No seu livro “The constructivist museum”, George Hein cita
Edward Forbes (naturalista britânico) que, numa palestra em 1853, disse que os
curadores/conservadores podem ser prodígios de conhecimento e, ainda assim,
impróprios para o seu lugar, se não sabem nada sobre pedagogia, se não estão
preparados para ensinar pessoas que não sabem nada.
Anos mais tarde, em 1909, uma das minhas maiores
inspirações, o director do Newark Museum, John Cotton Dana, disse que “um bom
museu atrai, entertém, desperta curiosidade, leva ao questionamento e, assim,
promove o conhecimento. (...) O museu só pode ajudar as pessoas se elas o
usarem; elas o usarão apenas se souberem da sua existência e somente se for
dada atenção à interpretação das suas colecções de forma que elas, as
pessoas, possam entender”. E em 1917 escreveu ainda: “Hoje, os museus de
arte são construídos para guardar objectos de arte e os objectos de arte são
comprados para serem guardados em museus. Como os objectos parecem fazer o seu
trabalho se forem mantidos em segurança, e os museus parecem servir o seu
propósito se mantiverem os objectos em segurança, tudo isso é tão útil no
esplêndido isolamento de um parque distante quanto no centro da vida da
comunidade que o possui. Amanhã, os objectos de arte serão comprados para dar
prazer, fazer com que as maneiras pareçam mais importantes, promover capacidades,
exaltar o trabalho manual e reforçar o prazer de viver, juntando-lhe novos
interesses.” (ambas as citações vêm do livro “Reinventing the Museum: Historical and Contemporary Perspectives on the
Paradigm Shift” de Gail Anderson).
As pessoas, todas as pessoas, eram centrais no pensamento
de ambos estes homens, no que diz respeito ao papel dos museus. Cotton Dana, no
entanto, viveu e trabalhou num momento crítico para a história dos museus e para
a sua relação com a sociedade. No seu livro “Making Museums Matter”, Stephen
Weil dedica um capítulo a uma das mudanças de paradigma mais decisivas: no início do século 20, dois dos principais museus dos
EUA, o Museum of Fine Arts em Boston e o Metropolitan Museum of Art em Nova Iorque,
determinaram que a ênfase no seu trabalho seria dada aos aspectos estéticos das
obras de arte que escolhiam adquirir ou expor e não no seu potencial de instruir.
Weil cita o sociólogo Paul DiMaggio, que disse que atrás desse processo estava
"uma ideologia estética que distinguia nitidamente entre a nobreza da arte
e a vulgaridade do mero entretenimento", resultando em distinções sociais
que também diferenciavam o público da alta cultura e da cultura popular.
Este movimento não ficou confinado nos EUA. Aliás, considera-se que foi uma má réplica de modelos desadequados de
museus de arte europeus. No seu ensaio
de 1991, “Museums and Gallery Education”, Eilean Hooper-Greenhill escreve sobre
uma nova geração de curadores, a partir da década de 1920, menos interessada no
uso público dos museus e mais interessada na acumulação de colecções. Pelo caminho,
as pessoas foram deixadas para trás, os museus realmente não existiam para elas,
mas para o prazer dos especialistas que cuidavam das suas colecções e de
algumas elites instruídas. Como afirma John Berger no seu ensaio "Lanscapes",
"Qualquer pessoa que não seja um especialista e que entre num museu comum hoje
em dia sente-se como um pobre mendigo cultural que recebe caridade". Essa foi
uma mentalidade adoptada por vários profissionais de museus (e, entre eles,
muitos directores de museus) que ainda se mantém, afectando de forma decisiva a
relação que os museus têm com a sociedade. Se mais de cinquenta anos depois do
"L' amour de l' art" de Pierre Bourdieu é um facto que o perfil dos
visitantes dos museus não mudou significativamente, é para isto que deveremos
olhar melhor.
Novas mentalidades foram formadas nos últimos trinta anos,
que trazem as pessoas de volta à atenção dos museus de todos os géneros (nem
todos os museus são museus de arte). Os museus inicialmente "para" e,
mais recentemente, "com" as pessoas são o sonho de um número
significativo de profissionais, que não vêem as funções de coleccionar /
preservar / investigar como antagónicas às de expor e comunicar. Uma outra
grande inspiração para mim, Elaine Heumann Gurian, no seu livro “Civilizing the
Museum”, resumiu esta vontade de mudar usando a expressão “o museu ‘e' ”: o
museu que não determina que algumas das suas funções sejam mais importantes que
outras ou que têm algum tipo de prioridade, mas procura cumpri-las todas, para
melhor servir a sociedade. O museu não é 'ou' colecções 'ou' pessoas; é colecções 'e' pessoas. Não há necessidade de os museus escolherem; não devem escolher. É precisamente isto que os torna 'museus'.
Esta semana, ouvi o nome Rita Rato pela primeira vez. Ela é
a pessoa escolhida para dirigir o Museu do Aljube em Lisboa, que conta a
história de resistência ao regime ditatorial de António de Oliveira Salazar.
Aljube era o local onde eram mantidos os presos políticos. Fiquei realmente
surpreendida ao descobrir que a nova directora é formada em Ciência Política e
Relações Internacionais e não tem estudos de museologia ou alguma experiência
profissional em museus (este último era um factor preferencial no anúncio de
recrutamento). Pessoas com qualificações, aparentemente, mais relevantes nem
sequer foram entrevistadas. Assim, espero que as preocupações expressas por
vários especialistas (historiadores, sociólogos, diferentes profissionais de museus e
museólogos) sejam respondidas em breve, com toda a transparência.
O debate acalorado sobre esta nomeação levantou mais uma
vez uma questão sobre a qual tenho reflectido nos últimos anos:
Em
2020, não é expectável que qualquer anúncio para o cargo de direcção num museu
indique os estudos de museologia como um requisito obrigatório para candidatos
interessados em dirigir um museu?
O debate público desta semana em Portugal revela (mais uma
vez) uma série de mal-entendidos sobre a preparação técnica e o papel dos
museólogos. Aqui estão algumas das coisas que li:
- Catarina Vaz Pinto, Vereadora da Cultura na Câmara
Municipal de Lisboa, afirmou
que "o perfil de direção para o museu não tem de ser necessariamento
um perfil académico ou museológico". Defendeu a escolha de Rita Rato não
apenas pelo projecto que apresentou (embora o anúncio de recrutamento não
mencionasse que os candidatos deveriam apresentar um projecto), mas também pela
“expectativa da sua demonstrada experiência de relacionamento interpessoal
e político vir a assegurar uma transição e renovação geracionais”. - Pergunta:
A vereadora da cultura sabe o que é um museólogo? E uma experiência em “relações
interpessoais e políticas” é um requisito técnico para a direcção de um museu
que compense a falta de outros requisitos essenciais e de experiência
profissional?
- O historiador e político Rui Tavares escreveu que “o
problema com Rita Rato ter vencido o processo de recrutamento para dirigir o
Museu do Aljube não é ela não
ser historiadora nem museóloga. O que não falta por aí são excelentes diretores
de museu, programadores culturais e gestores públicos que não são uma coisa nem
a outra (considera que O
único problema de Rita Rato é uma
entrevista de 2009 em que ela defendeu o estalinismo e disse não saber nada
sobre os gulags; Rato foi deputada do partido comunista...). - Pergunta:
quem é um “excelente director de museu” para Rui Tavares? Como define
"excelência" nesta área?
Alguns comentários adicionais em relação à minha posição
sobre este assunto mostraram ainda que não há uma noção clara sobre o que um
museólogo estuda e faz:
- “Os historiadores quase sempre revelaram pouco respeito
pelos museólogos. 'são técnicos de conserva', um dia ouvi dizer a um colega
mais velho. os museólogos, entretanto, passaram ao contra-ataque e conseguiram
a sua quota de mercado no negócio do passado. (…) O museólogo pretende ter o
seu cantinho protegido.” - Resposta curta: ser historiador e museólogo não é
mutuamente exclusivo, não é um relacionamento de confronto. A museologia é uma
especialização para historiadores, arqueólogos, antropólogos, historiadores de
arte, engenheiros, astrofísicos, biólogos, bem como educadores e mediadores de
museus, profissionais de marketing e comunicação e diversos outros profissionais
e investigadores que desejam trabalhar na gestão de museus e talvez também tornar-se
directores de museus.
- “Uma pessoa que tenha uma formação genérica em museologia está
automaticamente habilitada para dirigir um museu, seja ele do design, dos
coches ou da pesca do bacalhau?” - Resposta curta: Sim, juntamente com a
experiência em trabalhar em ou para museus (a propósito, não existe uma "formação
genérica em museologia").
Hoje, temos vários profissionais a trabalhar em museus e
todos eles são profissionais de museus (foi publicado pelo ICOM - Conselho
Internacional dos Museus em 2008 um referencial
das profissões museais, que necessitaria hoje de uma actualização). Mas não
é museólogo quem trabalha num museu. Um museólogo é um especialista oriundo de
diversas formações profissionais, que se forma em gestão de museus, gestão de
colecções, preservação de coleções, comunicação, educação. Há quase dois
séculos que está a ser construído um “corpus” significativo de conhecimento, de
teoria e prática, que forma a base dessa especialização, acompanhado de
conferências, seminários, debates que mantêm uma contínua e intensa reflexão
sobre o papel e o desenvolvimento dos museus. Esse é o tipo de preparação que gostaria
de ver em quem deseja dirigir um museu em 2020. Depois de mais de cem anos de
um paradigma diferente, chegou a hora de tentar algo diferente, algo mais
substancial - algo de que Edward Forbes, John Cotton Dana e muitos outros sonharam
há muito tempo.
Esta expectativa e exigência parece constituir uma ameaça
para algumas das pessoas que monopolizaram a direcção dos museus todos estes
anos: especialistas em colecções (em alguns casos, investigadores). Tendo-me
formado inicialmente em Arqueologia, posso garantir que não foi na faculdade
nem nas escavações nem enquanto trabalhava num museu de arqueologia que
desenvolvi o meu pensamento sobre os museus e o seu papel na sociedade. Assim,
se eu tivesse de escolher entre um excelente arqueólogo e um excelente
museólogo (com formação em arqueologia ou não) para dirigir um museu de arqueologia, definitivamente
escolheria o último. Estamos a falar de um tipo diferente de conhecimento e
prática.
Esta não é uma relação de confronto, não é um privilégio
que desejo dar aos museólogos, como me disse um colega. Diversos especialistas
e investigadores podem candidatar-se ao cargo de director de museu, mas em 2020
essas pessoas devem estar tecnicamente preparadas para isso. E muitas pessoas na
nossa área o são. Este tipo de preparação técnica não pode continuar a ser uma
“opção”, um “factor preferencial”. É básico, é essencial, é necessário. Bons
museólogos são aqueles que nos podem dar “o museu ‘e’ ".
Mais textos da minha autoria sobre este assunto:
Concurso
para directores de museus: foi dado um grande passo à frente, Público, 1.6.2020
Para
que servem os museus?, Público, 21.9.2019
Os
museus devem promover a igualdade ou a sua missão (ainda) é outra?, Público,
1.9.2019 (enrevista à Lucinda Canelas)
Sobre a nomeação de Rita
Rato:
João Pedro George, Aqui há Rato
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