O vandalismo, a destruição
ou a remoção de estátuas não é uma "moda" de hoje. Já sabia disso,
mas não sabia quão velha era esta história. Numa entrevista ao New York Times, a historiadora de arte Erin L. Thompson mencionou que
há estátuas de reis assírios que trazem gravadas maldições ("Aquele que
derrubar a minha estátua, que sofra pelo resto da vida") e que datam de
2700 a.C. Segundo o jornal, Thompson tem dedicado a sua carreira ao estudo do significado da destruição deliberada de ícones do património
cultural. Colocar uma estátua no espaço público é uma decisão política, uma
declaração pública, uma tentativa de solidificar o reconhecimento dos valores, carácter e contribuição de uma pessoa à sociedade. O
espaço público é um lugar de afirmação política; mas também de contestação.
Essas afirmações públicas de uma versão oficial da história não são
necessariamente imortais e não fazem necessariamente sentido para sempre.
Os protestos em todo o
mundo contra o racismo e a cadeia de eventos históricos que o transformaram em
prática sistémica (como a escravatura, o colonialismo, as políticas de
segregação) levaram a discussão para as ruas, o espaço público. Um espaço
partilhado por todos nós, marcado por várias estátuas que homenageiam homens
que tiveram um papel activo e negativo em tudo isto, como reis, políticos,
exploradores e comerciantes de escravos. Nos últimos dias, vimos o derrubo da
estátua do traficante de escravos Edward Colston em Bristol (leia mais), a
remoção da estátua do Rei Leopoldo II em Antuérpia (vandalizada anteriormenete
em várias ocasiões - saibam quem foi o Rei Leopoldo II) ou de Robert Milligan (traficante de escravos que
estava em frente ao Museum of London Docklands – leiam a declaração do Museum of London).
O derrubo e remoção de
estátuas atraiu críticas imediatas da parte de algumas pessoas, que viram nisso
o fim da civilização ou uma tentativa de apagar / branquear / reescrever a
história. A historiadora Charlotte Lydia Riley diz-nos para não nos preocuparmos: “(...) reescrever a história é a nossa ocupação [dos
historiadores], o nosso empreendimento profissional. Estamos constantemente
envolvidos num processo de reavaliação do passado e de reinterpretação de
histórias que pensávamos que conhecíamos. Apesar do que Leopold von Ranke - um
dos pioneiros da pesquisa histórica moderna - disse, a história não é apenas
descobrir 'como realmente aconteceu', mas também como pensamos sobre o passado
e a nossa relação com ele. O passado pode estar morto, mas a história está
viva e é construída no presente." A acrescentar também aqui
que a remoção de uma estátua do espaço público nunca impediu que continuássemos
a aprender sobre essa figura na escola.
A ler as notas deixadas no plinto da estátua de Edward Colston. (Foto: Adrian Sherratt para o jornal The Guardian) |
Alguns compararam esses actos
recentes à destruição de estátuas pelos Talibã ou pelo ISIS/Daesh. Na sua entrevista ao New York Times, Erin L. Thompson dá uma resposta a isso: "Não acho
que possamos dizer que a destruição é sempre justificada ou que a destruição
nunca é justificada. Temos de pensar em quem está a destruir e para que fins. O
ISIS estava a destruir monumentos de um passado tolerante a fim de alcançar um
futuro de violência e ódio. Estes manifestantes estão a atacar símbolos de um
passado odioso como parte da luta por um futuro pacífico. Então, acho que são acções
exactamente opostas."
Os protestos chegaram também
a Portugal. Assim como o vandalismo. Nos últimos dois ou três dias, a esfera das
redes sociais e a comunicação social foram inundadas com a opinião de
praticamente toda a gente sobre o graffiti na estátua do Padre António Vieira. As
pessoas que condenaram o vandalismo expressaram o seu horror, acusaram o autor de "ignorância" (e provavelmente também todos os que
criticam a estátua), pediram veementemente educação e diálogo.
O vandalismo é ilegal,
nunca o incitei e nunca o pratiquei. Dito isto, poderíamos talvez olhar para
tantos outros assuntos sobre os quais estas e outras acções nos convidam a
reflectir?
Muitos dos críticos nunca antes
tinham ouvido falar dessa estátua. Não sabiam da controvérsia que ela provocou
desde o primeiro momento em que foi colocada no espaço público. Não sabiam (ou
não quiseram mencionar) que uma manifestação legal contra a estátua dias após a
sua inauguração foi bloqueada por um grupo de neo-nazis, sob o olhar da
polícia. Não sabiam que a estátua tinha sido vandalizada antes. Assumiram que
as críticas tinham a ver com o próprio padre e argumentaram extensivamente a
seu favor. Considerando que muitas dessas pessoas trabalham no campo da Cultura
(especificamente do Património), da História e da Educação, considero a sua
manifestação de ignorância, quando desejam participar num debate público,
inaceitável e irresponsável (para quem deseja conhecer um pouco mais, a escritora
e jornalista Alexandra Lucas Coelho resume as críticas à estátua neste texto, enquanto o grupo Decolonizando, que organizou o
protesto em 2017, esclarece a sua posição aqui). É bastante comum alguém desejar participar numa
discussão, com a intenção de influenciar a opinião pública, sem fazer primeiro
o seu trabalho de casa. Mas é também intolerável e intelectualmente desonesto.
A discussão pública em
torno do vandalismo levantou várias outras questões em mim:
- Podemos esperar das pessoas que trabalham em Cultura – Património - História - Educação que não se limitem a condenar o vandalismo, mas que usem o seu vasto conhecimento para reflectir sobre o contexto dos eventos e actos?
- Tentar compreender e procurar as lições a ser aprendidas significa que se aprova o vandalismo?
- Os estudiosos e outros comentadores dos eventos podem dizer honestamente que as estátuas estão a fazer um bom trabalho em "educar" as pessoas?
- No caso específico da estátua do Padre António Vieira, é aceitável que uma estátua de 2017, colocada pelo município no espaço público, ignore toda a discussão pública sobre o passado colonial do país e perpetue estereótipos ofensivos em relação a cidadãos que moram na cidade ou que a visitam? (alguns até perguntam: "O próprio Padre António Vieira não se sentiria horrorizado com essa representação?")
- No caso específico da estátua do Padre António Vieira, como explicar a fúria imensa e desproporcional de historiadores, historiadores da arte, especialistas em património e outros em relação a um graffiti fácil de limpar (e quase imediatamente limpo)?
- Porque é que muitas dessas pessoas não expressaram a mesma fúria e horror quando vimos as imagens do rosto vandalizado de Cláudia Simões (uma mulher negra) por um polícia? Porque é que muitas dessas pessoas não condenaram o facto das gravações das câmaras da esquadra não terem sido entregues ao advogado de Cláudia Simões quando solicitadas e antes de serem legalmente destruídas? Talvez não vejam a ligação que eu vejo…
- Existem pessoas cujos corpos, rostos e opiniões importam menos do que as estátuas?
- Estes assuntos são uma discussão sobre a extrema direita e a extrema esquerda? Podemos continuar convenientemente a arrumá-los de maneira sumária e deixá-los assim? Onde é que isto deixa as pessoas do “humane middle”?
Por fim:
Aqueles que pedem veementemente
em momentos como este educação e diálogo, o que têm feito até agora? Fizeram o seu
trabalho de casa, para começar? Exigiram a revisão dos livros escolares (que
ensinam aos estudantes portugueses, negros e brancos, com 10-11 anos que os
portugueses foram colonialistas benevolentes e faziam comércio de diversos
produtos - como escravos)? Trabalharam para garantir que todos os cidadãos em
Portugal tenham o direito de participar no debate público e de serem realmente
ouvidos? Fizeram um esforço para ouvir vozes que não estavam habituados a ouvir
antes?
Se viver em sociedade é
uma negociação constante, se a política é a arte de vivermos juntos, qual é a
responsabilidade de cada um de nós pelo decorrer destes eventos e por este e
outros vandalismos? Qual é a responsabilidade de cada um de nós pela falta de
diálogo, falta de conhecimento, falta de empatia, pelo nível de frustração e
raiva entre alguns dos nossos co-cidadãos? Nos últimos três anos, muitas
pessoas, que agora pedem educação e diálogo e acusam outras de ignorância, não procuraram
informar-se sobre a controvérsia em torno da estátua do Padre António Vieira.
Em Bristol, as discussões em torno da estátua de Edward Colston levavam pelo
menos oito anos. Outras discussões, na Bélgica ou nos EUA, duram décadas.
Estamos a viver a raiva e a frustração acumuladas de anos de protestos e exigências
pacíficas, que escolhemos ignorar e que deixaram algumas pessoas sem esperança.
Temos o direito de nos sentirmos surpreendidos e horrorizados com o vandalismo?
E não é verdade que alguns dos nossos direitos foram conquistados graças a
pessoas que desobedeceram à lei? Não é verdade que muitas vezes na História
fomos forçados a dialogar? Não vale a pena reivindicarmos educação e conhecimento
se não estivermos dispostos a aprender. Não vale a pena condenarmos a
ignorância dos outros quando escolhemos viver no espaço confortável da nossa
própria ignorância.
As palavras finais são as
de um padre. No seu discurso de 10 de Junho (Dia de Portugal), o Padre Tolentino Mendonça, citando Simone
Weil, disse: “Um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na
verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o
para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se
modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar
colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos
riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela
fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade
a inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.” Tolentino Mendonça
lembrou-nos também no seu discurso que “A raiz da civilização é, por isso, a
comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos
capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração
histórica, espiritual e ética.”
Estes pensamentos dão-me
um contexto para reflectir sobre o que está a acontecer hoje, para não sentir
medo ou ameaça e procurar o meu papel e responsabilidades em tudo isto.
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