Wednesday 1 May 2024

Nunca mais: como é que se vive à altura de uma missão como esta?

Imagem retirada de Vatican News (Agence France Presse)

Em 2014, num post chamado “Em círculos”, escrevia que “Aparentemente, não damos o mesmo valor a todas as vidas humanas e assim, os países europeus representados no Concelho das Nações Unidas para os Direitos Humanos podem abster-se (todos!) na votação para a abertura de um inquérito sobre alegadas violações dos direitos humanos em Gaza; aparentemente, algumas situações do género ‘nunca mais’ são justificadas, e assim os nossos governos podem continuar a apoiar e a vender armas ao governo israelita; aparentemente, cada caso é uma caso e tudo depende, portanto, existem alguns casos do género “nunca mais” em que nós cidadãos comuns podemos reservar o direito de sermos mais ‘equilibrados’ ou neutros.”

Dez anos passaram desde a publicação do meu post. E antes disso, houve mais algumas décadas de história neste caso de “nunca mais” relativo à Palestina. Apesar desta longa história de abuso (no mínimo), quando recentemente, numa conferência internacional, perguntei a uma colega de um museu do Holocausto nos Balcãs (um com a missão de “nunca mais”, claro) como estavam a lidar com a situação em Gaza, começou a responder dizendo “Mas o Hamas….”. Acho que o meu cérebro ficou bloqueado em relação ao que foi dito depois disso. Essas três palavras ecoaram alto na minha cabeça. É confortável pensar que tudo isto começou no dia 7 de Outubro. E é verdadeiramente decepcionante que os museus do Holocausto procurem este tipo de conforto.

Uma das experiências que mais me marcou como ser humano foi a parte final da minha visita ao US Holocaust Memorial Museum (USHMM) em Washington, aquela chamada “Como prevenir um genocídio?”. Ajudou-me a entender que todos podemos fazer algo, à nossa própria escala. Acho que os dois primeiros passos eram 1. Estarmos informados e 2. Informarmos outras pessoas. Isso é algo que eu posso fazer, com certeza. Mas que o USHMM não faz. Ou melhor, mais precisamente, não faz quando se trata de Israel/Palestina. O museu considera que o Holocausto era evitável “e que, ao dar atenção aos sinais de alerta e tomar medidas precoces, indivíduos e governos podem salvar vidas. Com este conhecimento, o Centro Simon-Skjodt para a Prevenção do Genocídio trabalha para fazer pelas vítimas de genocídio hoje o que o mundo não conseguiu fazer pelos judeus da Europa nas décadas de 1930 e 1940.” Se consultarmos o relatório 2023-2024 sobre “Countries at risk of mass killings”, parte do projecto Early Warning, não encontraremos nenhuma menção a Israel/Palestina. Nunca houve. Algumas pessoas podem compreender isso, podem justificá-lo. Eu não. Não, quando um museu me diz que existe para “inspirar cidadãos e líderes em todo o mundo a confrontar o ódio, prevenir o genocídio e promover a dignidade humana”.

Mohammed Salem, World Press Photo of the Year 2024.

Escrevo e falo muito sobre a missão das organizações culturais e como é preocupante o facto de muitas, demasiadas, não terem uma: uma declaração curta, clara e concisa sobre o seu principal propósito, a razão porque existem. Também penso frequentemente naquelas que têm uma e não conseguem viver à altura. Ambas estas situações são igualmente prejudiciais, mas apenas a última responsabiliza uma organização cultural perante a sociedade. Talvez seja também por isso que muitas organizações evitam ter uma…

Há uma semana, assisti a um debate na Culturgest, em Lisboa, com o dramaturgo e encenador Tiago Rodrigues e Susana Gouveia, colaboradora da Cruz Vermelha Portuguesa e responsável pela coordenação da resposta de apoio psicossocial. “Cuidar em estado de emergência” foi o tema desta conversa. Para criar a peça “Na medida do impossível”, Tiago Rodrigues falou com vários trabalhadores humanitários do Comité Internacional da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem Fronteiras. O trabalho destas pessoas consiste em prestar cuidados onde isto parece impossível, nomeadamente em conflitos armados, campos de refugiados ou locais afectados por catástrofes naturais. Uma das coisas que impressionou Tiago Rodrigues nas conversas com estes trabalhadores é que, apesar de todas as dificuldades e frustrações que vivenciam, manifestam um enorme nível de satisfação com o que fazem, que ele associa ao facto de terem uma clara noção de missão. Um pouco antes, Susana Gouveia tinha partilhado connosco como é importante trabalhar para uma organização cujos valores partilhamos – bem como sair, quando isso já não acontece. Quão importante é conhecer a missão e os valores de uma organização para decidir se se quer ou não colaborar com ela. Troquei olhares com a colega sentada ao meu lado. Quantos trabalhadores da cultura podem dizer o mesmo?

Foto: Maria Vlachou

Esta manhã, estava a ler a newsletter da American Alliance of Museums. A frase que introduzia o primeiro artigo chamou a minha atenção: “Como cumprir uma elevada declaração de missão como ‘convidar todas as pessoas a celebrar a arte para sempre’?”. Avancei e li um artigo bonito e inspirador, “Extending the invitation”, escrito pela directora do Speed Art Museum, Raphaela Platow. Foi um rico relato dos esforços concretos que o museu tem desenvolvido para “cultivar um museu culturalmente acolhedor” – por outras palavras, cultivar um museu acessível, inclusivo e relevante, que cuida da sua comunidade.

No sector cultural, como em qualquer outro, temos absoluta necessidade do tipo de orientação que uma declaração de missão traz. Por todas as razões mencionadas acima, e por muitas outras, bastante mais práticas. Talvez a razão mais importante seja para que tenhamos orgulho e felicidade no que fazemos, para que saibamos porque é que o fazemos, para que possamos sair da cama todas as manhãs e ir trabalhar com um propósito, que vai além de completar algumas tarefas. Ao mesmo tempo, é essa mesma declaração de missão que nos ajudará a compreender quando não podemos sentir orgulho da organização para a qual trabalhamos, quando devemos sentir vergonha, quando devemos responsabilizar-nos a nós mesmos e a outros; quando, talvez, seja hora de sair, de seguir em frente. Estes são tempos difíceis e muito exigentes para todos nós.

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