Imagem retirada de Vatican News (Agence France Presse) |
Em 2014, num post chamado “Em círculos”, escrevia que “Aparentemente, não damos o mesmo valor a todas as vidas humanas e assim, os países europeus representados no Concelho das Nações Unidas para os Direitos Humanos podem abster-se (todos!) na votação para a abertura de um inquérito sobre alegadas violações dos direitos humanos em Gaza; aparentemente, algumas situações do género ‘nunca mais’ são justificadas, e assim os nossos governos podem continuar a apoiar e a vender armas ao governo israelita; aparentemente, cada caso é uma caso e tudo depende, portanto, existem alguns casos do género “nunca mais” em que nós cidadãos comuns podemos reservar o direito de sermos mais ‘equilibrados’ ou neutros.”
Dez anos passaram desde a publicação do meu post. E antes
disso, houve mais algumas décadas de história neste caso de “nunca mais”
relativo à Palestina. Apesar desta longa história de abuso (no mínimo), quando
recentemente, numa conferência internacional, perguntei a uma colega de um museu
do Holocausto nos Balcãs (um com a missão de “nunca mais”, claro) como estavam
a lidar com a situação em Gaza, começou a responder dizendo “Mas o Hamas….”.
Acho que o meu cérebro ficou bloqueado em relação ao que foi dito depois disso.
Essas três palavras ecoaram alto na minha cabeça. É confortável pensar que tudo
isto começou no dia 7 de Outubro. E é verdadeiramente decepcionante que os
museus do Holocausto procurem este tipo de conforto.
Uma das experiências que mais me marcou como ser humano foi
a parte final da minha visita ao US Holocaust Memorial Museum (USHMM) em
Washington, aquela chamada “Como prevenir um genocídio?”. Ajudou-me
a entender que todos podemos fazer algo, à nossa própria escala. Acho que os
dois primeiros passos eram 1. Estarmos informados e 2. Informarmos outras
pessoas. Isso é algo que eu posso fazer, com certeza. Mas que o USHMM não faz.
Ou melhor, mais precisamente, não faz quando se trata de Israel/Palestina. O
museu considera que o Holocausto era evitável “e que, ao dar atenção aos sinais
de alerta e tomar medidas precoces, indivíduos e governos podem salvar vidas.
Com este conhecimento, o Centro Simon-Skjodt para a Prevenção do Genocídio
trabalha para fazer pelas vítimas de genocídio hoje o que o mundo não conseguiu
fazer pelos judeus da Europa nas décadas de 1930 e 1940.” Se consultarmos o relatório
2023-2024 sobre “Countries at risk of mass killings”,
parte do projecto Early
Warning, não encontraremos nenhuma menção a Israel/Palestina.
Nunca houve. Algumas pessoas podem compreender isso, podem justificá-lo. Eu
não. Não, quando um museu me diz que existe
para “inspirar cidadãos e líderes em todo o mundo a confrontar o ódio, prevenir
o genocídio e promover a dignidade humana”.
Mohammed Salem, World Press Photo of the Year 2024. |
Escrevo
e falo muito sobre a missão das organizações culturais e
como é preocupante o facto de muitas, demasiadas, não terem uma: uma declaração
curta, clara e concisa sobre o seu principal propósito, a razão porque existem.
Também penso frequentemente naquelas que têm uma e não conseguem viver à
altura. Ambas estas situações são igualmente prejudiciais, mas apenas a última
responsabiliza uma organização cultural perante a sociedade. Talvez seja também
por isso que muitas organizações evitam ter uma…
Há uma semana, assisti a um debate na Culturgest, em
Lisboa, com o dramaturgo e encenador Tiago Rodrigues e Susana Gouveia,
colaboradora da Cruz Vermelha Portuguesa e responsável pela coordenação da
resposta de apoio psicossocial. “Cuidar
em estado de emergência” foi o tema desta conversa. Para criar a
peça “Na medida do impossível”, Tiago Rodrigues falou com vários trabalhadores
humanitários do Comité Internacional da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem
Fronteiras. O trabalho destas pessoas consiste em prestar cuidados onde isto parece
impossível, nomeadamente em conflitos armados, campos de refugiados ou locais
afectados por catástrofes naturais. Uma das coisas que impressionou Tiago
Rodrigues nas conversas com estes trabalhadores é que, apesar de todas as
dificuldades e frustrações que vivenciam, manifestam um enorme nível de
satisfação com o que fazem, que ele associa ao facto de terem uma clara noção de
missão. Um pouco antes, Susana Gouveia tinha partilhado connosco como é
importante trabalhar para uma organização cujos valores partilhamos – bem como
sair, quando isso já não acontece. Quão importante é conhecer a missão e os
valores de uma organização para decidir se se quer ou não colaborar com ela.
Troquei olhares com a colega sentada ao meu lado. Quantos trabalhadores da cultura
podem dizer o mesmo?
Foto: Maria Vlachou |
Esta manhã, estava a ler a newsletter da American Alliance
of Museums. A frase que introduzia o primeiro artigo chamou a minha atenção:
“Como cumprir uma elevada declaração de missão como ‘convidar todas as pessoas
a celebrar a arte para sempre’?”. Avancei e li um artigo bonito e inspirador, “Extending
the invitation”, escrito pela directora do Speed Art Museum,
Raphaela Platow. Foi um rico relato dos esforços concretos que o museu tem desenvolvido
para “cultivar um museu culturalmente acolhedor” – por outras palavras,
cultivar um museu acessível, inclusivo e relevante, que cuida da sua
comunidade.
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