Monday, 3 June 2013

Blogger convidado: "'The Fairy Queen' na África do Sul", por Shirley Apthorp

Conheci a Shirley Apthorp há uns meses, numa conferência em Lisboa. Nessa altura, ouvi-a falar de um estádio de 6000 lugares cheio de jovens que participavam num concurso nacional de ópera (uma forma artística “moribunda”, para alguns…). Depois disso, mantivemo-nos em contacto através do Facebook, onde pude acompanhar os preparativos para a apresentação da ópera de Purcell The Fairy Queen em Joanesburgo e na Cidade do Cabo. Neste post, Shirley escreve sobre o amor que os alunos na África do Sul têm pela ópera; sobre Umculo, a organização de música que fundou; e sobre a sua convicção que a África do Sul tem um papel importante a desempenhar no futuro da ópera como uma forma artística significante para o mundo inteiro. mv  

The Fairy Queen, Unculo 2012/2013 (Foto: Neil Baynes)
O endereço está rabiscado num pedaço amassado de papel rascunho: “The Dome”. O trânsito em Joanesburgo é, na melhor das hipóteses, assustador; ainda mais quando estamos atrasados para um evento importante. Quando chego, finalmente, ranjo os dentes de frustração. Porque é que não tinha pedido informação mais exacta? O Dome erguia-se à minha frente, um edifício enorme. Como é que ia encontrar a competição de coros de escolas secundárias num complexo como este? Ansiosamente, apressei-me em direcção a uma das entradas. Fui convidada para entrar com um sorriso. Este era o primeiro de uma série de choques. 

No interior do Dome descobri um enorme estádio coberto. Estava a abarrotar com crianças negras fardadas, que esperavam ansiosamente pelo início da primeira sessão da competição anual de coros das escolas secundárias. Era uma sessão só para rapazes e a peça seria o Coro dos Peregrinos de Tannhäuser. Depois, houve sessões de solos e ensembles, onde os tenores tentaram uma ária de Ascanio in Alba, as sopranos cantaram the “Queen of the Night”, grupos de quatro interpretaram de forma mais que aceitável o quarteto de Cosi fan Tutte. E assim continuou. Os 6000 espectadores ouviram-nos com extrema atenção, sobressaltando em uníssono se se perdia uma nota, saltando do lugar para aplaudir se uma coloratura fosse particularmente bem-sucedida. Seis mil adolescentes negros connoiseurs de ópera num mesmo lugar ao mesmo tempo, a maioria proveniente de comunidades bastante abaixo do nível de pobreza – isto poderia estar realmente a acontecer?

“Pois, sim”, respondeu um dos organizadores em tom de desculpa. “Na verdade, temos aqui 10000 finalistas, mas o estádio pode comportar apenas 6000, por isso, temos que organizar os espectadores em turnos.”

E esta é apenas a ponta do iceberg – estes são os poucos seleccionados que conseguiram passar as finais regionais e provinciais para participarem na cobiçada final nacional.

The Fairy Queen, Umculo 2012/2013 (Foto: Yasser Booley) 
Os coros que competem na competição nacional devem cantar um conjunto variado de repertório, desde canções tradicionais africanas a novas composições sobre temas como o HIV-AIDS, passando por Schubert, Mendelssohn e uma vasta gama de repertório operático. Podemos viajar até à mais afastada township ou povoado informal do país e encontrar Paminas e Taminos de 15 anos, ouvir Verdi e Handel e Puccini de solistas demasiado novos para beber ou conduzir. Para uma Europeia, criada no meio de queixas intermináveis sobre o envelhecimento do público da ópera, isto não é nada mais nada menos do que uma revelação.

Centenas de milhares, literalmente, de adolescentes sul-africanos cantam ópera e muitos sonham fazer disto a sua profissão, como Pretty Yende, de 28 anos, que fez recentemente o seu debuto na Metropolitan Opera depois de uma série de vitórias em competições internacionais e uma passagem por La Scala; como Luthando Quave, que está a criar a sua reputação na Metropolitan Opera e na Europa continental; como Sunnyboy Dlala, actualmente no ensemble da Ópera de Zurique, ou Pumeza Matshikiza, uma das estrelas da Òpera de Estugarda, ou Njabulo Madlala, vencedor do Kathleen Ferrier Award em 2010.

Cantores criados na África do Sul estão a começar a chamar a atenção internacional; porém, o país inteiro dispõe neste momento de apenas uma companhia de ópera a tempo inteiro – a da Cidade do Cabo – que luta para sobreviver num contexto pós-Apartheid que não vê neste género de financiamento cultural uma prioridade. O apoio ‘de brancos’ e ‘para brancos’ dado pelo governo Apartheid a companhias de ópera regionais criou um precedente perigoso e nem mesmo a paixão extraordinária das comunidades desfavorecidas pela ópera é capaz de mudar a maré actual.

Umculo (Foto: Yasser Booley)
Como sul-africana, nascida no meio de uma família de luta de activistas anti-Apartheid, cresci como exilada na Austrália e só conheci o meu país de origem e o resto da minha família já em adulta, depois da instauração da democracia em 1994. Tinha-me mudado para a Alemanha, onde fiquei a conhecer muito bem o circuito internacional de ópera através do meu trabalho como jornalista de música. A discrepância entre a vida da ópera na Europa – bem financiada, altamente qualificada, cínica – e na África do Sul – não financiada, raramente instruída musicalmente, mesmo assim, extraordinariamente apaixonada e talentosa – incomodava-me imenso e, no fim, levou-me a fundar Umculo.

Em Xhosa, a língua de Cabo Ocidental, Umculo significa ao mesmo tempo música e reconciliação. A nossa organização junta uma equipa internacional para trabalhar com jovens sul-africanos com talento, provenientes de comunidades desfavorecidas, fornecendo acesso à ópera, instrução, oportunidades e contactos internacionais. Desde o lançamento em 2010, com uma conferência internacional sobre educação musical, a transmissão a nível internacional na ARTE TV de um concerto coral festivo e a colaboração com El Sistema de Venezuela, Umculo cresceu ao ponto de apresentar em palco produções de ópera para um público novo de adolescentes das townships, que participam, por sua vez, em workshops da Umculo.

Umculo opera nas ‘falhas geológicas’ da complexa sociedade sul-africana. As suas produções usam o teatro musical para lidar com tensões entre raças, grupos sócio-económicos, nacionalidades, grupos linguísticos e grupos etários.

Foto: July Zuma
A nossa produção The Fairy Queen de Henry Purcell em 2012/2013, apresentada em Joanesburgo e na Cidade do Cabo, foi construída em torno de um coro de 30 cantores, com idades entre os 14 e os 18 anos, provenientes da comunidade desfavorecida de Kraaifontein, entre a Cidade do Cabo e Stellenbosch. O maestro Warwick Stengards, que trabalha em Viena, o encenador alemão Robert Lehmeier e a dramaturga Laura Ellersdorfer trabalharam com o figurinista sul-africano Thando Lobese e o desenhador de luz Michael Maxwell, jovens solistas sul-africanos e uma orquestra que juntou músicos com carreira internacional e músicos profissionais locais com membros da South African National Youth Orchestra.


Os membros da equipa de Umculo trabalham como voluntários e os projectos são desenvolvidos com orçamentos muito reduzidos. Financiamento vindo da Hilti Foundation, do Goethe Institut e de patrocinadores privados permite à organização realizar os seus projectos, mas será preciso muito mais para Umculo poder tornar-se numa organização sustentável a tempo inteiro.

Sentimo-nos tocados e motivados pela transformação dos jovens participantes, pela paixão, entusiasmo e excelência dos nossos intérpretes, pela facilidade e a excitação com a qual os nossos jovens públicos aceitam esta experiência e pelo impacto social do nosso trabalho. Umculo acredita que a África do Sul tem um enorme papel a desempenhar no futuro da ópera como uma forma artística significante para todo o mundo. Estamos a fazer o que podemos para levar esta visão para a frente.


Shirley Apthorp nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, e emigrou com a sua família para a Austrália aos dois anos. Estudou música na Universidade da Tasmânia, em Hobart. Durante os seus estudos, começou a escrever a nível local e nacional sobre música; após a licenciatura, iniciou a sua carreira como jornalista de música freelancer. O Churchill Fellowship e bolsas do Australia Council, Arts Tasmania e Goethe Institut levaram-na à Europa em 1994; vive em Berlim desde 1996, escrevendo sobre música para os Financial Times (Reino Unido), Bloomberg, (EUA), The Australian (Austrália) e várias revistas de música.  Fundou Umculo em 2010.

2 comments:

Nuno Beja said...

Olá Maria
Este post foi dos que até agora mais me emocionou...realmente esta Europa...já não acredito nela. E este projeto, num país tão complexo como é a África do Sul...fantástico! Estas crianças são incriveis bem como os seus professores, pais e pessoas como a Shirley que se metem ao caminho com coragem.Obrigado Maria, mais uma vez.

Maria Vlachou said...

Obrigada, Nuno, fico muito contente. Não queres pôr também no Facebook? A Shirley vai gostar de ler.