Saturday, 9 May 2020

Leituras da quarentena #2 e uma primeira versão da minha lista de desejos

Foto: Maria Vlachou

Desde o início do nosso confinamento, tive a oportunidade de ler muitos artigos instigantes e de participar em debates muito dinâmicos. Existe uma preocupação, frequentemente expressa, em relação à oportunidade que esta crise apresenta para repensarmos as nossas práticas, redefinirmos os nossos valores e sistemas de valorização do nosso trabalho, desenvolvermos relações de proximidade, respeito e solidariedade, tanto dentro das nossas organizações como com as nossas comunidades.

Vai acontecer? Conseguiremos desafiar as habituais (e conhecidas) barreiras e promover uma maneira nova e necessária de ser e agir? Seremos capazes de não propriamente ganhar a guerra (de mudar o mundo), mas pelo menos algumas batalhas decisivas? Franco “Bifo” Berardi avisou-nos em Março que, quando a quarentena terminar, os humanos “terão a oportunidade de reescrever as regras e quebrar qualquer automatismo. Mas é bom saber que isso não acontecerá pacificamente. Não podemos prever a forma que o conflito assumirá, mas devemos começar a imaginá-lo. Quem imaginar primeiro, ganha – é uma das leis universais da história.”

Várias organizações culturais pareciam desorientadas nos primeiros dias ou semanas. Talvez seja normal. No entanto, quando esse tipo de desorientação persiste e não parece existir um plano, torna-se numa armadilha. Organizações sem uma clara missão e um relacionamento sincero e humano com as suas diversas comunidades devem sentir uma pressão ainda maior neste momento. Precisamos de um plano. Isto não é uma opção, no entanto; é obrigatório.

Numa recente publicação noEngaging Matters, Doug Borwick perguntou: “Qual considera ser a responsabilidade mais premente da sua organização, a arte ou as pessoas? Não quero dizer qual é a sua missão (essa é uma pergunta para uma outra altura). Em casos extremos, o que é mais importante? Se muitos na sua comunidade estão a sofrer, o seu foco está na arte?”

Era uma pergunta retórica, sabemo-lo. Borwick prosseguiu: “A tendência de meter o foco quase exclusivamente na arte é uma das razões porque as pessoas fora das artes veem o nosso trabalho como insular, sem noção da realidade e/ou irrelevante. Em tempos de crise, esse foco na arte não as toca.”

Este facto é mais explorado por Dan Spock, no seu blog Wunderkammer, quando pergunta: “Museus:essenciais ou não-essenciais?”. Spock lembra-nos que, no início dos anos 2000, StephenWeil pediu-nos para tornar os museus importantes, para criar um relacionamento recíproco com "o público", ser “para” alguém, ter um propósito (ou melhor, propósitos). A maioria de nós - museus e organizações culturais em geral - não conseguiu avançar muito, não trabalhou nessa direcção. O nosso discurso pode ter mudado, sem dúvida (falamos mais sobre trabalhar "com" - e não "para" ou "sobre"), mas a nossa prática não confirma as nossas palavras. Em tempos de crise, as nossas verdadeiras prioridades tornam-se ainda mais óbvias: isto tem, principalmente, a ver connosco e com os nossos pares, por mais que professemos o nosso compromisso com as pessoas, outras pessoas, e a sociedade.

Esta crise coloca-nos diante das nossas responsabilidades e da sinceridade do que dizemos que desejamos. "Quem imaginar primeiro, ganha", escreveu "Bifo". Este é o momento de fazê-lo. Este é o momento de decidir quais batalhas devem ser vencidas e imaginar o caminho para o fazer acontecer.

Nos últimos dias, percebi que está lentamente a ser criada na minha cabeça uma lista de desejos. Gostaria de partilhar uma primeira versão.

Tempo
Tempo para trabalhar e tempo para aproveitar. Fazer menos por mais, em vez de mais pelos mesmos. No capítulo “Perda” do seu livro “Uma beleza que nos pertence”, o padre Tolentino Mendonça lembra-nos que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo dia descansou. “Ora, o descanso não é um apêndice ou um remate circunstancial da criação. O descanso, este Shabbat, é o momento da alegria e da contemplação; é o momento do enamoramento e do gozo; é o momento do júbilo!” Precisamos de tempo para contemplar o que fazemos, gozar e rejubilar, juntamente com outras pessoas.

Humanidade
Recuperar ou começar a aplicar a qualidade de ser humano. Quando as organizações culturais começaram a fechar em meados de Março, a minha caixa ficou cheia de e-mails que anunciavam cancelamentos ou adiamentos. Quase todos estavam redigidos numa linguagem formal e factual. Sem expressão de sentimentos (nem pensar!), sem empatia. E de repente, no meio daquela listagem repetitiva de anúncios de cancelamento, um e-mail com o título "Uma carta de amor para uma comunidade solidária". Foi uma mensagem do Globe Aroma, um espaço para as artes em Bruxelas que reúne imigrantes e locais. A carta expressava tristeza, preocupação, confusão. E afirmava claramente que a decisão de fechar não foi tomada por medo, mas por amor e solidariedade. Esta é uma relação entre pessoas, não entre organizações (edifícios) e pessoas (vejam posts anteriores sobre isto aqui, aqui e aqui).

Solidariedade e respeito
Que valores devem orientar o nosso trabalho, a nossa prática? John Holden escreveu recentemente que “os pilares gémeos da política cultural devem ser a justiça social e a preocupação ambiental”. A justiça, no entanto, começa de dentro. A solidariedade e o respeito começam de dentro. Quando grandes organizações culturais começaram a anunciar o despedimento dos seus educadores (e o MoMA chegou ao ponto de dizer que  “Vai levar meses, se não anos, antes de voltarmos aos níveis de orçamento e operações que necessitem dos serviços de educadores), o tesoureiro do Play on Philly disse que este era o momento para a organização apoiar os seus artistas, professores freelancers, e que isto será "um investimento no nosso futuro [porque] eles representam o núcleo do que fazemos".

Apreciação
Nem todos os membros de uma equipa são bons no que fazem (embora, às vezes, seja apenas uma questão de encontrar uma posição mais adequada para eles - e outras vezes seja uma causa perdida). Mas muitas pessoas são boas no que fazem. E não são apenas boas; são interessadas, informadas e dedicadas. E, muito frequentemente, são postas de lado... Uma pessoa ser interessada, informada e dedicada significa também que tem ideias e opiniões e que quer usá-las (que chatice...). Muitas pessoas, muitos de nossos colegas, estão presos em organizações que não querem nada deles - para além do seu silêncio e obediência. Isto torna-se numa perda colectiva. Precisamos que todos eles tenham condições para serem o melhor que puderem. A mediocridade não nos deixa avançar…


Missão
Algumas organizações culturais são dirigidas por pessoas carismáticas, que lhes dão um rumo claro, pensado. No entanto, isto não é apenas uma questão de carisma. Todas as organizações deveriam trabalhar as suas missões, todas (todos os membros das suas equipas) deveriam saber qual o seu propósito, porque é que fazem o que fazem e para quem. Não há dúvida que, apesar de nunca ninguém estar propriamente preparado para uma crise, apesar de existir sempre um elemento de surpresa, as organizações que antes estavam esclarecidas sobre o seu propósito e a sua forma de estar conseguem responder de forma mais sensata, coerente e orientada.

Uma última nota: algumas, se não todas estas questões, para funcionarem como nós sonhamos, necessitam de pessoas conhecedoras, comprometidas, intelectualmente honestas, que não vão virar as costas aos pequenos ou grandes conflitos que fazem sempre parte de qualquer tentativa de mudança. Todas elas significam trabalhar de uma forma diferente e, em muitos casos, mais exigente. Será que realmente nos preocupamos? É que isto não vai acontecer sem nós.


Mais neste blog:




O que é que temos a ver com isso? Parte 1 e Parte 2


Mais leituras


François Matarasso, What are we saving and why


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