Tuesday 26 December 2023

Desejamos o futuro (ainda)

Fachada do Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 2020-2021

Dois recentes programas na RTP com foco na cultura, assim como inúmeros encontros com profissionais da área ao longo do ano e nos últimos anos, intensificam a preocupação em relação ao como este sector é entendido e gerido, que visão projecta e como a pratica.

O programa de 23 de Novembro da “Sociedade Civil” propôs reflectir sobre “Cultura no Interior”. Convidou para esta conversa o poeta, diplomata e ex-Ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes; o pianista e diplomata Adriano Jordão; e Tiago Nunes, Presidente da associação CulturXis e director do Festival Internacional dos Açores. Ao longo do programa ouvimos ainda Eduarda Freitas (da agência criativa Inquieta) e Cláudio Henriques (do colectivo Cultura Alentejo).

O programa “É ou não é” de 12 de Dezembro pretendeu questionar se “É possível fazer mais pela cultura?”. As pessoas convidadas foram o actual Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva; o director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Penim; a escritora Lídia Jorge; o músico e escritor Kalaf Epalanga; e o dono da Everything is New, Álvaro Covões. A museóloga Simonetta Luz Afonso interveio à distância.

Foi penoso para mim acompanhar ambas as conversas. Senti que ficaram alheias ao que me parece ser uma realidade que precisa urgentemente de ser cuidada. Menciono os nomes com respeito pelo percurso profissional de cada uma das pessoas convidadas, mas também porque é preciso questionar se a RTP, televisão pública, não poderia ter feito um esforço maior em termos de trabalho de casa, de forma a promover estes debates com agentes que pudessem mostrar a diversidade do sector e da actuação de diferentes pessoas, em diferentes territórios deste país tão pequeno e tão diverso. Ao mesmo tempo, podemos também questionar: e nós, profissionais do sector, fazemos o nosso trabalho de casa?

Há algumas confusões muito problemáticas, que persistem no sector cultural e que a composição de certos painéis de discussão ajuda a perpetuá-las:

  • cultura e artes
  • democratização da cultura e cultura democrática
  • programação e calendarização

Quando em 2022 foi apresentado o estudo da Fundação Gulbenkian sobre as práticas culturais dos portugueses - e perante as reacções e interpretações do costume, que desvalorizam e culpam os portugueses, e evitam questionar o próprio sector – escrevi com alguma ironia um texto intitulado Os hábitos culturais… das organizações culturais portuguesas. Lembrei-me novamente desse texto ao acompanhar a conferência Impacto social: as pessoas no centro das organizações culturais (aqui, aqui e aqui) e a apresentação do ambicioso projecto CISOC – Compromisso de Impacto Social das Organizações Culturais, uma iniciativa do Plano Nacional das Artes.

Na introdução da publicação do CISOC, o comissário do Plano Nacional das Artes, Paulo Pires do Vale, afirma que “As instituições culturais não são neutras. Pela sua missão, por intervirem no espaço público, no modo como se relacionam com as comunidades, nas decisões que tomam, como e o que programam, na forma como trabalham a produção, a mediação e o acesso”. Questiona ainda: “Como [é que as organizações culturais] ajudam a emancipar os cidadãos e a que participem mais ativamente na vida coletiva? Como promovem a saúde da democracia?”

Não discordo nem da afirmação nem das questões colocadas. No entanto, a minha tendência, mais uma vez, é convidar os profissionais do sector a uma introspecção: Quais as organizações culturais portuguesas que têm uma missão definida e publicamente conhecida? Quais as organizações culturais que realmente intervêm no espaço público e que tipo de intervenção é essa? Como podem esperar emancipar os cidadãos e encorajá-los a participar activamente na vida colectiva, se essas mesmas organizações culturais não participam, não se posicionam e continuam a actuar, em grande parte, para servir apenas os interesses (intelectuais, científicos, artísticos e culturais) de quem as dirige e quem nelas trabalha? O que significa programar? Porque é que grande parte das pessoas que desempenha esta função em organizações culturais públicas não consegue imaginar algo diferente do que “calendarizar um pouco de tudo” (chamam-lhe “programação ecléctica”)? Qual a visão que o sector tem do papel da cultura na construção de um futuro e de uma sociedade portuguesa melhor? Num encontro em Abril na Biblioteca da Universidade de Coimbra, a propósito dos 50 anos do 25 de Abril, questionava “Liberdade para quê? Cultura para quê?”.

Na conferência acima referida houve alguns questionamentos muito pertinentes, aos quais deveria ser dado espaço para serem melhor desenvolvidos: como quando a gestora cultural Maria de Assis Swinnerton questionou até quando ficaremos pelos diagnósticos, evitando passar para a acção; quando o sociólogo Manuel Gama questionou a falta de planos estratégicos para a cultura na maioria dos municípios (e, consequentemente, nas organizações culturais que estes tutelam) e a existência de 94 indicadores quantitativos no CISOC e apenas 16 qualitativos. Na altura do debate, Marta Silva, do Largo Residências, questionou até que ponto tinha sido levada em consideração a prática de muitos anos de diferentes entidades que actuam no terceiro sector (terminologia sociológica que se refere a todas as iniciativas privadas de utilidade pública com origem na sociedade civil). E Ana Umbelino, vereadora da Cultura no município de Torres Vedras, sugeriu pensarmos de que forma organizações de pequena escala, longe do que entendemos ser as grandes “centralidades” e, muitas vezes, com níveis de profissionalização incipientes, poderão apropriar-se de um instrumento como o CISOC, aplica-lo ou reinventá-lo.

Cultura e artes; democratização da cultura e cultura democrática; programação e calendarização: será que entendemos a urgência de esclarecer, primeiro nós próprios que trabalhamos no sector cultural, o significado destes conceitos e o que os torna diferentes? Lídia Jorge - que vê à sua volta uma sociedade em que “os pais vêem futebol e as mães lêem revistas de culinária” (!)] - dizia no debate da RTP que há 20 anos que estamos a discutir as mesmas coisas. Podemos, à vontade, passar mais 20 a fazê-lo, enquanto o país caminha para um extremo que promete “segurança” e “justiça” aos negligenciados. É preciso quebrarmos ciclos viciosos, pormo-nos em causa, construirmos uma nova visão em relação ao que fazemos e porquê, posicionarmo-nos de outra forma perante a sociedade. É preciso honestidade intelectual e coragem. Somos capazes de dar este passo em frente?

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