Tuesday 9 June 2020

Do silêncio para a hashtag para a tomada de posição


A notícia que o director do Toledo Museum of Art, Alan Levine, quis "re-enfatizar" nesta altura que o museu não tem uma posição política soou-me estranha e anacrónica. Não apenas porque me juntei há muito tempo ao grupo de profissionais da cultura que defendem que a cultura não é neutra ou apolítica, mas, principalmente, porque no contexto actual dos EUA, e de outros lugares, as coisas efectivamente mudaram.

Ainda assim, para muitos colegas que dirigem organizações culturais (e museus), a razão pela qual fazem o que fazem não é clara. E com muita frequência, não conseguem ver o contexto maior em que operam e como o trabalho de suas organizações se relaciona com ele. É quase penoso quando alguém precisa de lembrar ao director do Toledo Museum of Art que, há três anos, o museu apresentou uma exposição do conhecido artista afro-americano Kehinde Wiley, "explorando ideias de raça, género e políticas de representação". A nossa programação só pode estar relacionada com a nossa missão e valores, deriva deles, confirma e reforça-os.

No meu último post, Não consigo respirar (seguido por uma extensa lista de leituras que tento manter actualizada), escrevi sobre o que considero ser um grande desenvolvimento entre o silêncio dos museus americanos em 2014 e as múltiplas declarações sobre racismo e violência policial em 2020. Acredito que isso é algo que merece reconhecimento, apesar das críticas legítimas a certas declarações vazias ou aparentemente inconsequentes. Mike Murawski, um dos co-produtores do movimento #MuseumsAreNotNeutral, escreveu um post intitulado A moment for accountability, transformation and real questions (Um momento para responsabilidade, transformação e perguntas reais), lembrando-nos que, além das declarações, o que precisamos de ver é "se eles [museus] se comprometem ou não a fazer as mudanças necessárias para desmantelar o racismo, agir e transformar as suas instituições". A mudança começa por dentro e, no seu post, Mike partilha as perguntas reais de Madison Rose que deveríamos colocar a nós próprios (nesse sentido, a declaração pública do Metropolitan Museum e a carta dirigida à equipa mostra como estas coisas devem estar interligadas).

Mas este é um processo e a maioria de nós está no começo. Do silêncio passamos para as hashtags e declarações discretas ou anódinas. É um passo. Mas é um passo pelo qual devemos ser responsabilizados. É por isso que devemos todos manter o nosso espírito crítico e as nossas expectativas em alerta. Passar das hashtags para a tomada de posição é o que devemos trabalhar a seguir. E é algo que temos de fazer com sentido de responsabilidade, com profundo conhecimento, com sensibilidade e respeito.

A imagem foi editada para apresentar à direita os nomes dos três museus.

Há uma semana, a acção colectiva da Blackout Tuesday chegou também aos museus portugueses. Foram muito poucos (eu soube de três) e a sua tomada de posição estava limitada a um quadrado preto e à hashtag #blackouttuesday. Considerando o entusiasmo com que alguns colegas receberam este desenvolvimento, esse pequeno passo, senti que tínhamos de ser mais cautelosos e manter as nossas expectativas altas. É definitivamente um passo, mas esses museus não estavam, realmente, a "dizer algo", pois não? Como escreveu Joan Baldwin no seu último post, “alguns parecem acreditar que as hashtags funcionam como declarações de valores. Não o são.” (leiam The chickens come home to roost: museum values in times of crises). Assim, em relação a esses três museus e outros, precisamos de nos manter antentos, de ver o que eles farão da próxima vez que houver um caso de violência policial contra um cidadão negro em Portugal (não apenas nos EUA) e se este momento terá também resultado numa introspecção.



Outro caso para o qual um colega chamou a minha atenção foi o do Palácio Nacional da Ajuda. No mesmo dia de Blackout Tuesday, o Palácio publicou fotos de uma pintura intitulada “Retrato de um homem negro”, informando que este é “o único Géricault [?]” na sua colecção, que “Adquirido e incorporado nas Colecções Reais no século XIX, este é um retrato intimista e, à luz do seu tempo, de grande carácter humanista ”e que “Encontra-se, sem coincidência, pendurado lado a lado com o retrato do Imperador Pedro II do Brasil, membro cadete da Casa Real de Portugal e, em 1888, libertador dos escravos do Brasil. ” Não fosse pelas hashtags #blacklivesmatter e (a inevitável) #alllivesmatter, eu não teria considerado esse post uma "declaração".

A discussão que se seguiu foi muito interessante e informativa (ler aqui) e mostrou quão bem preparados, sensíveis e respeitosos precisamos de ser ao dar esses primeiros passos. A referência ao imperador Pedro II do Brasil como "libertador dos escravos no Brasil" foi controversa. Seguidores informados ajudaram-nos a navegar pela História e as suas interpretações. Mas o que mais me impressionou foi o quão pouco preparado estava o Palácio (ou a pessoa que gere a sua página no Facebook) para participar nesta discussão. Não se trata de assuntos que possamos abordar de forma oportunista…

Houve também as reacções de outros seguidores, que quiseram lembrar que “Esta é uma página de Cultura e História e não de Política” ou que se queixaram sobre o quão é “cansativo esse tempo moderno, de pessoas vazias, que procuram problemas somente para polemizar, dizer que tem algo interessante. Arf. Não se pode nem ler ou ver um post sem ter alguma criatura polemizando.” Estes lembram-nos que as organizações culturais têm a responsabilidade de lidar com a sua própria fragilidade branca (a maneira como “até uma quantidade mínima de stresse racial se torna intolerável, desencadeando uma série de reacções defensivas”, de acordo com a definição de Robin Diangelo) e a dos seus seguidores. Isto também exige decisões informadas, sensibilidade e respeito.

Tomar uma posição não é fácil, não deveria ser. Precisamos de investir nisso: investir em estudar, em discutir, principalmente em ouvir e fazer alguma introspecção. A mudança começa por dentro.

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