Na semana de 11 de Maio, a minha caixa de email encheu-se de
convites para a celebração da Noite e do Dia dos Museus. No Facebook, a
intensidade não foi menor, com os museus e as suas tutelas a lembrar que todos
os caminhos iam levar a um museu. Um ambiente de grande festa, uma oferta
enorme em todo o país, que foi também traduzida em números: de acordo com os
meios de comunicação, houve 140 actividades por ocasião da Noite Europeia dos
Museus (16 de Maio) e 430 actividades no Dia Internacional dos Museus (18 de
Maio), em 70 museus diferentes. A verdade é que poucas das actividades
propostas responderam ao desafio do ICOM para reflectir sobre "Museus para
uma sociedade sustentável" (e fiquei a pensar qual será, realmente, a
percepção que os museus têm deste desafio anual e se este tem qualquer impacto
nas suas práticas - no Dia dos Museus e no resto do ano). Dito isto, a riqueza
e a intensidade da programação apresentada, bem como o ambiente de festa,
poderiam fazer pensar que o sector dos museus em Portugal mostra sinais claros
de prosperidade. Assim, a notícia a 18 de Maio que alguns funcionários de
museus estavam em greve, contestando a redução do pagamento de horas
extraordinárias, bem como o facto de terem sido obrigados a trabalhar numa
segunda-feira (o dia destinado ao descanso semanal), foi uma espécie de nota
marginal (ver reportagem da TV)
Post Scriptum:
No início de 2015, um dos primeiros tweets de David Fleming
foi: "Espero que os museus encontrem a sua voz em 2015 e alertem o público
para os impactos da austeridade no que somos capazes de fazer comparado com
antes." Foi um alerta que ficou comigo, ainda por mais, porque David é o
Director dos National Museums Liverpool e é preciso admitir que não estamos
muito acostumados a directores de museus nacionais, neste e noutros países, que
sejam tão francos publicamente e que mostrem claramente que a sua lealdade
encontra-se em primeiro lugar com o seu museu e as responsabilidades que este
tem perante os cidadãos e não com o governo de um determinado momento.
Mais recentemente, Rebecca Atkinson-Lord, uma encenadora e
produtora britânica, sugeriu no Guardian que as organizações culturais precisam de um código
de boas práticas durante a austeridade, que devem começar a falar publicamente
dos cortes e a deixar que os danos sejam visíveis.
"Quase todas as organizações reduzem a sua actividade,
simplificam, reavaliam modelos de negócio e procuram ver se algures terão
sobrado alguns trocos. Agora, até mesmo as organizações mais robustamente
financiadas recebem o apoio de horas de trabalho não remunerado que os seus
funcionários investem para poderem servir e apoiar a arte que amam. Os políticos
gostam de denunciar empregadores que exploram trabalhadores não remunerados,
mas é tempo de eles perceberem que a maior exploração da boa vontade do nosso
sector é o próprio governo. O sector britânico das artes e da cultura, um líder
mundial e uma significativa fonte de receita a partir dos gastos em lazer e no
turismo, é construído sobre uma fundação de exploração de trabalho não
remunerado – com a qual todos nós voluntariamente compactuamos, não querendo
sacrificar a ecologia das artes que amamos."
Esta é uma declaração poderosa, que não diz respeito apenas
ao sector cultural britânico. Fez-me pensar em duas coisas:
Durante a conferência O Lugar da Cultura, organizada em Abril passado pelo Secretário de
Estado da Cultura, vários colegas da área das artes performativas - uma área em
grande parte caracterizada pelo trabalho intermitente - confessaram que, dadas
as condições actuais de trabalho, se sentem totalmente exaustos e perguntam-se
constantemente a si próprios se vale a pena continuar ou se devem simplesmente
desistir, parar. Como e porquê alguém deveria continuar, quando, com muita
frequência, é-lhe sugerido que ofereça o seu trabalho de graça ou que receba
pagamento apenas através da receita de bilheteira; quando, para poder
apresentar um espectáculo, deve fazer absolutamente tudo: produção, promoção, trabalho
de maquinista, limpeza, venda de bilhetes, bem como ensaiar e interpretar…
Não foram partilhadas histórias semelhantes pelos
profissionais dos museus... E, no entanto, todos nós sabemos que, se a maioria
dos museus continua neste momento a funcionar, é porque, quanto maiores os
cortes, mais as equipas dos museus investem: investem o seu tempo, a sua
expertise, fazem horas extraordinárias para as quais não são pagas e até mesmo
compram material necessário para o museu com o seu próprio dinheiro ou fazem
bolos e preparam café em casa, quando o museu não pode gastar dinheiro em coffee
breaks na organização de conferências ou seminários…
Assim, uma pessoa pergunta-se: o que é preciso para dizer
"Basta!"? O que é preciso para reconhecer e deixar que a sociedade
saiba que este sector é sustentado graças ao sacrifício, investimento pessoal e
exploração de quem nele trabalha? Terá sentido a sociedade portuguesa os
efeitos brutais dos cortes no sector cultural? Irá alguma vez o governo (este
ou o próximo) assumir a responsabilidade de dar a este sector as condições para
funcionar adequadamente, se as coisas ainda estão a acontecer, se tudo continua
como se nada tivesse mudado?
E uma última nota: é uma ilusão pensar que as coisas
realmente continuam... Independentemente do esforço que se faz, muitas das
actividades e eventos propostos acabam por ser uma repetição do que aconteceu
várias vezes antes, faltando-lhes originalidade, entusiasmo ou relevância.
Planeamento e tarefas que precisam do envolvimento de peritos são efectuados
por pessoas que fazem um pouco de tudo e o melhor que podem. Infelizmente, isso
não é bom o suficiente. Não é bom o suficiente para os profissionais da área e
não é bom o suficiente para a sociedade que este sector procura servir. Todos nós
merecemos melhor. Porém, para obtermos o que merecemos, é urgente deixarmos de
colaborar para a nossa própria exploração e para a degradação dos serviços
oferecidos por este sector à sociedade. Nós não podemos ser co-responsáveis
pelo estado actual das coisas, nem pela sua perpetuação e agravamento.
Mais leituras:
Raquel Henriques da Silva, O rei nu na cultura em Portugal e uma proposta para fazer diferente
Mais neste blog:
2 comments:
Maria
Ao contrário do que dava a entender no FB, nada no seu PS se refere ao "sempre em festa" que comentei no post que colocou no FB.
Fiquei dececionado.
Olá, Miguel.
Não sei porque é que a leitura do meu texto o leva a concluir que sou defensora do "sempre em festa". Pelo contrário, o que defendo é que estamos a contribuir (com sacrifício próprio)para um ambiente de festa, que cria a ilusão de que está tudo bem, em vez de tornarmos o mais pública possível a realidade que se vive no sector cultural e o impacto dos cortes e do desinvestimento.
Abraço,
Maria
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