões. A museóloga Simonetta Luz Afonso interveio à
distância.
Foi penoso para mim acompanhar ambas as
conversas. Senti que ficaram alheias ao que me parece ser uma realidade que
precisa urgentemente de ser cuidada. Menciono os nomes com respeito pelo
percurso profissional de cada uma das pessoas convidadas, mas também porque é
preciso questionar se a RTP, televisão pública, não poderia ter feito um
esforço maior em termos de trabalho de casa, de forma a promover estes debates
com agentes que pudessem mostrar a diversidade do sector e da actuação de
diferentes pessoas, em diferentes territórios deste país tão pequeno e tão
diverso. Ao mesmo tempo, podemos também questionar: e nós, profissionais do
sector, fazemos o nosso trabalho de casa?
Há algumas confusões muito problemáticas, que persistem no sector cultural e que a composição de certos painéis de discussão ajuda a perpetuá-las:
- cultura e artes
- democratização da cultura e cultura democrática
- programação e calendarização
Quando em 2022 foi apresentado o estudo da Fundação Gulbenkian sobre as práticas culturais dos
portugueses - e perante as reacções e
interpretações do costume, que desvalorizam e culpam os portugueses, e evitam
questionar o próprio sector – escrevi com alguma ironia um texto intitulado Os hábitos culturais… das organizações culturais portuguesas. Lembrei-me novamente desse texto ao acompanhar a conferência Impacto
social: as pessoas no centro das organizações culturais (aqui, aqui e aqui) e a apresentação do ambicioso
projecto CISOC
– Compromisso de Impacto Social das Organizações Culturais, uma iniciativa do Plano Nacional das Artes.
Na introdução da publicação do CISOC, o comissário do Plano Nacional das Artes, Paulo Pires do
Vale, afirma que “As instituições culturais
não são neutras. Pela sua missão, por intervirem no espaço público, no modo
como se relacionam com as comunidades, nas decisões que tomam, como e o que
programam, na forma como trabalham a produção, a mediação e o acesso”.
Questiona ainda: “Como [é que as organizações culturais] ajudam a emancipar os
cidadãos e a que participem mais ativamente na vida coletiva? Como promovem a
saúde da democracia?”
Não discordo nem da afirmação nem das questões colocadas. No entanto, a
minha tendência, mais uma vez, é convidar os profissionais do sector a uma
introspecção: Quais as organizações culturais portuguesas que têm uma missão
definida e publicamente conhecida? Quais as organizações culturais que
realmente intervêm no espaço público e que tipo de intervenção é essa? Como
podem esperar emancipar os cidadãos e encorajá-los a participar activamente na
vida colectiva, se essas mesmas organizações culturais não participam, não se
posicionam e continuam a actuar, em grande parte, para servir apenas os
interesses (intelectuais, científicos, artísticos e culturais) de quem as
dirige e quem nelas trabalha? O que significa programar? Porque é que grande
parte das pessoas que desempenha esta função em organizações culturais públicas
não consegue imaginar algo diferente do que “calendarizar um pouco de tudo”
(chamam-lhe “programação ecléctica”)? Qual a visão que o sector tem do papel da
cultura na construção de um futuro e de uma sociedade portuguesa melhor? Num
encontro em Abril na Biblioteca da Universidade de Coimbra, a propósito dos 50
anos do 25 de Abril, questionava “Liberdade para quê? Cultura para quê?”.
Na conferência acima referida houve alguns questionamentos muito
pertinentes, aos quais deveria ser dado espaço para serem melhor desenvolvidos:
como quando a gestora cultural Maria de Assis Swinnerton questionou até quando
ficaremos pelos diagnósticos, evitando passar para a acção; quando o sociólogo
Manuel Gama questionou a falta de planos estratégicos para a cultura na maioria
dos municípios (e, consequentemente, nas organizações culturais que estes
tutelam) e a existência de 94 indicadores quantitativos no CISOC e apenas 16
qualitativos. Na altura do debate, Marta Silva, do Largo Residências,
questionou até que ponto tinha sido levada em consideração a prática de muitos
anos de diferentes entidades que actuam no terceiro sector (terminologia sociológica
que se refere a todas as iniciativas privadas de utilidade pública com origem
na sociedade civil). E Ana Umbelino, vereadora da Cultura no município de
Torres Vedras, sugeriu pensarmos de que forma organizações de pequena escala,
longe do que entendemos ser as grandes “centralidades” e, muitas vezes, com
níveis de profissionalização incipientes, poderão apropriar-se de um
instrumento como o CISOC, aplica-lo ou reinventá-lo.
Cultura e artes; democratização da cultura e cultura democrática; programação e calendarização: será que entendemos a urgência de esclarecer, primeiro nós próprios que trabalhamos no sector cultural, o significado destes conceitos e o que os torna diferentes? Lídia Jorge - que vê à sua volta uma sociedade em que “os pais vêem futebol e as mães lêem revistas de culinária” (!)] - dizia no debate da RTP que há 20 anos que estamos a discutir as mesmas coisas. Podemos, à vontade, passar mais 20 a fazê-lo, enquanto o país caminha para um extremo que promete “segurança” e “justiça” aos negligenciados. É preciso quebrarmos ciclos viciosos, pormo-nos em causa, construirmos uma nova visão em relação ao que fazemos e porquê, posicionarmo-nos de outra forma perante a sociedade. É preciso honestidade intelectual e coragem. Somos capazes de dar este passo em frente?
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