Conheci
a Shirley Apthorp há uns meses, numa conferência em Lisboa. Nessa altura,
ouvi-a falar de um estádio de 6000 lugares cheio de jovens que participavam num
concurso nacional de ópera (uma forma artística “moribunda”, para alguns…).
Depois disso, mantivemo-nos em contacto através do Facebook, onde pude
acompanhar os preparativos para a apresentação da ópera de Purcell The Fairy
Queen em Joanesburgo e na Cidade do Cabo. Neste post, Shirley
escreve sobre o amor que os alunos na África do Sul têm pela ópera; sobre
Umculo, a organização de música que fundou; e sobre a sua convicção que a
África do Sul tem um papel importante a desempenhar no futuro da ópera como uma
forma artística significante para o mundo inteiro. mv
The Fairy Queen, Unculo 2012/2013 (Foto: Neil Baynes) |
O
endereço está rabiscado num pedaço amassado de papel rascunho: “The Dome”. O
trânsito em Joanesburgo é, na melhor das hipóteses, assustador; ainda mais
quando estamos atrasados para um evento importante. Quando chego, finalmente,
ranjo os dentes de frustração. Porque é que não tinha pedido informação mais
exacta? O Dome erguia-se à minha frente, um edifício enorme. Como é que ia
encontrar a competição de coros de escolas secundárias num complexo como este?
Ansiosamente, apressei-me em direcção a uma das entradas. Fui convidada para
entrar com um sorriso. Este era o primeiro de uma série de choques.
No
interior do Dome descobri um enorme estádio coberto. Estava a abarrotar com
crianças negras fardadas, que esperavam ansiosamente pelo início da primeira sessão
da competição anual de coros das escolas secundárias. Era uma sessão só para
rapazes e a peça seria o Coro dos Peregrinos de Tannhäuser. Depois,
houve sessões de solos e ensembles, onde os tenores tentaram uma ária de
Ascanio in Alba, as sopranos cantaram the “Queen of the Night”, grupos
de quatro interpretaram de forma mais que aceitável o quarteto de Cosi fan
Tutte. E assim continuou. Os 6000 espectadores ouviram-nos com extrema
atenção, sobressaltando em uníssono se se perdia uma nota, saltando do lugar
para aplaudir se uma coloratura fosse particularmente bem-sucedida. Seis
mil adolescentes negros connoiseurs de ópera num mesmo lugar ao mesmo
tempo, a maioria proveniente de comunidades bastante abaixo do nível de pobreza
– isto poderia estar realmente a acontecer?
“Pois,
sim”, respondeu um dos organizadores em tom de desculpa. “Na verdade, temos
aqui 10000 finalistas, mas o estádio pode comportar apenas 6000, por isso,
temos que organizar os espectadores em turnos.”
E esta
é apenas a ponta do iceberg – estes são os poucos seleccionados que conseguiram
passar as finais regionais e provinciais para participarem na cobiçada final
nacional.
The Fairy Queen, Umculo 2012/2013 (Foto: Yasser Booley) |
Os
coros que competem na competição nacional devem cantar um conjunto variado de
repertório, desde canções tradicionais africanas a novas composições sobre
temas como o HIV-AIDS, passando por Schubert, Mendelssohn e uma vasta gama de
repertório operático. Podemos viajar até à mais afastada township ou
povoado informal do país e encontrar Paminas e Taminos de 15 anos, ouvir Verdi
e Handel e Puccini de solistas demasiado novos para beber ou conduzir. Para uma
Europeia, criada no meio de queixas intermináveis sobre o envelhecimento do
público da ópera, isto não é nada mais nada menos do que uma revelação.
Centenas
de milhares, literalmente, de adolescentes sul-africanos cantam ópera e muitos
sonham fazer disto a sua profissão, como Pretty Yende, de 28 anos, que fez
recentemente o seu debuto na Metropolitan Opera depois de uma série de vitórias
em competições internacionais e uma passagem por La Scala; como Luthando Quave,
que está a criar a sua reputação na Metropolitan Opera e na Europa continental;
como Sunnyboy Dlala, actualmente no ensemble da Ópera de Zurique, ou
Pumeza Matshikiza, uma das estrelas da Òpera de Estugarda, ou Njabulo Madlala,
vencedor do Kathleen Ferrier Award em 2010.
Cantores
criados na África do Sul estão a começar a chamar a atenção internacional;
porém, o país inteiro dispõe neste momento de apenas uma companhia de ópera a
tempo inteiro – a da Cidade do Cabo – que luta para sobreviver num contexto
pós-Apartheid que não vê neste género de financiamento cultural uma prioridade.
O apoio ‘de brancos’ e ‘para brancos’ dado pelo governo Apartheid a companhias
de ópera regionais criou um precedente perigoso e nem mesmo a paixão
extraordinária das comunidades desfavorecidas pela ópera é capaz de mudar a
maré actual.
Umculo (Foto: Yasser Booley) |
Como
sul-africana, nascida no meio de uma família de luta de activistas
anti-Apartheid, cresci como exilada na Austrália e só conheci o meu país de
origem e o resto da minha família já em adulta, depois da instauração da
democracia em 1994. Tinha-me mudado para a Alemanha, onde fiquei a conhecer
muito bem o circuito internacional de ópera através do meu trabalho como
jornalista de música. A discrepância entre a vida da ópera na Europa – bem
financiada, altamente qualificada, cínica – e na África do Sul – não
financiada, raramente instruída musicalmente, mesmo assim, extraordinariamente
apaixonada e talentosa – incomodava-me imenso e, no fim, levou-me a fundar
Umculo.
Em
Xhosa, a língua de Cabo Ocidental, Umculo significa ao mesmo tempo música e
reconciliação. A nossa organização junta uma equipa internacional para trabalhar
com jovens sul-africanos com talento, provenientes de comunidades
desfavorecidas, fornecendo acesso à ópera, instrução, oportunidades e contactos
internacionais. Desde o lançamento em 2010, com uma conferência internacional
sobre educação musical, a transmissão a nível internacional na ARTE TV de um
concerto coral festivo e a colaboração com El Sistema de Venezuela, Umculo
cresceu ao ponto de apresentar em palco produções de ópera para um público novo
de adolescentes das townships, que participam, por sua vez, em workshops
da Umculo.
Umculo
opera nas ‘falhas geológicas’ da complexa sociedade sul-africana. As suas
produções usam o teatro musical para lidar com tensões entre raças, grupos
sócio-económicos, nacionalidades, grupos linguísticos e grupos etários.
Foto: July Zuma |
A nossa
produção The Fairy Queen de Henry Purcell em 2012/2013, apresentada em
Joanesburgo e na Cidade do Cabo, foi construída em torno de um coro de 30
cantores, com idades entre os 14 e os 18 anos, provenientes da comunidade
desfavorecida de Kraaifontein, entre a Cidade do Cabo e Stellenbosch. O maestro
Warwick Stengards, que trabalha em Viena, o encenador alemão Robert Lehmeier e
a dramaturga Laura Ellersdorfer trabalharam com o figurinista sul-africano
Thando Lobese e o desenhador de luz Michael Maxwell, jovens solistas
sul-africanos e uma orquestra que juntou músicos com carreira internacional e
músicos profissionais locais com membros da South African National Youth
Orchestra.
Os
membros da equipa de Umculo trabalham como voluntários e os projectos são
desenvolvidos com orçamentos muito reduzidos. Financiamento vindo da Hilti
Foundation, do Goethe Institut e de patrocinadores privados permite à
organização realizar os seus projectos, mas será preciso muito mais para Umculo
poder tornar-se numa organização sustentável a tempo inteiro.
Sentimo-nos
tocados e motivados pela transformação dos jovens participantes, pela paixão,
entusiasmo e excelência dos nossos intérpretes, pela facilidade e a excitação
com a qual os nossos jovens públicos aceitam esta experiência e pelo impacto
social do nosso trabalho. Umculo acredita que a África do Sul tem um enorme
papel a desempenhar no futuro da ópera como uma forma artística significante
para todo o mundo. Estamos a fazer o que podemos para levar esta visão para a
frente.
Shirley Apthorp nasceu na Cidade do Cabo,
África do Sul, e emigrou com a sua família para a Austrália aos dois anos.
Estudou música na Universidade da Tasmânia, em Hobart. Durante os seus estudos,
começou a escrever a nível local e nacional sobre música; após a licenciatura,
iniciou a sua carreira como jornalista de música freelancer. O Churchill
Fellowship e bolsas do Australia Council, Arts Tasmania e Goethe Institut
levaram-na à Europa em 1994; vive em Berlim desde 1996, escrevendo sobre música
para os Financial Times (Reino Unido), Bloomberg, (EUA), The Australian
(Austrália) e várias revistas de música.
Fundou Umculo em 2010.
2 comments:
Olá Maria
Este post foi dos que até agora mais me emocionou...realmente esta Europa...já não acredito nela. E este projeto, num país tão complexo como é a África do Sul...fantástico! Estas crianças são incriveis bem como os seus professores, pais e pessoas como a Shirley que se metem ao caminho com coragem.Obrigado Maria, mais uma vez.
Obrigada, Nuno, fico muito contente. Não queres pôr também no Facebook? A Shirley vai gostar de ler.
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